quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Memórias e paixões

O Manauara Milton Hatoum tem quatro romances publicados. Desses, três lhe renderam a maior premiação da literatura brasileita, o Jaboti


JORNAL O POVO - CAderno Vida & Arte - 09 Jan 2010 - 18h36min

Dois Irmãos (2000) seria sua última aposta. A repercussão que teria com o livro, que custou três anos de dedicação exclusiva, diária e em tempo integral, apontaria os rumos dali para frente. O manauara Milton Hatoum, hoje 57 anos, estava prestes a decidir por prosseguir na vida acadêmica, lecionando, ou assumir-se de vez escritor. Era tudo ou nada.

Dez anos depois, Dois Irmãos ocupa as primeiras posições entre as publicações mais importantes nesse começo de anos 2000. Traduzido para mais de 10 línguas, entre elas o árabe e o grego, com mais de 100 mil exemplares vendidos somente no Brasil, o livro permitiu ao escritor viver de literatura. Quando foi publicado no exterior, o livro recebeu destaque em jornais como o britânico The Guardian e o estadunidense The New York Times. E mais: depois de um hiato de uma década sem publicar & o último trabalho é de 1990, o romance Relato de um certo Oriente & foi justamente a obra que provou para Hatoum ser improvável ser feliz fazendo outra coisa. ``Sou muito pessimista, não esperava isso``, confessa, motivado principalmente pela dificuldade de reimpressão do primeiro trabalho, Relato... que, assim como Dois Irmãos e Cinzas do Norte (2005), foram vencedores do Prêmio Jabuti na categoria romance.

Considerado um dos maiores nomes da literatura brasileira atual, Hatoum recebe com extrema simplicidade a informação que o livro integraria mais uma lista. ``Fico muitíssimo honrado``, agradece. Afirma, ainda, não ter preferência por nenhuma de suas obras, embora admita que a publicação lhe deu ``certo trabalho``. Foram 17 versões até chegar àquela editada pela Companhia das Letras e elogiada por nomes como Raduan Nassar (Lavoura Arcaica, 1975). A característica comum a todas as obras está fortemente relacionada à experiência pessoal. ``Todos os meus livros têm dados autobiográficos, emitem sinais vivos de uma suposta autobiografia. Não gosto de uma literatura artificial, distante da vida``, expõe. ``O livro foi uma história de amor, uma entrega. Paixão é o sol da literatura, é estar sem vida``.

No centro do enredo, o livro acompanha a história de dois irmãos gêmeos, Yaqub e Omar, e suas relações com a mãe, o pai e a irmã. Na mesma casa, localizada em bairro portuário de Manaus, moram Domingas, a empregada da família, e seu filho Nael, um menino cuja infância é moldada pela condição de filho da empregada. Na tentativa de buscar a identidade de seu pai entre os homens da casa, Nael narra os acontecimentos que lá se passam, testemunhando vingança, paixão e relações arriscadas.

É por meio de seu ponto de vista que o leitor entra em contato com Halim, o pai, sempre à espera da decisão mais acertada diante dos abismos familiares; com a desmedida dedicação da esposa Zana ao filho preferido Omar; com o trauma de Yaqub, o filho que, adolescente, foi separado da família; com a relação amorosa entre Rânia e seus irmãos; com a vida simples e cheia de renúncias da mãe Domingas.

A questão da busca pela identidade, aliás, é tema central em Dois Irmãos, em toda a obra de Hatoum e em boa parte da literatura brasileira contemporânea, segundo aponta a professora do Departamento de Literatura da Universidade de Fortaleza (Unifor), Aíla Sampaio. Como um dos romances mais importantes da primeira década do ano 2000, de acordo com a professora, Dois Irmãos contempla um trabalho estético e de potencialidades da língua comum ao trabalho de Hatoum, com a diferença de ser bem mais palatável. ``Ele se aproxima de um público maior sem perder o rigor estético``, pontua. Aíla aponta as sutilezas da obra como seu principal mérito. ``A maioria dos elementos é sugerida. Hatoum não entrega tudo de cara, o livro é um percurso, uma descoberta``, finaliza. (Angélica Feitosa)