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Filipe
Catto parece ainda um menino, não na maturidade artística, mas no
jeitinho brejeiro de olhar, na naturalidade com que se joga na vida e
no palco, como se representassem o mesmo lugar: o seu lugar no mundo.
Seu canto afinado de pássaros em pleno voo junta o popular ao
erudito, mistura o drama à alegria do amor num romantismo sem
mistérios que transita pelos gêneros musicais mais diversos sem
qualquer descida de tom: baladas, tango, samba-canção, blues,
enfim, o que ele entender de cantar. Sua intimidade com o microfone e
sua presença cênica seduzem homens e mulheres, despreocupados com
construções de gêneros, irmanados no humano demasiado humano.
Além
de intérprete eclético, ele é também senhor das palavras,
compositor de letras que falam bem mais do que dizem, gritam nos
subtextos, nas metáforas e imagens que dão voz à sua sensibilidade
e à sua delicadeza na experiência com o mundo.
Em
“Saga”, ele faz um exercício metapoético belíssimo sobre os
delírios do poeta, que maldiz a sina, mas, com a sua própria
história, escreve os seus versos num processo criador como um
instantâneo da memória. Leiamos alguns versos:
Enquanto
andava, maldizendo a poesia
Eu
contei a história minha pr´uma noite que rompeu
Virou
do avesso, e ao chegar a luz do dia
Tropecei
em mais um verso sobre o que o tempo esqueceu
E
nessa Saga venho com pedras e brasa
Venho
com força, mas sem nunca me esquecer
Que
era fácil se perder por entre sonhos
E
deixar o coração sangrando até enlouquecer
O
vício do amor e suas farpas colocam o sentimento entre pedras e
brasas, fazendo os sonhos correrem riscos e a emoção se perder. Mas
tudo vale e faz parte da saga de cada um. Só quem vive e encara é
capaz de 'encharcar-se de estrelas', sossegar o peito por meio da
música para ver a manhã chegar em vez de enlouquecer deixando o
coração sangrar. A poética de Catto tem esse sentido de
positividade. O amor dói, mas há sempre um modo de transfigurar o
sofrimento pelo canto, pela palavra, pela crença no poder infinito
que guardamos.
Não à toa muitos versos seus nos lembram a irreverência dos poemas cantados de Cazuza e os 'casos' de Noel Rosa tão bem contados nas letras de suas músicas. “Em roupa do corpo”, um caso acabado samba nas palavras do poeta, como sambava nas de Rosa. Nem todo amor é felicidade. No samba, o clichê do amor-desencontro é tão necessário como um trago de bebida e os passos no salão até decantar a dor:
Deixei
meus trapinhos em cima da cama, fiz tudo ligeiro
Peguei
maquiagem, valise e coragem enquanto não vinhas
Eu
peguei o dinheiro da minha passagem, que era só de ida
Não
olho pra trás, parti e não vou mais é voltar pra essa vida
Deixei
na tua casa uma rosa vermelha e um bilhete dizendo
"Cuide
bem dessa rosa, trate ela melhor do que tratou a mim"
Nem
beijei o papel, dobrei, saí no calor do momento
Vou
com a roupa do corpo mesmo sem ter pra onde ir.
A
mesma característica de “Roupa do corpo” está presente em
“Crime passional”. O samba é a catarse, a purgação dos amores
desfeitos e das traições que ainda dilaceram e que se estendem
infinitamente pela música, tocando quem canta e quem escuta. Quantos
amores não já acabaram em tragédias (íntimas ou públicas), se
transformando em notícia de jornal, romance e letra de música? Se a
morte, no jornal, é tragédia; na canção é poesia:
Três
tiros irromperam a noite surda
Pr´um
corpo de calor que se extinguiu
Me
deu três beijos úmidos de lágrima
Selou
meus olhos como um arrepio;
A
figura da prostituta, que representa o amor feito comércio e é tão
estigmatizada pela hipocrisia da sociedade, nos versos de “Gardênia
branca” aparece humanizada e sensível. Mulher da vida não é puta
se traz uma flor branca no coração, ou seja, ninguém pode julgar
ou ter preconceito, pois a essência está sempre muito além da
aparência:
Ela
é mulher da vida
Mas não é puta, não
Traz a linda flor branca
Dentro do seu coração
Mas não é puta, não
Traz a linda flor branca
Dentro do seu coração
Numa
pegada bem irreverente, a la Cazuza, “Ressaca” é um desabafo, um
recado desdenhoso a um amor que findou com mágoa. Como um tiro -
“Deixo você pra quem quiser ser teu / Pra amantes desbotados que
não ardem como eu” – as palavras ferem e
'jogam
na cara' que quem joga no amor sempre perde: “Tua ressaca tem o
gosto da minha boca”. Leiamos mais:
Deixo
você pro seu drink esquentar
Meio álcool, meio água, meio gelo que já derreteu
Deixo a canção pro cigarro engasgar
E a minha lembrança estar
Deixo você pra quem quiser ser teu
Pra amantes desbotados que não ardem como eu
[...]
Enquanto te embriagas entre uma ilusão e outra
Mas sei quando vem esse sol despertar tua manhã ao meio dia
Tua ressaca tem o gosto da minha boca
Meio álcool, meio água, meio gelo que já derreteu
Deixo a canção pro cigarro engasgar
E a minha lembrança estar
Deixo você pra quem quiser ser teu
Pra amantes desbotados que não ardem como eu
[...]
Enquanto te embriagas entre uma ilusão e outra
Mas sei quando vem esse sol despertar tua manhã ao meio dia
Tua ressaca tem o gosto da minha boca
No poema “Redoma”, escrito quando Catto tinha ainda 15 anos, percebemos a busca do amor que, embora idealizado por ser desejado, não se delineia em fios irreais como no romantismo tradicional. O poeta sabe que não é um rei, ou seja, os seus poderes são limitados, mas podem transcender tudo pelo sentimento. Como Penélope, o eu lírico espera sem a certeza de que o amor virá, correndo todos os riscos, mas sem encontrar razão para desistir, pois o outro, que não sabe da espera, enquanto não despertar, seguirá como um exilado. Essa crença no amor-complemento, na doação recíproca para a plenitude das relações, permanece na poética de Catto até a sua idade atual:
Se
eu fosse um rei
Eu
te dava abrigo no meu país
Mas
eu não sou
Por
isso segues como exilado
Sem
saber de mim
Hoje
não importa nem teu nome
Insisto
em te afirmar
Que
essa espera é só uma gota
Que
só se faz transbordar
Os
versos de “Adoração” mostram realizado o encontro tão desejado em
“Redoma”. Sem dúvida, "Adoração" é
um dos mais belos poemas de amor da contemporaneidade, uma
celebração ao amor vivido e partilhado. Catto foge ao clichê do
poeta maldito que só enxerga beleza no desencontro, no abandono, nas
vicissitudes dos relacionamentos e, após desejar o encontro e
realizá-lo, passa a viver o amor pleno, fazendo-o leitmotiv
da sua vida e da sua criação poética. Leiamos alguns trechos:
Como
relâmpago, silêncio
Passe
de milagre você me pintou
Me
toma em teu compasso
Que
só no teu abraço
Que
eu me escondo do mundo
Pele
que é pele não mente
Não
esconde, não dissimularia
Meu
corpo seja palco
Vertido
e tomado em pelo à tua poesia
Na
doação em que o corpo se torna palco, em que a pele não dissimula
e dispensa ladainha, o amor se faz pleno subterfúgio, sem jogo,
conjugando o imperativo do verbo adorar que dá sublimidade ao
sentimento. A sensualidade à flor da pele culmina no amor Eros que
se configura no verso “Eu adoraria, eu adoraria / Saber o percurso
da tua boca à minha”, e se completa, adiante, com “Meu corpo
seja palco / Vertido e tomado em pelo à tua poesia” em que o eu
lírico joga com a ambiguidade da palavra 'pelo' (preposição ou
substantivo), sugerindo o contato da pele, da língua eriçando os
pelos e plenificando a poesia. Na antítese do relâmpago e do
silêncio que ilustram o modo como esse afeto chegou estão as
contradições do amor que se resolvem num abraço capaz de esconder
o ser amado do mal que ele tanto teme.
Filipe Catto escreve como quem quer transcender seus próprios enigmas e tem noção de que, por meio dos recursos expressivos que a língua oferece, pode dar forma ao seu pensamento, à sua cosmovisão, à sua exacerbada sensibilidade, à sua verdade de ser feliz num mundo em que há tanto desamor. Quando seus versos beijam a música, temos, então, uma apoteose. Preciso parafrasear o escritor mineiro Lúcio Cardoso para dizer que Catto não é um homem… é uma atmosfera!
Aila Sampaio - Professora da Universidade de Fortaleza
Aíla, com que verdade e emoção você captou toda a essência da Arte de Filipe Catto.Estou comovida por ler seu artigo tão profundo e que resume, de forma poética o trabalho desse compositor e intérprete tão especial de nossa música.
ResponderExcluirMuito bom,Aíla!
ResponderExcluirBeijos e em breve estarei de volta!
Excelente, voce definiu bem esse artista ímpar. É de tarefa tripla: compositor, cantor e um intérprete magnífico!
ResponderExcluirParabéns pelo texto! Lindo e sensível, digno do artista ao qual se refere!
ResponderExcluirQue texto maravilhoso, Aila! Você realmente "sentiu" Filipe através da arte dele! Parabéns pela sensibilidade e por conseguir se expressar tão lindamente através das palavras.
ResponderExcluirObrigada, pessoal querido! A música nos une!
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