quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O ESPÍRITO BARROCO DO BOCA DO INFERNO

Introdução

Eu não pretendo aqui analisar poemas de Gregório de Matos. Quero, a partir da obra Boca do Inferno, de Ana Miranda, fazer algumas considerações sobre o espírito barroco, que emanava na Bahia do século XVII e se revelava nas atitudes e comportamentos dos que viveram aquela época. Darei ênfase às posturas do homem Gregório de Matos e sua perfeita adequação às tendências dualistas e indisciplinadas do período em que viveu. As contradições de suas atitudes e as extravagâncias de seu comportamento foram as forças motrizes de sua poesia que, como sabemos, era construída nos contrastes do sagrado e do profano, do amor carnal e do amor decantado espiritualmente. Farei inicialmente algumas considerações sobre o Barroco, enquanto tendência literária, e depois passarei a alguns momentos da obra, que me possibilitaram construir o espírito barroco do Boca do Inferno, título e motivo dessa pesquisa.

O Barroco

Sabemos que o termo barroco dá nome a um estilo de época que se configurou em toda a produção artística do século XVII, marcando um momento de crise espiritual da sociedade européia, em que o homem se dividia entre duas mentalidades, duas formas diferentes de ver o mundo. De um lado, retornava-se aos valores espirituais tão fortes na Idade Média, com a religiosidade imposta pela Contra-Reforma e pela fundação da Companhia de Jesus; de outro, convivia-se com o sensualismo e os prazeres materiais da vida mundana trazidos pelo Renascimento. É exatamente no centro dessa dualidade que o Barroco se equilibra, conciliando duas concepções opostas e resultando num estilo cheio de contradições, pois que refletia a experiência renascentista e o reavivamento da fé cristã medieval, a um só tempo.
A princípio, o Barroco, considerado indisciplinado e de mau gosto, não era visto dentro de um movimento com leis próprias, de forma que os críticos não o reconheciam como um estilo de época, mas como uma degeneração do Renascimento. Só no final do século XIX, quando o suíço Heinrich Wölfflin, na obra Renascença e Barroco (1989), estabeleceu cinco princípios fundamentais que diferenciam o Barroco do Renascimento, é que foi dado o valor devido e reconhecida a autonomia do movimento artístico.
No Brasil não foi diferente, até porque as origens do Barroco se confundem com a origem da nossa própria literatura, haja vista que o que aqui se havia produzido até então não tinha nenhuma intenção literária (a literatura informativa e a literatura jesuítica). Além disso, não havia um pensamento coletivo em torno da reflexão do que seria o nosso primeiro estilo de época, já que a produção literária desse período foi fruto de esforços individuais. Ainda hoje o próprio Alfredo Bosi, na sua História Concisa da Literatura Brasileira (1987), não fala do Barroco como um estilo realizado no Brasil, mas como ecos acontecidos de forma esparsa e precária.
Em meio ao espírito de ganância e aventura da mentalidade colonialista, quem escrevia, encontrava na literatura “um instrumento para criticar e combater essa mentalidade ou para moralizar a população com os princípios da religião ou dar vazão a sentimentos pessoais” (Cereja,1994). A descoberta de ouro em Minas Gerais, por exemplo, possibilitou o desenvolvimento de um barroco tardio nas artes plásticas, através da construção de igrejas no século XVIII, o que era uma forma de catarse, pois “o homem do barroco deixou nelas a marca de suas angústias, representadas por uma arquitetura cheia de profunda fé, opulenta em ouro e arroubos plásticos, que marcou esta época frenética da nossa história, perpetuando e como que desmentindo a dura realidade do mundo exterior, o fim da opulência da época do ouro do Brasil” (OP cit.).
O termo barroco aos poucos foi tendo sua extensão alargada. Inicialmente designava um estilo das artes plásticas, que em pouco tempo se estendeu ao estilo das letras do século XVII. Logo, barroco passou a significar um tipo de mentalidade, um modo de organização política, uma formação social. Assim, se inicialmente se usava o termo para classificar a pintura, logo passou a significar a literatura, depois a cultura e a sociedade. Hoje, por exemplo, como diz João Adolfo Hansen (1989), fala-se de “época barroca”, “sociedade barroca”, “Estado barroco”, etc. (É, por exemplo, o que se costuma dizer sobre Portugal: “Portugal barroco”, ou seja, o Portugal da União Ibérica (1580) até a morte de D. João V (1750)). E é bem verdade que barroco configura um estilo de existência, uma visão de mundo, um comportamento. Roger Bastide, quando veio ao Brasil para ministrar uns cursos, resolveu ficar por mais tempo e acabou passando aqui a maior parte de sua vida. Ele exaltava as nossas florestas e dizia ver nelas a continuação de templos barrocos. Já Affonso Romano de Sant’ana (1997, p.202) tem uma obra intitulada Barroco, a alma do Brasil em que coloca o futebol brasileiro, “com suas improvisações e dribles surpreendentes” como uma representação do barroco e diz que a encenação que resume as contradições da alma barroca do brasileiro é o desfile do carnaval na avenida, que faz a festa da carne e espera a remissão nas cinzas da quarta-feira.
O fato é que, por assinalar realidades opostas, o barroco se relacionava com a realidade do homem seu contemporâneo, igualmente dual e contraditória. No caso da literatura, a própria linguagem já mostra rejeição a uma visão ordenada das coisas, como a refletir os estados de tensão por que passava a sociedade da época, tão indisciplinada como a arte que produzia. Assim, é natural o alargamento do uso da palavra barroco para designar tudo que é pomposo, opulento e contraditório, inclusive o comportamento e o espírito do homem que viveu o século XVII.

1. Gregório de Matos

O poeta Gregório de Matos (1633-1696), nascido 32 anos após a publicação de Prosopopéia, de Bento Teixeira, obra que didaticamente marca o início do Barroco no Brasil em 1601, encontraria no estilo barroco o casamento perfeito para o seu estilo de vida. Massaud Moisés (1986, p.45) assinala que “ocorreu uma excepcional identificação entre o temperamento artístico dele com a moda literária imperante no tempo, a tal ponto que ele se lhe tornou uma espécie de personificação ou protótipo”.
Ele viveu numa época em que a realidade brasileira experimentava a corrupção do sistema judiciário [Os letrados peralvilhos da colônia faziam réus se tornarem autores e obtinham mercê de ambos. (p. 33)]; a exploração exagerada do comércio [O irmão desse letrado, um mercador avarento, tirava duzentos por cento no que comprava e no que vendia. (p. 33)], além da exploração da cana; uma realidade de violência em que se escravizava e negro, perseguia o índio e quem se rebelasse contra as podres bases dos governos, independente da classe social. Como era um homem impertinente, esclarecido e culto, formara-se em Direito pela Universidade de Coimbra, tempo em que leu Gôngora, Quevedo e Camões, ele mostrava uma visão humanística bem formada, uma preocupação gritante com o destino do povo da Bahia. No livro Boca do Inferno, Ana Miranda esboça variadas vezes os seus pontos de vista a esse respeito, como se pode ver no trecho: Se alguma coisa eu pedia a Deus, não era exatamente o céu, tampouco a riqueza material. Pedia que o mundo se tornasse justo (p. 84). A arma que utilizava para protestar ou louvar era a sua poesia, cujo processo criativo parecia derivar da necessidade de agradar ou desagradar:

Acho que acabou para sempre tua carreira na Relação Eclesiástica, disse Gonçalo Ravasco. Isso ainda veremos. Tratarei de mandar algumas adulações ao arcebispo. Dos meus versos será templo freqüente, onde glórias lhe cante de contino, declarou Gregório de Matos fazendo pantomimas. (p. 126)

Quando João da Madre de Deus informa a dom Antônio de Souza que Gregório lhe manda poemas laudatórios, o governador diz:

Esse é o seu método. Remete os cumprimentos e depois pede mercês. Quase sempre dinheiro. Saúda de espinha recurvada arcebispos, infantes, reis, provedores, ouvidores, desembargadores. E quando não obtém o que deseja, usa de sua mordacidade. (p. 225)

As mulheres

Em relação às mulheres, era demais contraditório: Na verdade, muitas vezes ele tinha sobre [as mulheres] elas pensamentos conflitantes. De amor e ódio. (p. 129)

Ele mesmo revelava que as adorava, mas não tinha consideração por elas: -Anica... Cuidado comigo, está bem? Não sou muito bom para as mulheres. (p. 130)

Tão cheias de contradições eram as suas atitudes, que proclamava querer uma mulher para casar, não lhe importando se era branca, preta, freira, empregada doméstica, carola, meretriz, bela ou deformada... (p. 90) logo ele que havia se casado, pela primeira vez, com dona Michaela de Andrade, uma rica e branca senhora de uma família tradicional portuguesa, da qual enviuvara pouco depois e tivera uma filha. O Pe. Vieira, inclusive, sabendo que ele gastava o dinheiro da mulher na esbórnia, sem que lhe desse alguma assistência, criticava-o, acusando-o de ter casado por interesse.
A prostituta Anica de Melo, sua amante, apaixonada e sonhadora, acolhe-o no seu bordel, quando ele está se escondendo do Braço de Prata, por ter-lhe ridicularizado em sátiras mordazes. Ela sonhava em casar-se com o poeta, mas percebia que, embora dissesse que para ele todas as mulheres eram iguais, não seria jamais capaz de casar-se com uma meretriz:

Ele mentia, pensou Anica de Melo. Demonstrava sempre fazer uma clara divisão entre as mulheres para fornicar e as mulheres para casar. Entre as negras e as filhas de fidalgo. Entre as meretrizes e as donzelas. (p.90)

Todas as moças do bordel queriam ir para a cama com o poeta, pois além de bom amante, ele gostava de contar histórias, recitar poemas. Elas se sentiam valorizadas com suas gentilezas, já que ele passava horas brincando com elas, pregando-lhes adereços em partes do corpo. Pouco importava-lhes que ele saísse divulgando o que fazia, se prevalecendo do fato de, em três dias, já haver fornicado todas. (p.117)

Às vezes, ele até revela a superioridade da meretriz em relação às mulheres “honestas”, mas é fácil perceber que tal ocorre no que se relaciona a sexo, como comprovam as palavras de Anica:

As mulheres que conheciam o amor de cama eram bem diferentes das tagarelas dos lares, quase sempre levianas, ignorantes. Ah, o delicioso coito impuro, cheio de catarro e vinho. Delas, das negras devassas e belas, Gregório de Matos seria escravo. (p. 17)

Embora tenha se casado primeiramente com uma mulher de muitas posses, sua última esposa foi uma negra, viúva e pobre – Maria dos Povos – a quem ele abandonou pouco tempo após o casamento, para cair outra vez na vida mundana, embora se dissesse apaixonado por ela e muita a cantasse em seus versos.


A fama

O seu comportamento excessivo era demais conhecido, a sua fama de mordaz, permissivo e indecoroso corria por toda a cidade, despertando os receios de muitas mulheres, mas povoando o imaginário da maioria delas :

É garboso como um cavalo. Se não tivesse escrito tantos desaforos, tantos desalinhos... suas sátiras falam de noites de desvelo, desvario; sem recatos conta quantas vezes deitou-se e com quem. Com desenfado queixa-se dos viciosos moradores, esquecendo os virtuosos. É um extravagante. (p. 91)

Esse comportamento extravagante assinalado por Bernardina Ravasco, sobrinha do Pe. Vieira que estava sob sua proteção, revela o verdadeiro espírito barroco de Gregório, a sua contradição maior que é ser e não ser fiel a Deus, às mulheres e a ele mesmo, conforme se lê em outra declaração da mesma personagem:

Sei bem que é desembargador, vai tomar ordens sacras, mas tem uma fama... loquaz, sedutor, um letrado que agora está ajoelhado diante da Virgem Maria e em seguida afunda-se no colo das meretrizes. Graduado na universidade da luxúria, que é braba universidade. Tudo com tal publicidade... (p. 91)

Maria Berco, apaixonada, já percebe nas sátiras do poeta uma outra intenção, que não a de ser extravagante gratuitamente: Pensa que o mundo está errado e querendo emendá-lo, torna-o mais vicioso. (p. 92)

A mudança de comportamento

Em alguns momentos, Gregório demonstrava um comportamento romântico:

Sei que existe uma mulher para mim como uma princesa para os meus sonhos. (p. 90)
...tenho meus amores líricos. Estou, mesmo, em busca de um grande amor. Uma mulher que sirva para casar.

Em outros, seu romantismo diluía-se no prazer carnal:

Gregório não conseguiu tirar Maria Berco do pensamento...Estava acontecendo mais uma vez com ele. Ah, por que desperdiçar tantas horas em devaneios? Por que seu coração era tão frágil e fácil de penetrar? E por que seria seu coração ligado tão diretamente ao que levava entre as pernas? (p. 94)

Embora se dissesse apaixonado por Maria Berco, não escondia sua paixão desmedida pelas mulheres, nivelando-as, [viúvas, putas, negras forras, escravas, mulatas, brancas pobres, freiras, mulheres suaves, belicosas, portuguesas, damas pintadas (p. 295)] enquanto instrumentos do prazer carnal. Jurava amor a Maria e, logo depois, caía na esbórnia, entregando-se às meretrizes, esquecendo as juras que fizera.
Em muitos momentos, agia mesmo de forma animal, como se para ele as mulheres fossem objetos que, como dizia “... devem cumprir sua parte: fornicar, fornicar e fornicar”(p. 116). Leia-se a passagem em que ele se sente atraído por uma prostituta nova no bordel, a única que ela inda não havia possuído:

Uma das moças trouxe uma panela de grude para colar as páginas arrancadas. Era a negra novata. Gregório de Matos empurrou as outras moças para fora. Ficou sozinho no quarto com a mulher. Sem falar com ela, sem ao menos perguntar seu nome, tirou a roupa dela e colocou-a, nua, deitada na cama, depois de jogar os livros no chão....Ele agarrou o corpo dela com fervor e possuiu-a muitas vezes seguida, sem dizer uma só palavra. Depois pegou um livro e leu em voz alta enquanto a moça se vestia, um pouco assustada. (p. 158)

E ainda se comportava como um gabola, ao declarar o que fazia publicamente:

Serei perpétuo lambaz do ralo, da roda e grande. Os meus doces empregos. Ah, a abadessa dona Marta! a prelada, porteira do mosteiro de Odivelas. Nunca houve mulheres tão arrebatadas. Faziam de tudo, meu amigo, como nenhuma outra. Em Odivelas galanteei uma freira, da qual não me recordo mais o nome, e quando fomos fazer o que queríamos, a cama pegou fogo... tinha uma outra freira, Arminda, que me recebia enrolada em peles preciosas de animais... Numa ocasião uma freirinha me quis mandar um vermelho e foi impedida por outra freira que disse que eu ia satirizar o peixe. Sabes o que fiz? Satirizei a freira que impediu. (p. 268)

Além das gabolices, o poeta parecia enfastiar-se das conversas, como se lhe interessasse o sexo pelo sexo, apenas:

...mulheres querem tudo sempre bem-arrumado. E não sabem ficar caladas depois de fornicar. Ficam naquele nhenhenhén. Às vezes acho que as mulheres não gostam de fornicar. Fazem-no apenas para conversar depois. (p. 268)

A verdade é que o poeta não conseguia ser fiel ou tornar acreditado o seu amor, pois num passe de mágica transformava seus sentimentos e suas vontades. No final do romance Boca do Inferno, ele se despede de Maria Berco, após conseguir tirá-la da prisão e esperar ansiosamente sua recuperação. Quando ela parte, ele, após falar-lhe de amor e prometer encontrá-la em breve na cidade, escuta o barulho de “tambores, vozes, risos femininos” e diz: O que ouço? Roçagares de saia? Ah, mulheres, minhas pretas. Foi saltitando para a praia.
Maria Berco esperou em vão que Gregório de Matos voltasse à Bahia para encontrá-la, como prometera. Soube após algum tempo que ele havia se casado com Maria dos Povos, com quem teve um filho.
Embora cantasse o amor por Maria dos Povos em seus versos, como dissemos, o poeta logo voltou à mesma vida desregrada, em farras e camas de mulheres, não tardando a deixar sua mulher para virar um andarilho, que perambulava pelo Recôncavo, embriagado, desferindo maldizeres contra os poderosos, o que lhe valeu prisão e degredo em Angola. Não pôde voltar à Bahia nem para morrer.

O cargo

Em relação ao seu cargo na Igreja, Gregório não desenvolve nenhum trabalho, aparece apenas para receber o soldo. Também não parece interessado em mudar de atitude.
Após enfrentar o arcebispo João da Madre de Deus, Gregório insinuou que o religioso estava recebendo benesses do governador, o que o fez irritar-se. Vendo que o poeta se excedera na acusação, Gonçalo perguntou-lhe como estava a situação dele na Relação Eclesiástica e ouviu como resposta:

“Não acredito que esteja muito bem. Mas logo saberemos... acho que João da Madre de Deus não vai ter coragem de me afastar de Relação Eclesiástica”. “Pouco me importa ficar na Sé. Aquele lugar é um presépio de bestas, se não for estrebaria” (p. 103-4)

Irreverente, o poeta tinha consciência de sua indisciplina e não demonstrava nenhuma restrição ao seu modo próprio de ser. Não parecia arrepender-se de sua extravagâncias pois, no seu entender, aquela época era de vícios “E vícios são virtudes”. Justificava sua mordacidade:

“De que pode servir calar? Nunca se há de calar o que se sente? Dizem que sou satírico e louco, de má língua, de coração danado, mas os que não mordem é porque não têm dentes... A mudez canoniza sa bestas. Os padres são uns filhos da puta”(p. 124)

O comportamento permissivo e indecoroso de Gregório não chocaria tanto se não fosse ele um Desembargador da Relação Eclesiástica, que chegou a exercer os cargos de vigário geral e tesoureiro-mor, sem jamais usar roupagem eclesiástica, como era obrigado. Ele escrevia suas sátiras mordazes contra os padres e os políticos, freqüentava bordéis e perdia-se em noitadas de luxúria, sem romper os vínculos com a igreja.
Tentando envenenar o arcebispo, relatando fatos e descrevendo o comportamento de Gregório, o Braço de Prata adverte-o de que o poeta é ambicioso, quer chegar a cargos muito altos, faria de tudo para ser bispo, ou arcebispo. Por isso se mantém na igreja. E questiona a vocação dele, dizendo que quando não está conspirando, o homem vive embriagado nas tabernas, sempre fazendo arruaças (p. 225). Acrescenta que expulsar Gregório de Matos da Sé seria moralizar a igreja.
Sabendo que o Pe. Vieira o tem em muita consideração, o arcebispo procura Gregório e dá-lhe um ultimato: ou muda de comportamento e recebe as ordens sacras, ou sai da Sé. Gregório diz que não pode mudar, pois é a sua natureza, e que:

Ser mau secular não é tão culpável e escandaloso como ser mau sacerdote. Não posso votar a Deus o que me é impossível cumprir pela fragilidade do meu caráter. (p. 229)

Na verdade, Gregório reconhece suas limitações de caráter e considera hipócritas as instituições religiosas, motivo pelo qual não quer compactuar com elas. Isso se evidencia quando recusa receber as ordens sacras e diz: a troco de não mentir... perderei todos os tesouros e dignidades do mundo” (p. 229). Perde o cargo de Desembargador Eclesiástico, mas não se violenta, tentando ser o homem correto que jamais poderia ser.
Embora autêntico, possuidor de idéias de justiça e crédulo da palavra de Deus, Gregório proferia blasfêmias, demonstrando uma personalidade controversa, e uma postura indecorosa, desleixada e desprovida de respeito: Ora, por que Deus pouparia os filósofos ou os santos do sofrimento? São gente como nós.. Não fazem eles seu cocô matinal?...

Dizia que ninguém escapa de cumprir as necessidades fisiológicas, inclusive Deus: Deus caga. E caga na nossa cabeça /.../ Sabes que Jesus era sodoma? (p.163)

Pior era subverter o conteúdo das orações, mesmo em momentos de grande desespero, entremeando-as com palavras de baixo calão e inserindo termos indizíveis:

Prepara-te para morrer, amigo. Reza comigo, eu fodia, tu fodias. Ave Maria cheia de Graça. Meu Deus, eu pequei, não tirei o barrete quando passou a procissão. Perdoai-me, Senhor (p. 270)

Eram realmente inconciliáveis os objetivos do poeta que, segundo Ana Miranda, proclamava não ter tido outras pretensões na vida, senão as de formar-se em direito canônico e fornicar todas as mulheres. Todas elas (p.89).
Na opinião de Varnhagen, a obra e as atitudes de Gregório expressavam a psicologia de um homem vadio e desclassificado. Depois, Sílvio Romero, com uma visão mais determinista, as entendeu como resultante da mistura racial. Posteriormente, José Veríssimo as avaliou como resultantes da psicopatologia, já que se tratava de um nevropata, um neurótico; e, Araripe Jr., no final do século XIX, analisou-as como resultante de uma associação do clima tropical, que “obnubila”, desperta a tara do homem, que então já se havia transformado num fauno obcecado pelo sexo, um tarado “ressentido” e “pessimista”; e, ainda, depois, como resultante da crise econômica da Bahia no final do XVII, que faria de Gregório um homem do “ressentimento” contra a ascensão burguesa e um homem do “pessimismo” por causa da perda da posição aristocrática (apud Hansen,1989).
Independente das justificativas que se possam dar para tão contrastante produção literária, o fato é que, hoje, Gregório de Matos goza do prestígio a que faz jus sua obra, cuja totalidade só veio a lume entre os anos de 1923 e 1933, quando Afrânio Peixoto, através da Academia Brasileira de Letras, a reuniu em seis volumes com o título de Obras. Tal demora deveu-se ao fato de o poeta ter publicado poucos poemas em vida e de não haver assinatura em seus escritos.Tomás Pinto Brandão, em visita ao poeta, escondido na Praia Grande, diz ter anotado cópia de vários poemas e que os distribuiria para serem lidos para as amantes, na cama. E pergunta a Gregório por que não os assinava, ao que o poeta responde: Para não ser queimado (p. 297).
Tal atitude gerou problemas de autoria, já que, comprovadamente, havia-se constatado plágios de textos de escritores famosos na época, como Gôngora, por exemplo. No livro de Ana Miranda há o registro de que João de Lencastre, (sucessor e sobrinho do governador da Bahia, Tucano, o político mais satirizado e responsável pelo degredo do poeta), pediu ao povo baiano que registrasse num livro as poesias de Gregório. O livro ficava aberto numa sala do palácio e havia, às vezes, filas de pessoas com sátiras e poemas líricos nas mãos, ou de cor, para serem transcritos. Diz ainda Ana Miranda que poucos sabiam se tais escritos eram realmente de Gregório de Matos, mas como ele fora o grande mestre nas sátiras, na imprecações, na dessacralização, na profanação e no amor, achavam lógico que fossem dele.
Seja qual for o motivo, o fato é que Gregório parece não ter tido a preocupação com o seu nome na posteridade. Numa demonstração de que pouco lhe importava o destino de seus versos, talvez construídos, como falamos, de acordo com suas conveniências, ele mesmo afirmava: Escritos vão e vêm. São feitos para o vento e o fogo. (p. 96).

A modernidade de Gregório

Por conta da sua decepção com a igreja ou com os homens, Gregório acabou se identificando com a época medieval das cantigas de escárnio e maldizer. Tanto, que foi o primeiro poeta satírico brasileiro, e, embora tenta escrito uma poesia lírica e sacra de boa qualidade, é pela verve ácida que o poeta mais aparece, sobretudo por resgatar esse gênero, que não se coadunava com o estilo vigente. Sua sátira foge dos padrões preestabelecidos pelo Barroco, constituindo uma poesia realista e brasileira, com uma percepção crítica da exploração colonialista empreendida pelos portugueses na colônia. Além disso, usa uma língua portuguesa diversificada, cheia dos termos portugueses introjetados pela colônia. Essa diversificação fica patente, também, na presença de muitos termos indígenas e africanos, não ausentes de palavrões, gírias e expressões locais. Talvez tenha sido a primeira manifestação nativista de nossa literatura e o início de um longo despertar da consciência crítica nacional, que levaria ainda um século para abrir os olhos, como afirma Massaud Moisés (1986).
Na verdade, Gregório demonstra irreverência em todas as suas vertentes: como pessoa, ao chocar os valores e a falsa moral da sociedade baiana de seu tempo, com seus comportamentos considerados indecorosos; como poeta lírico, ao seguir e quebrar os modelos do barroco europeu; como poeta satírico, ao lançar mão de um vocabulário de baixo calão. Criticou as contradições e falsidades da sociedade, ignorando o poder das autoridades políticas e religiosas, o que lhe rendeu perseguições, exílios e a proibição até de morrer em seu estado natal.
O fato é que, hoje, tem sua obra reconhecida como um projeto literário que não só abriu uma tradição literária entre nós, superou os limites do movimento, o que – reconheçamos – o faz precursor da poesia moderna.

2. Ó comportamento barroco

Maria Berco, casada com o velho João Berco, cego e avarento, que lhe tirara do orfanato, sente-se apaixonada e imensamente atraída por Gregório de Matos, que lhe corresponde em todos os sentimentos. Embora essa paixão não cheque a se realizar, Maria passa por momentos de muita tentação, sente-se uma pecadora e chega a flagelar-se. Tal atitude resume o espírito barroco imperante nas pessoas, que se dividiam entre os prazeres carnais e o medo de pecar e ir para o inferno:

Não merecia nada mais do que o inferno. E agora seu corpo a queria lançar no abismo do adultério.Era preciso esquecer Gregório de Mtos. Deus a enviara àquela missa onde o padre admoestara contra a traidora...Maria Berco abriu os olhos, estava diante de um espelho. Viu a si mesma montada numa besta com sete cabeças e dez chifres... Abrasada acordou. Levantou-se da cama e foi ao espelho... Pegou um chicote e voltou para o quarto...Despiu-se da roupas de baixo. Viu-se nua, uma imagem difusa no vidro, deformada... Jamais se desnudara na frente de um homem. E poucas vezes diante de si mesma. A nudez era pecado... pegou e chicote e flagelou-se... tinha de esquecer Gregório de Matos. (p.153)

Mas o comportamento barroco não se restringe à figura irreverente de Gregório ou Maria Berco. O próprio Antônio Vieira (1608-1697), embora padre e pregador veemente da palavra de Deus, era a favor de atitudes drásticas para defender os direitos do povo, sobretudo dos índios e dos judeus. No livro Boca do Inferno, era acusado de conspirar contra o governo, era considerado o carrasco (p. 81) do governador Antônio de Souza, que queria vê-lo morto por ser ardiloso, traiçoeiro e promotor de ciladas (p. 145), embora o considerasse já um velho alquebrado, de asa partida (p. 57).
Irmão de Bernardo Ravasco e tio de Gonçalo Ravasco, jovem que apagava com sangue as nódoas das injúrias passadas (p. 47), um dos encapuzados da emboscada contra o alcaide-mor Francisco de Teles Menezes, defendia os seus e os demais homiziados, no direito de lutar com todas as armas contra as arbitrariedades do governo. O colégio dos jesuítas era o lugar de conspiração e o refúgio para os assassinos perseguidos, que cometiam crimes em nome da defesa do povo baiano. Ser a favor da morte para defender a vida não deixa de ser uma contradição e assinalar um comportamento dúbio. Vejamos o momento em que Vieira tenta tirar o sentimento de culpa do irmão por ter tramado o assassinato do alcaide:

A virtude está subordinada aos interesses do reino. A religião já não significa alheamento ao mundo, não para mim. O maior pecado é a omissão. Portanto, não sofras com o que está acontecendo.... Como piedoso homem choras teus meles mas, se não houvessem feito o que foi feito, o inimigo desenfreado já não se contentaria apenas com a cidade e seus cabedais, porém com grande ousadia havia de se apossar das almas da gente sem haver quem lhe pusesse freio a tanto desaforo. Estás acudindo nossa santa fé católica e por lealdade à Coroa te arriscas. (p. 47)
A morte de tal figura, como tantas mortes, traria mais benefícios que faltas. (p. 67)

O comportamento barroco que se percebe em Maria Berco, por seu dilema entre a carne e o espírito; em Gregório, através de seus excessos e de suas indisciplinas, e que se perfigura em atitudes contraditórias do Padre Vieira, é extensivo à população e até a alguns padres que se comportavam de forma paradoxal:

De noite, aqueles mesmo freqüentadores de missas andavam em direção aos calundus e feitiços. Homens e mulheres... Deliravam, dançavam de maneira que muitos acreditavam ver dentro deles o próprio Satanás. Quando se confessavam na Igreja, escondiam isso dos padres, apesar de não ser raro ver-se um sacerdote em tais cerimônias. (p. 14)

Aliás, o comportamento dos padres é completamente diverso do que defendia a igreja católica, numa demonstração de que o voto de castidade, pelo menos ali no estado da Bahia, não podia ser cumprido. Em várias passagens da obra de Ana Miranda isso fica evidenciado:

Encostado à janela Gregório de Matos observava uma negra que passava seminua, descendo a ladeira com um altivo movimento nos quadris. Um padre a acompanhava... “Lá vai o frade fornicão”, disse Gregório de Matos. Frade descalço pregando de meia. São uns velhacos. Recebem putas nos conventos, saem à noite em diligências sedutoras, às vezes disfarçados, transformam igrejas em alcovas. Na manhã seguinte acompanham a procissão com hipocrisia, açoitando-se diante de todos, ainda com os odores da ardente noite anterior... E vêm com lérias nos sermões a recomendar cilícios. Os valores da alma estão enterrados. (p.102)
Um dos padres que visitava a viúva era o abade do convento. Dele se dizia que roubava as rendas da instituição para acudir ao sustento vicioso (p. 92)

O Padre Eusébio de Matos, irmão de Gregório e excelente pregador, ardentemente admirado pelo Pe. Vieira, é expulso da Companhia de Jesus por conta do seu envolvimento declarado com mulheres e pelo fato de ter vários filhos bastardos.
Tais permissividades, segundo o poeta Gregório de Matos, em justificativa sobre os seus excessos, não era culpa de quem as cometia, mas da própria cidade que favorecia as tentações através do grande número de mulheres à disposição:

Achava que a culpa de seus pecados não era sua. Na cidade havia muitas mulheres disponíveis... segundo o poeta, todas eram, especialmente as viúvas, as abandonadas pelos maridos, as casadas com “broxas e capados”, que não gastavam a cera por não pegar o pavio. As disponíveis, quase sempre mulheres mais velhas. (p.127)


Conclusão

A própria Ana Miranda defende o poeta, dizendo que Boca do Inferno não era Gregório de Matos. Era a cidade. Era a colônia. Então não era barroco só o poeta, mas toda a colônia, desde que consideremos o conceito de “barroco”, como nome de uma arte e de um comportamento próprios de sociedades de Corte monárquicas e absolutistas e que ele seja entendido fundamentalmente como “ostentação”, “acúmulo”, “jogo de palavras”, “deformação”, “excesso”, “ludismo”, “niilismo temático”. Sobretudo como a engenhosidade de uma tendência que faz com que o caminho mais reto entre dois pontos pareça uma curva, recuperando as palavras de João Adolfo Hansen (1989).


Bibliografia


BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987.
CEREJA, William. A literatura brasileira. Rio de Janeiro: Atual, 1999.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MOISÉS Massaud. A literatura Brasileira através dos textos. 12ª ed. São Paulo: Cultrix. 1986.
MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2000.
SANT’ANA, Afonso Romano de. Barroco, a alma do Brasil. Rio de Janeiro: Bradesco Seguros/Comunicação Máxima, 1997
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco, São Paulo: Editora Perspectiva,1989.

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