domingo, 17 de agosto de 2014

O ORTÔNIMO, OS HETERÔNIMOS E A OUTRA COISA, NA CALIGRAFIA DO POLÍGRAFO LINHARES FILHO






Vianney Mesquita*

O que penso do mundo?
Sei o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

[Alberto Caeiro – heterônimo de PESSOA, FERNANDO Antônio Nogueira de Seabra  - *Lisboa, 13.06.1888; +Lisboa (Jerônimos), 30.11.1935].



Procedia a uma regulagem nas minhas (como eu) desorganizadas estantes, quando divisei A Outra Coisa na Poesia de Fernando Pessoa, do escritor polimático Linhares Filho, professor titular de Literatura Portuguesa da U.F.C. mestre nesta linha investigativa (Pessoa) e doutor no mesmo veio (Miguel Torga).
José Linhares Filho, de quem experimentei o prazer de assistir ao lançamento do broto intitulado Junto à Lareira Invisível, há poucos meses, é lavrense (da Mangabeira), como ocorrem ser Dimas Macedo, Batista de Lima, Josafá e Joel Linhares e Joaryvar Macedo, bem assim muitos autores de renome, procedentes desta fonte prolígera de pessoas de letras, cultura e ciência.
Tanto em razão de sua diversa e qualificada produção na poesia, ensaio e noutros gêneros de escritura, como, em particular, em decorrência dos estudos empreendidos em profundez acerca de Pessoa e Miguel Torga (Adolfo Correia da Rocha), LF é produtor apreciado, estudado e policitado no Brasil, Portugal e nas várias nações lusofônicas, razão por que constitui nome de referência terciária no ecúmeno literário nacional e mesmo ultrapassando os limiares patriais do idioma português.
Na releitura do mencionado clássico da ensaística literária, restou mais cristalina ainda (a leitura repetida tempos após é procedida sempre noutra perspectiva) a ideia de que descobrir lances novos, por exemplo, na produção de literatos da grandeza de Machado de Assis, Eça de Queiroz, José de Alencar, Fran Martins ou Fernando Pessoa não constitui labor no alcance das pessoas comuns, porquanto, se pensa, desarrazoadamente, suas obras já restam eficientemente dissecadas pelos mais eminentes analistas.
Desta sorte, depreende-se a noção de que a Arte, na sua acepção melhor, não é tão estreita ao ponto de se esgotarem valores latentes, e sempre haverá no seu recôndito entretons ainda intocados e que somente poderão ser devassados pela argúcia do estudioso exigente e fiel à pesquisa para descodificação perfeita da mensagem.
A Outra Coisa na Poesia de Fernando Pessoa, ora apreciada com visão renovada, diversa da leitura inaugural, não constitui, decerto, um livro a maior na bibliografia passiva do Lisbonense notável, conforme se poderia erroneamente supor a priori, pois LF percorre intimamente o discurso admirável do Poeta luso e, sine ira et studio, no frasear de Públio Cornélio Tácito, imagina, supõe, fotografa, conclui e explica, com a clareza do bom tradutor, as diversas facetas da obra do Autor de Mensagem.
Linhares Filho estabelece as relações entre o ortônimo e os heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis; exprime singularmente as posições de Caeiro e Reis, bem assim o relacionamento de Campos-Caeiro; formula coerentemente as soluções idealista e realista no contexto pessoano, explicando, no que chamou solução realista, o infinito de Pessoa, o impossível de Reis e o realismo de Campos.
Linhares Filho, pois, no volume sob comento, deu continuidade ao seu fado de excelente escritor de ensaios, garantindo um lugar de destaque no concerto da crítica especializada; e, ao demostrar a personalidade multíplice do Escritor de Primeiro Fausto, arremata com o enfeixe maior de Pessoa – o empenho deste em compreender o mundo e atingir o ser.
O experimento literocientífico sob exame, por conseguinte, malgrado assunto espreitado amiúde por teóricos de toda parte, é uma vertente exata para quem tencionar proceder a incursões mais demoradas pela obra de Fernando Antônio Nogueira de Seabra Pessoa, em decorrência da absoluta originalidade das suas proposições.
Glória e paz e parabéns e vida longa ao excelso ensaísta e enorme cristão, ocupante de uma cadeira (a de Luís Antônio da Rocha Lima) na Academia Cearense de Letras, o lavrense José Linhares Filho !  


Mademoiselle K: um casamento entre o Jornalismo e a Literatura





A crônica é um gênero essencialmente jornalístico; simples, direto e sem firulas, por isso saboroso. A mistura de ficção e realidade somada a uma pegada poética e à astúcia criativa dos escritores deram literariedade ao gênero, que foi /é praticado por uma plêiade de diferentes épocas: Machado de Assis, Nélson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Rubem Braga, Martha Medeiros, entre tantos.

A leveza da linguagem, que se aproxima da oralidade, torna o texto corrediço, fazendo fluir a leitura e dando menos densidade a assuntos ligados à vida social, política, econômica etc. Ruy Lima, jornalista experiente e leitor atento do texto literário, transpõe a fluência de sua oralidade para o texto escrito e, em seu livro Mademoiselle K e outras histórias (2013), exercita com humor e ironia sua crítica à sociedade e sua hipocrisia, aos políticos e suas tramoias, mesclando experiências de viagem ao cotidiano sem rotina com a fictícia amante francesa.

Mademoiselle K é um personagem  usado estrategicamente pelo autor para falar dos costumes do nosso País, das prioridades dos nossos governos (“Cada governo deixa sua marca da maneira que acha mais adequada. O nosso optou por obras monumentais de engenharia. Coisas vistosas, Bonitas de se ver. Mas não necessariamente úteis ou prioritárias. O superaquário da praia de Iracema, o novo estádio do castelão, de mais de 500 milhões de reais” p.26), numa sinceridade destemida admirável. Sua ironia, bem como a ingenuidade da francesa dão um tom de humor aos assuntos sérios, como as obras faraônicas dos governos, a Copa do Mundo no Brasil e seus dirigentes, a monarquia, deputados negligentes com o pleito, com assuntos em foco  como a sogra, o casamento, o cinema, o metrossexual, o sexo tântrico, o futebol, os dançarinos profissionais, o medo de avião, as dietas, entre tantos mais graves e mais triviais, numa miscelânea interessantíssima de situações.

A sua vivência como repórter nos coloca em cenários como os das cidades de Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, transpondo-nos rapidamente à Manhattan, Seul, Joanesburgo, Guadalajara, Paris, Londres ou emoldurando acontecimentos passados em países como Cuba, México, Cabo Verde, China. Convivemos, durante a leitura, com personagens reais como Fidel Castro, Jorge Luís Borges, Ferreira Gullar, Octavio Paz, Pelé, Galvão Bueno, Silvio Rodriguez, Elis Regina, Henfil, Wanda Figueiredo, Ângela Borges, Adolfo Bloch, vivendo com eles episódios curiosos. Participamos, também, das experiências na cobertura jornalística que fez na Copa de 2010 na África e de suas muitas incursões jornalísticas dentro e fora do Brasil, tal a cobertura da greve geral que detonou o regime militar no Chile em 1984.


A ternura dos relatos que retomam a infância em Belo Horizonte e a família; a ironia com que refere os assuntos ligados à política e à economia; a sinceridade com que fala de prazeres e desprazeres da vida e das relações afetivas; a sensualidade com que atura as frivolidades da amiga-amante, tudo revela a cosmovisão e os valores de um homem que não se mantém à margem do poder, mas não se rende ao jogo hipócrita dos valores que ele impõe. A prosa do Ruy é elegante, corta sem deixar cicatriz; ele finaliza os episódios de modo sarcástico ou evasivo sem deixar brechas para o vulgar ou o vazio. Diz o que quer sem pedir licença. E Mademoissele K, a amiga, é a chave da perdição e da inocência de suas palavras, a estratégia bem urdida que propicia o casamento perfeito entre o Jornalismo e a Literatura!


Aíla Sampaio


TRÊS LAPSOS DE ENTENDIMENTO




Vianney Mesquita*
Na primeira vez que me enganares, a culpa será tua; na seguinte, será minha. (Anônimo).

As significações equívocas, antes ocorrentes mais em circunstâncias de uso da língua no universo coloquial, sem o escopo de socializar conhecimento, tampouco de lecionar, encontram-se também, hoje, nos espaços de emprego da linguagem culta, em que se codificam, por exemplo, feitos e fatos científicos a se propagarem em livros ou quaisquer suportes de informação.
Exibem-se inumeráveis exemplos desses logros elocutórios até em legislações e documentos de órgãos oficiais do Brasil, fato a se deplorar, pois conduzem o leitor à arapuca do erro, desabilitando nosso código glossológico perante os demais do ecúmeno linguístico, nomeadamente deste exercitado nos Estados Lusofônicos – o Português.
Reportamo-nos a três eventos que a nós nos parece oportuno trazer à balha, pelo emprego genérico e indiscriminado em textos de lições escolares, dispostos legais, pronunciamentos formais, discursos e comunicações científicos e literários, peças de Doutrina e Jurisprudência, Bioestatística governamental et reliqua.

Alternativa

Consoante expressamos, em razão do largo e inadequado uso da dicção alternativa e suas variações cognatas, com acepções distintas daquelas que realmente conotam, impende tomar-se em consideração a ideia de que alternativa provém de alter (Latim) = outro, outra.
            Por conseguinte, existe, tão-só, UMA alternativa.
            Diz-se, em Português correto, a alternativa é esta, de sorte a não se cogitar em (cogita-se em) diversas alternativas, num “leque” de alternativas (Proh pudor!), porquanto, por definição, o vocábulo corresponde à Sucessão de duas coisas reciprocamente exclusivas, isto é, uma opção entre duas coisas.
            Efetivamente, pois, a opção – não sendo uma coisa – será a outra (alter), a alternativa.
            Opção será, pois, a alternativa para eliminar as construções frasais equivocadas, feitas, amiúde, a contrapelo das regras da Língua, desprezando, in casu, a procedência glossológica da palavra.

            Nascer morto

            Quiçá inglória seja nossa luta em objeção a expressões desse jaez. Todo o Mundo, até o escrevinhador da língua culta, como adiantamos há pouco, suporta, aceita e aplica palavras e expressões sem qualquer consistência glotológica. Pouco se lhe dá se está ou não depauperando a língua do Prof. Dr. Horácio Dídimo.
            Muita vez, são expressas até antíteses violentíssimas, como na consagrada (miserável consagração!) – e universalizada nas línguas românicas – dicção NASCER MORTO, utilizada pela Bioestatística, até em mensagens de lavra e responsabilidade estatais, no Brasil.
            Se NASCER significa, conceitualmente, começar a ter vida exterior, vir à luz, enxergar a luz, como pode alguém NASCER MORTO? Nascer, então, é o mesmo que morrer?
            Diga-se, por conseguinte, a mulher pariu um feto sem vida, delivrou um corpo morto, ou algo semelhante. NASCER, por conseguinte, foi, é e será, indefinidamente, o antônimo perfeitíssimo de morrer.
            Lamentavelmente, com alternativa, ainda alimentamos expectativa; com relação a nascer morto, entretanto, parece estar a “guerra” definivamente perdida, a não ser, entre nós do Ceará, com o adjutório da Academia Cearense da Língua Portuguesa.

            Entre xis e ípsilon ou de xis a ípsilon?

            Eis a derradeira demonstração de emprego atrapalhado de expressões, na indicação, notadamente em trabalhos universitários, de intervalos de duas grandezas ou coisas.
            É necessário enxergar-se a grande diferença bem visível nas duas dicções, no caso, exempli gratia, de se apontar intervalo etário.
 Ao se expressar a ideia de que as pessoas ouvidas na pesquisa revelaram nas respostas idades de 28 a 40 anos, evidentemente, se depreende que os números lindeiros, as idades-limite inferior e superior, onde estão contidos 28 e 40, são 27 e 41 anos, isto é, aqueles que têm ENTRE 27 e 41 anos, na realidade contam DE 28 A 40 anos.
 Muitas vezes, os pesquisadores expressam que as crianças do seu experimento, por exemplo, nasceram entre 2011 e 2012, tal significando dizer que ainda não nasceram, porquanto, ENTRE 2011 E 2012, nada existe.
Então, rematando o caso, ENTRE os anos de 1927 e 1946, estão os períodos DE 1928 a 1945, não, como é constante e equivocamente apontado. ENTRE e E (aditiva) são intervalos de fora, e não devem ser contados, ao passo que DE-A hão de ser considerados.
De tal sorte, DE XIS A ÍPSILON # de ENTRE XIS E ÍPSILON.


*Acadêmico ocupante titular da Cadeira número 37, cujo patrono é Estêvão Cruz.

           

             

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