sexta-feira, 14 de abril de 2017

As teias ficcionais de Safira não é flor




  





Aíla Sampaio
(Professora da UNIFOR e doutoranda em Letras pela UFC)

 

O romance Safira não é flor, do jornalista Pádua Lopes, transporta o leitor para a Europa, mais precisamente para a Itália e a Grécia, e o faz mergulhar na história, na arte e na gastronomia das regiões visitadas nesses países: Veneza, Florença, Roma, Milão, Atena, com descrições suntuosas sobre um passeio pela “larga rodovia na orla do Mar Egeu, passando diante da ilha de Salamina” e pelo Istmo de Corinto, (LOPES, 2016, p. 159), com detalhes históricos diluídos na trama. 


A narrativa em primeira pessoa dá a impressão de ser o protagonista, um homem culto e apaixonado pela arte, o alter ego do autor. São as teias ficcionais que enredam o leitor e o fazem refletir, viajando na imaginação, sobre a liquidez dos amores virtuais que o casal, seu companheiro de viagem, vive.

Duas pessoas casadas – Pedro Pantoja e Safira - conversavam furtivamente pela internet e resolveram se conhecer pessoalmente num encontro que já era a partida para uma viagem à Europa. Felinto Estrada, o narrador, os tem como companheiros de aventura, mas logo percebe que os seus interesses são diversos: o casal quer apenas viver o romance, enquanto ele se interessa por conhecer todos os monumentos e obras de arte sobre os quais já leu, esbanjando um vasto conhecimento prévio de todos eles. 

O título traz uma ironia velada. Safira, a pedra preciosa, na narrativa, é o nome da mulher que deixa o marido resignado em casa, com os filhos, e viaja para viver uma aventura com um desconhecido, ávida por dar tempero à sua vida sexual. De personalidade leviana e fútil, ela conhece o seu papel de apenas amante e companheira de viagem, mas demonstra querer mais que isso. Assim, Safira não é flor parece a definição in absentia da mulher, que se faz por um adágio que tem tudo a ver com ela: 'Safira não é flor… que se cheire'! 


Tanto assim que, após o retorno, ela confessa, em carta a Pantoja, que visitava sites pornográficos na internet e sentia “anseio de libertinagem” (LOPES, 2016, p. 253), justificando, desse modo, o adultério; retoma a relação com o marido e faz em sua companhia viagem de lua de mel  ao velho mundo, deixando o amante para trás, após tentativas vãs de reconciliação com ele. Ela conclui, afinal, que “a internet é um atalho para a felicidade, que enfeitiça para confiar incondicionalmente nos parceiros virtuais” (LOPES, 2016, p.248).

A trama tem função na narrativa, mas é secundária. O leimotiv é mesmo o turismo cultural: os museus, com as mais variadas obras de arte, os monumentos históricos, os teatros, as ruas e as belezas arquitetônicas. Embora, por vezes, pareça um romance histórico, trata-se, na verdade, de literatura de viagem. A história não é, entretanto, autobiográfica, configura um relato de viagem, que faz transbordar o “universo cultural” do narrador, cujas observações expõem mais para o “âmbito cultural dele mesmo do que para o lugar visitado, ainda que [fale] também deste”, como assegura Junqueira (2011, p. 45).

Ribeiro adverte que “Os relatos de viagens são subgêneros da biografia e da autobiografia”, assegurando que esses dois últimos gêneros “contemplam a narrativa de uma vida toda, com início, meio e fim”, enquanto “o relato de viagem torna-se apenas uma ínfima parte de um todo, uma espécie de metonímia da vida”. De fato, a narrativa de Estrada traduz um recorte do mundo dele, seu vasto conhecimento das artes visuais, da literatura e da arquitetura, revelando seu caráter sensato e sério de advogado bem sucedido, o que não o impede de se deixar envolver pelas peripécias dos amigos amantes, hedonistas e autocentrados demais para compreenderem o significado da viagem para o amigo. A história do casal foi, na verdade, um pretexto para a demonstração da vasta cultura do narrador e para uma crítica à relações factíveis iniciadas em sites criados para essa finalidade.

No retorno ao Brasil, Pantoja renega a experiência da viagem com alguém que conhecia apenas das salas de bate-papo, e o romance tem fim como começou: no aeroporto. Ele continua suas aventuras virtuais e suas viagens, como um “Don Juan da era digital” (LOPES, 2016, p.230). Sugere que Estrada escreva um livro e entrega a ele os e-mails e a carta de Safira. Essa é uma estratégia para que o narrador não onisciente tenha conhecimento total dos fatos e consiga arrematá-los.

O discurso literário de Pádua flui com leveza na pena de Estrada. Tudo é perfeitamente descrito, como a construir um retrato realista dos cenários e dos personagens. Como a escrita se reporta a um passado (ficcional) recente, todos os detalhes são resgatados da memória, e o fluxo de informações envolve o leitor, que se deixa absorver pelo turismo cultural que faz com a leitura e entende a crítica, sem moralismo, às relações inconsistentes e efêmeras iniciadas na internet, sem solidez no mundo real.

Há várias considerações na obra sobre o assunto. Ana Marta, personagem circunstancial que o trio conhece em Roma, diz: “A internet abriu um campo inesgotável para as fantasias, sobretudo as da sexualidade. O adultério virtual choca porque as mulheres estão indo ao ataque por parceiros e por estímulos da libido” (LOPES, 2016, p. 80). Estrada completa a conversa falando sobre a transformação nos casamentos, a difusão de pornografia e o consumo de drogas. Já Pantoja fala do vício e da susceptibilidade a crimes virtuais. O romance não propõe, mas leva o leitor a uma reflexão sobre o uso da internet e a fragilidade das relações por meio delas iniciadas; coloca o homem e a mulher em igualdade de condições, sujeitos aos mesmos riscos, sem sexismo ou preconceito. 


É, de fato, auspiciosa a estreia de Pádua Lopes no romance. Valem o passeio pela Europa, as 'aulas' de história e  as considerações sobre o tema atual que tanto tem suscitado atenção... e o mais interessante: tudo enredado pelas teias ficcionais, sem qualquer compromisso com a verdade, embora 'cutucando-a com vara curta'. Aguardemos o próximo!


REFERÊNCIAS


LOPES, Pádua. Safira não é flor. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2016

JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP – FFLCH - Editora Humanitas, 2011. v. 1. 129 p.

RIBEIRO, Roberto Carlos. Impressões de um viajante europeu na Ásia .In: Ciência & amp; Letras . Porto Alegre, n. 48, p. 223 - 233, jul/dez. 2010. Disponível em: Acesso em: 30/03/2017





sábado, 25 de junho de 2016

NOVO LIVRO DE VIANNEY MESQUITA





Estão sob editoração nas oficinas da Expressão Gráfica, casa publicadora de Fortaleza, os originais do vigésimo livro do imortal e titular das Academias Cearenses da Língua Portuguesa e de Literatura e Jornalismo, Vianney Mesquita, o qual ficará pronto ao cabo de trinta dias (25 de julho de 2016), conforme programado pela Editora.
O volume Esboços e Arquétipos (Língua, Ciência e Literatura) encerra quatro módulos: um de Língua, com três capítulos, outro de Ciência, reunindo, também, três segmentos temáticos; o terceiro tem como recheio assuntos literários – nomeadamente crítica, com doze capítulos; a quarta seção compreende Literatura Passiva, envolvendo apreciações acerca da obra do Escritor, em quatro partes, assinadas pelos escritores coestaduanos Dimas Macedo, Edmar Ribeiro, Batista de Lima e Régis Kennedy G. Cruz.
As guarnições são da lavra do Prof. Régis Kennedy, o qual abre os comentários com a opinião do Prof. Dr. João Bosco Feitosa, da Universidade Estadual do Ceará, para quem Mesquita, [...] além de um arquiteto a posteriori, é um restaurador de ousadias, um educador de inspirações para quem teima em se comunicar por textos, em meio a contextos que desafiam e expõem nossa emoção e esforços de produzir ciência.
Régis Kennedy, a seu turno, expressa a ideia de que [...] Aprecio o elo por ele procedido da palavra com a Palavra, agora com este trabalho – Esboços e ArquétiposLíngua, Ciência e Literatura – ao trazer ensaios literários multivariados, porém alargando o temário de sua prosa, para cobrir conceitos, também, de teores da Língua Portuguesa e Filosofia da Ciência [...].
A capa, elemento que concede o ensejo de se apreciar a arte desemparelhada do professor, escritor, artista plástico e acadêmico cearense Geraldo Jesuino, homenageia três ícones do conhecimento mundial em todos os tempos – Isaac Newton (Ciência), Luiz Vaz de Camões (Língua) e James Joyce (Literatura) - ao lado de seus pares, em alcance intelectivo, constituídos por outro trio de próceres do saber – estes, cearenses:
- Doutor Manassés Claudino Fonteles, docente da Faculdade de Medicina da UFC, ex-reitor da Universidade Estadual do Ceará e da Universidade Mackenzie, de São Paulo, imortal-titular das Academias Brasileira e Cearense de Medicina, pesquisador de crase internacional e autor de centenas de textos científicos editados em magazines da área em todo o Mundo, no livro representando, com seu par Isaac Newton, o segmento da Ciência, no plano internacional, ali privilegiado;
- Professor Myrson Melo Lima, da UECE e do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará - IFCE, docente dos mais latos conhecimentos e ilimitados recursos no que respeita ao Código Linguistico Lusitano, autor didático de renome (vejam O Essencial do Português - 6. ed., Fortaleza: ABC, 2007), posando com Luiz Vaz de Camões como embaixadores mundiais do módulo Língua, em Esboços e Arquétipos; e
- Escritora Giselda Medeiros, lídima representante, em matéria de qualidade, dos gêneros ficção, poesia e crítica, é componente imortal das Academias Cearenses de Letras e da Língua Portuguesa, das Academias Fortalezense de Letras e de Letras e Artes do Nordeste – ALANE, e da União Brasileira de Trovadores. Registra, entre outros trabalhos publicados, Alma Liberta (1986), Tempo de Espera (2000), Sob Eros e Thanatos (2002) e Crítica Reunida (2007). É detentora de muitos prêmios literários, pois escritora de fino veio, além de pessoa – a igual dos dois outros cearenses homenageados na capa - de alçada baliza moral e apurado traço amistoso e social. Giselda Madeiros está ao lado do romancista, contista e poeta irlandês (expatriado) James Joyce, investida, no novo trabalho de Mesquita, como representante global da Arte de Escrever.
O escritor agente destas notas, consoante expresso na quarta capa de Esboços e Arquétipos - Língua, Ciência e Literatura, recebeu da Professora Doutora Joseneide Franklin Cavalcante (in memoriam), o sequente comentário, reproduzido de Repertório Transcrito (MESQUITA, 2000) e respeitante ao trabalho do mesmo autor, sob o titulo de Resgate de Ideias (1996):
[...] Sobre o Vianney Mesquita escritor, agora mais maduro e profundo, repito minhas palavras de ontem: à semelhança de Michelangello, esculpe cada frase, cada construção. As palavras são seu mármore, a pena (agora, o computador) seu cinzel, a pureza das formas seu modelo, a busca da perfeição sua exigência. Seus escritos são Moisés que adquiriram a própria voz e dele se libertaram, ganharam autonomia. As palavras, artesanalmente trabalhadas, vão ganhando formas, muito suas, e que poderão ser tão variadas quanto ele as queira variar, mantendo, entretanto, a elegância e a pureza de uma língua nacional que, agonizante, deveria suplicar, em favor da sua sobrevivência, por um Vianney Mesquita que já quase não se consegue encontrar [...].
Esboços e Arquétipos – Língua, Ciência e Literatura (Expressão Gráfica), do escritor palmaciano, fundador e ocupante da Cadeira número 1, da Arcádia Nova daquela Cidade (Palmam qui meruit ferat), terá lançamento festivo em agosto deste ano, nas dependências da Universidade Federal do Ceará.




domingo, 3 de abril de 2016

O canto afinado de pássaros em pleno voo: a poética de Filipe Catto

         Foto: Google/imagens
 
Filipe Catto parece ainda um menino, não na maturidade artística, mas no jeitinho brejeiro de olhar, na naturalidade com que se joga na vida e no palco, como se representassem o mesmo lugar: o seu lugar no mundo. Seu canto afinado de pássaros em pleno voo junta o popular ao erudito, mistura o drama à alegria do amor num romantismo sem mistérios que transita pelos gêneros musicais mais diversos sem qualquer descida de tom: baladas, tango, samba-canção, blues, enfim, o que ele entender de cantar. Sua intimidade com o microfone e sua presença cênica seduzem homens e mulheres, despreocupados com construções de gêneros, irmanados no humano demasiado humano.
Além de intérprete eclético, ele é também senhor das palavras, compositor de letras que falam bem mais do que dizem, gritam nos subtextos, nas metáforas e imagens que dão voz à sua sensibilidade e à sua delicadeza na experiência com o mundo.
Em “Saga”, ele faz um exercício metapoético belíssimo sobre os delírios do poeta, que maldiz a sina, mas, com a sua própria história, escreve os seus versos num processo criador como um instantâneo da memória. Leiamos alguns versos:

Enquanto andava, maldizendo a poesia
Eu contei a história minha pr´uma noite que rompeu
Virou do avesso, e ao chegar a luz do dia
Tropecei em mais um verso sobre o que o tempo esqueceu

E nessa Saga venho com pedras e brasa
Venho com força, mas sem nunca me esquecer
Que era fácil se perder por entre sonhos
E deixar o coração sangrando até enlouquecer

O vício do amor e suas farpas colocam o sentimento entre pedras e brasas, fazendo os sonhos correrem riscos e a emoção se perder. Mas tudo vale e faz parte da saga de cada um. Só quem vive e encara é capaz de 'encharcar-se de estrelas', sossegar o peito por meio da música para ver a manhã chegar em vez de enlouquecer deixando o coração sangrar. A poética de Catto tem esse sentido de positividade. O amor dói, mas há sempre um modo de transfigurar o sofrimento pelo canto, pela palavra, pela crença no poder infinito que guardamos.

Não à toa muitos versos seus nos lembram a irreverência dos poemas cantados de Cazuza e os 'casos' de Noel Rosa tão bem contados nas letras de suas músicas. “Em roupa do corpo”, um caso acabado samba nas palavras do poeta, como sambava nas de Rosa. Nem todo amor é felicidade. No samba, o clichê do amor-desencontro é tão necessário como um trago de bebida e os passos no salão até decantar a dor:

Deixei meus trapinhos em cima da cama, fiz tudo ligeiro
Peguei maquiagem, valise e coragem enquanto não vinhas
Eu peguei o dinheiro da minha passagem, que era só de ida
Não olho pra trás, parti e não vou mais é voltar pra essa vida

Deixei na tua casa uma rosa vermelha e um bilhete dizendo
"Cuide bem dessa rosa, trate ela melhor do que tratou a mim"
Nem beijei o papel, dobrei, saí no calor do momento
Vou com a roupa do corpo mesmo sem ter pra onde ir.

A mesma característica de “Roupa do corpo” está presente em “Crime passional”. O samba é a catarse, a purgação dos amores desfeitos e das traições que ainda dilaceram e que se estendem infinitamente pela música, tocando quem canta e quem escuta. Quantos amores não já acabaram em tragédias (íntimas ou públicas), se transformando em notícia de jornal, romance e letra de música? Se a morte, no jornal, é tragédia; na canção é poesia:

Três tiros irromperam a noite surda
Pr´um corpo de calor que se extinguiu
Me deu três beijos úmidos de lágrima
Selou meus olhos como um arrepio;

A figura da prostituta, que representa o amor feito comércio e é tão estigmatizada pela hipocrisia da sociedade, nos versos de “Gardênia branca” aparece humanizada e sensível. Mulher da vida não é puta se traz uma flor branca no coração, ou seja, ninguém pode julgar ou ter preconceito, pois a essência está sempre muito além da aparência:

Ela é mulher da vida
Mas não é puta, não
Traz a linda flor branca
Dentro do seu coração

Numa pegada bem irreverente, a la Cazuza, “Ressaca” é um desabafo, um recado desdenhoso a um amor que findou com mágoa. Como um tiro - “Deixo você pra quem quiser ser teu / Pra amantes desbotados que não ardem como eu” – as palavras ferem e
'jogam na cara' que quem joga no amor sempre perde: “Tua ressaca tem o gosto da minha boca”. Leiamos mais:

Deixo você pro seu drink esquentar
Meio álcool, meio água, meio gelo que já derreteu
Deixo a canção pro cigarro engasgar
E a minha lembrança estar
Deixo você pra quem quiser ser teu
Pra amantes desbotados que não ardem como eu
[...]
Enquanto te embriagas entre uma ilusão e outra
Mas sei quando vem esse sol despertar tua manhã ao meio dia
Tua ressaca tem o gosto da minha boca

No poema “Redoma”, escrito quando Catto tinha ainda 15 anos, percebemos a busca do amor que, embora idealizado por ser desejado, não se delineia em fios irreais como no romantismo tradicional. O poeta sabe que não é um rei, ou seja, os seus poderes são limitados, mas podem transcender tudo pelo sentimento. Como Penélope, o eu lírico espera sem a certeza de que o amor virá, correndo todos os riscos, mas sem encontrar razão para desistir, pois o outro, que não sabe da espera, enquanto não despertar, seguirá como um exilado. Essa crença no amor-complemento, na doação recíproca para a plenitude das relações, permanece na poética de Catto até a sua idade atual:

Se eu fosse um rei
Eu te dava abrigo no meu país
Mas eu não sou
Por isso segues como exilado
Sem saber de mim

Hoje não importa nem teu nome
Insisto em te afirmar
Que essa espera é só uma gota
Que só se faz transbordar

Os versos de “Adoraçãomostram realizado o encontro tão desejado em “Redoma”. Sem dúvida, "Adoração" é um dos mais belos poemas de amor da contemporaneidade, uma celebração ao amor vivido e partilhado. Catto foge ao clichê do poeta maldito que só enxerga beleza no desencontro, no abandono, nas vicissitudes dos relacionamentos e, após desejar o encontro e realizá-lo, passa a viver o amor pleno, fazendo-o leitmotiv da sua vida e da sua criação poética. Leiamos alguns trechos:

Como relâmpago, silêncio
Passe de milagre você me pintou
Me toma em teu compasso
Que só no teu abraço
Que eu me escondo do mundo

Pele que é pele não mente
Não esconde, não dissimularia
Meu corpo seja palco
Vertido e tomado em pelo à tua poesia

Na doação em que o corpo se torna palco, em que a pele não dissimula e dispensa ladainha, o amor se faz pleno subterfúgio, sem jogo, conjugando o imperativo do verbo adorar que dá sublimidade ao sentimento. A sensualidade à flor da pele culmina no amor Eros que se configura no verso “Eu adoraria, eu adoraria / Saber o percurso da tua boca à minha”, e se completa, adiante, com “Meu corpo seja palco / Vertido e tomado em pelo à tua poesia” em que o eu lírico joga com a ambiguidade da palavra 'pelo' (preposição ou substantivo), sugerindo o contato da pele, da língua eriçando os pelos e plenificando a poesia. Na antítese do relâmpago e do silêncio que ilustram o modo como esse afeto chegou estão as contradições do amor que se resolvem num abraço capaz de esconder o ser amado do mal que ele tanto teme.

Filipe Catto escreve como quem quer transcender seus próprios enigmas e tem noção de que, por meio dos recursos expressivos que a língua oferece, pode dar forma ao seu pensamento, à sua cosmovisão, à sua exacerbada sensibilidade, à sua verdade de ser feliz num mundo em que há tanto desamor. Quando seus versos beijam a música, temos, então, uma apoteose. Preciso parafrasear o escritor mineiro Lúcio Cardoso para dizer que Catto não é um homem… é uma atmosfera!


Aila Sampaio - Professora da Universidade de Fortaleza

quarta-feira, 23 de março de 2016

Interações entre espaço e personagens femininas nas narrativas literária e fílmica de O Viajante



http://revista.uft.edu.br/index.php/interface/article/view/1953/8608

Sem a arte, a realidade nos mataria!

A Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES traz a público mais uma Antologia, com a compilação de textos considerados significativos, de algum ponto de vista, como é característico de obras coletivas. O número de profissionais da área que enveredam pela literatura faz-me de imediato lançar a pergunta: Por que os médicos procuram a arte da palavra? Não há uma resposta exata. Talvez porque, além de conviverem com a vida das pessoas – seus sofrimentos, medos e esperanças, tomem parte com a fragilidade delas, com a finitude iminente, e sintam necessidade de evadirem-se do peso emocional. Essa impressão minha remete à declaração do filósofo alemão Friederich Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos: “Temos a arte para que a verdade não nos mate”. De fato, os médicos trabalham no limite entre a vida e a morte; se têm o conhecimento científico para a cura de muitos males, têm também a humana impotência diante do imprevisível. Convivem, diariamente, com o tangível da ciência, com a crua força vital, com a terrível certeza do sábio Sileno, que diz ser o sofrimento inerente à condição humana.

Escrever é, desde sempre, uma arte imprescindível para eles e para todos nós; sobretudo nesses tempos líquidos em que tudo escorre pelas nossas mãos. A palavra é a nossa arma, nessa guerra travada com a vida todos os dias; é ela que nos preenche o vazio em que nos jogam as incertezas; é ela que nos defende do silêncio ensurdecedor da mediocridade. 
 
Tantos médicos se destacaram na literatura mundial, que eu não ousaria citar todos, mas gostaria de destacar alguns: Arthur Conan Doyle, escritor britânico que estudou medicina na Universidade de Edimburgo, criador do célebre Sherlock Holmes; o contista memorável Anton Tchekhov, que cursou medicina na Universidade de Moscou; Joaquim Manuel de Macedo, autor do romance A moreninha no Brasil do século XIX; Guimarães Rosa, autor de obras canônicas como Sagarana e Grande Sertão: Veredas; e o português António Lobo Antunes, médico psiquiatra, que utiliza materiais psíquicos, enredos de crises conjugais e contradições revolucionárias em suas obras; especificamente no romance Hei de amar uma pedra, o enredo parte de uma história verídica colhida num hospital em Coimbra, quando um colega seu, também psiquiatra, o chamou para ouvir o relato da história de amor de uma mulher, descrita no livro como "Doente de 82 anos, sexo feminino, idade aparente coincidindo com a real”. Ficção e verdade se fundem num só amálgama.

Como amar a imprescindível dureza hipocrática e a ela sobreviver com um coração que não é de pedra? Somente pela arte, pela transfiguração da realidade; pela criação de uma vida paralela na pintura, na música, na fotografia, na literatura. Há os que seguem alguma(s) dessas veredas sem pretensões, para esgotar a ansiedade e a dor de existir; outros para darem vazão ao pendor artístico, às aptidões antes encobertas pelas densas páginas dos compêndios médicos. Todos, certamente, o fazem pela necessidade de sobreviver aos próprios enigmas.

A diversidade de textos publicados nessa coletânea da SOBRAMES bem atesta a liberdade criadora de cada um. Há os que têm o conhecimento da literatura como um trabalho de linguagem; os que utilizam a escrita com finalidades determinadas; e ainda os que apenas se permitem exercícios catárticos. Seja num discurso de posse, num ensaio sobre um assunto médico, num relato de experiências, numa carta ou numa homenagem a um ente querido morto, rememorações e textos confessionais, se interpõe a capacidade criativa da palavra, que é o que verdadeiramente importa. As narrativas breves atestam a preferência da maioria. Destaco, nessa seara, as artimanhas do humor em narrativas de Celina Corte Pinheiro, Flávio Leitão, José Murilo Martins, Francisco Sérgio de Paula Pessoa, José Fonteles, José Luciano Sidney Marques; os 'causos' bem contados de Dalgimar Beserra de Manezes, José Brayner C. de Andrade, Sebastião Diógenes e Marcelo Gurgel, a maturidade dos contos de Larissa Barros Leal, Fernando Siqueira e José Alves.

A matéria literária vai de casos médicos ao futebol; elocubrações sobre a utopia, reflexões sobre saúde pública, as benesses da maturidade, os “respingos de lembranças” que abrem clareiras de saudade, temas polêmicos como a maioridade e a descriminalização das drogas, uma apresentação de tese de livre docência. Há os que contam e os que se contam, como uma forma de confirmar as experiências vividas ou a própria existência.

Se a prosa envereda por motivos vários, sem necessidade de classificação em gêneros, os versos se espraiam livres ou metrificados em sonetos, ora saudosistas, românticos, memorialistas; ora filosóficos, existencialistas, catárticos, mas sempre cotejando o ritmo e a musicalidade a que fazem jus. Assim são os poemas de Chico Passeata, Alana Maia, Dione Mota, Eduardo Jucá, Emanuel de Carvalho, Eurípedes Chaves Jr., Francisco Andrade Pessoa, Luiz Porto, José Wilson de Souza, Vicente Alencar, Luciano de Arruda, Walter Miranda, Manuel Dias Neto, Sérgio Macedo e Martinho Fernando, cujo lirismo resgata a poesia da vida, celebra amores, faz digressões sobre a passagem do tempo ou lança as efusões da alma.

Se “Beleza é contar a sua história, / de repente ou de memória, em rima branca sem pudor”. Se “Beleza é fugaz prosa ligeira...” como dizem os versos de Isaac Furtado, os textos que aqui estão, em prosa ou em verso, longe de um julgamento estético e subjetivo da minha parte, confluem para o belo, na medida em que proporcionam prazer ou satisfação nos que escrevem. Nascem, todos, de uma percepção súbita, de um encontro com o que os altera, de um estranhamento do comum e trivial. Esse trânsito entre o referencial e o poético, o objetivo e o subjetivo já faz valer cada texto aqui compartilhado com os leitores. Parabéns a todos os escritores, aos citados ou apenas referenciados por seus temas! Pouco importa o compromisso com estilos ou padrões ou a falta dele. Importa entendermos que, pela arte da mentira – a literatura –, transcendemos a montanha rochosa das verdades; nada como uma boa ilusão para não cairmos nas garras da íngreme realidade, com seus riscos de infarto e tédio!

Aíla Sampaio
Professora da Unifor – Doutoranda em Letras pela UFC
Membro da Academia Cearense de Língua Portuguesa e da Academia de Letras e Artes do Norte e Nordeste.
Prefácio da Antologia da SOBRAMES - 2015

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Cirino e o dedilhar de poemas sonoros

                                                                                Foto:Solange Benevides

O violão é um dos instrumentos mais tocados no mundo. O dedilhar das cordas produz uma das mais belas artes: a poesia musical que, mesmo sem palavras, fala à alma. É certo que muitos o tocam por simples prazer, outros, como uma terapia ou passatempo. Há ainda aqueles que dominam a técnica e, mesmo sem a imposição da voz, conseguem a mágica de encantar com a melodia. É esse o caso de Wilson Cirino (1955), músico de formação erudita, compositor, arranjador e professor, que tem iniciado muitos jovens na arte das cordas, como um multiplicador da paixão que motiva a sua vida desde criança.
A predestinação para a música parece ter sido marcada em seus primeiros anos, pois seu pai, dentista e violinista, lhe ensinou a tocar cavaquinho aos 3 anos de idade. Com os saraus que promovia em casa, onde interpretava músicas de compositores como Ernesto Nazareth, Chiquinha Gonzaga, Jacob do Bandolim, povoou o imaginário do menino e plantou as influências que o filho faria florescerem adiante.
Foi o violão que ganhou de sua irmã aos 13 anos que lhe deu a certeza do rumo que queria dar à carreira profissional iniciada na TV Ceará, com sua apresentação no programa Porque hoje é Sábado, e com a participação nos festivais que se realizavam em sua cidade. A busca do aperfeiçoamento levou-o ao Conservatório de Música Alberto Nepomuceno, onde estudou música e teatro, encarando essas artes como fundamentais para o caminho que seguiria.
Com efeito, em 1965, iniciou sua trajetória musical com o Grupo Cactus, que aliava teatro e música.  Em 1967,  apresentou um concerto no Teatro José de Alencar, em Fortaleza, mostrando obras de Chopin e Listz. Dois anos depois, foi classificado no I Festival de Música Popular Aqui no Canto, com a música Rosa, de sua autoria.
          No início dos anos 70, a convite do amigo Sérgio Costa,  foi morar no Rio de Janeiro. Em 1971, gravou dois compactos simples. O primeiro, em parceria com Raimundo Fagner, lançado pela RGE, com as músicas “Copa Luz” e “Nova Conquista,” de sua autoria e de Sérgio Costa. O outro foi lançado pela Continental, contendo as músicas “Baião do Coração” e “ÉGH Galega” também de sua autoria e de Sérgio Costa.
          Ainda no ano de 1971, surgiram os festivais nordestinos da extinta TV Tupi e o Festival da Canção Nordestina, que projetaram os nomes dele, de Rodger Rogério, Ednardo, Ricardo Bezerra, Petrúcio Maia, Belchior, Fagner, Lauro Benevides, Jorge Melo, Luiz Fiúza, Ribamar, Pretextato Melo, Dedé, Branquinho, Sérgio Pinheiro e Manassés. 
         Em 1973, tomou parte no grupo Pessoal do Ceará com os cearenses Belchior, Jorge Melo, Fagner e Sérgio Costa; tempos depois, uniram-se ao grupo: Ednardo Ródger, Teti, Manassés e Edson Távora, completando-se, assim, a geração que é referência para a música cearense até hoje. No mesmo ano, participou do programa Mixturação, da TV Record, no Teatro Record, com os cearenses, os Novos Baianos, o Grupo Capote, Simone, Paulinho Nogueira, os irmãos Clôdo, Climério e Clésio, Walter Franco, Secos & Molhados, Marcus Vinícius Anah e Renato Teixeira. 
          Por essa época, Cirino fez os belos os arranjos da canção Na hora do almoço, com a qual Belchior venceu o IV Festival Universitário da MPB. Foi quando, também, participou da execução de trilhas sonoras para os filmes: Amazônia, A Baleia, Belém Brasília e Uma Colônia de Pescadores - todos de Mário Kuperman – realizados nos anos de 1972/73, em São Paulo; e musicou  um documentário sobre violão para o Instituto Villa Lobos, onde estudava  teoria musical. 
        Sua trajetória ao lado de músicos já consagrados se iniciava, atestando seu talento como compositor, arranjador e instrumentista. A música “Quarto de pensão”, de sua autoria, foi interpretada pela cantora Elis Regina, e “Baião do coração” por Simone. A partir daí, tocou com Gilberto Gil e Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gonzaguinha, Milton Nascimento, Pepeu Gomes, Naná Vasconcelos e fez participação no discos:  Berro (com Ednardo e Mário Henrique); Cauim (com Ednardo e Pepeu Gomes) e Soro ( com vários intérpretes),  tendo reconhecida a sua engenhosidade como músico.
         Em 1978 gravou pela CBS seu primeiro LP:  “Estrela Ferrada”,  indicado como um dos discos mais influentes da música cearense pelo caderno de cultura Vida e Arte do jornal O POVO de Fortaleza- CE. Seguidamente,  realizou trabalhos no Chile e na Argentina com ótima aceitação no meio musical. 
         No ano de 1981, gravou “Moenda” pela RCA  e construiu carreira solo nas noites cariocas. A turbulência da vida íntima e as dificuldades de sobrevivência longe do seu cantochão fizerem-no decidir voltar para Fortaleza, onde realizou alguns shows, começou a ministrar aulas de violão e encontrou paz existencial, mantendo-se avesso a holofotes, jogos de poder e esquemas de mídia. Nunca deixou de estudar música e compor, aperfeiçoando-se cada vez mais na arte que já domina tão bem. 
         O encantamento produzido por Cirino ao pontear as cordas do violão parece confirmar a frase de Confúcio: “A música produz um tipo de prazer de que a natureza humana não pode prescindir”. De fato, Cirino escreveu sua história inspirando, arrancando sorrisos e suspiros profundos de felicidade de quem o ouvia, numa pulsão capaz de transcender a mera existência. Mais que um instrumento de trabalho, o violão é seu companheiro, sua possibilidade de voar no arrebatamento das notas musicais.
          Sua simplicidade como ser humano é proporcional à grandeza de seu talento. Suas composições são poemas sonoros que enlevam e tocam o sublime. Por detrás do rosto sisudo, reina a serenidade e a sensatez de um músico experiente e sensível que nunca deixou de aprender e continua sua carreira sem arroubos, compondo e fazendo projetos que ainda surpreenderão muito o seu público.

Aíla Sampaio





quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Memória e infância nos romances de Milton Hatoum







Milton Hatoum é uma das maiores expressões da literatura brasileira contemporânea. Autor de 3 romances – Relato de um certo oriente (1990), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) –, de uma novela – Órfãos do Eldorado (2008); de um livro de contos – A cidade ilhada (2009) e um de crônicas – Um solitário à espreita (2013) – ele se afirma no cenário das letras com uma obra essencialmente memorialista. Seu universo ficcional tem como microcosmo a cidade de Manaus, um lugar subjetivo, de chegadas e partidas, nunca de permanência, a não ser como espaço de memória, de apego ao que foi e não mais pode ser, mas fica para sempre.

De acordo com Antônio Candido (2002), toda obra literária é construída a partir da memória, da observação ou da imaginação. Nas obras de Milton Hatoum, especificamente, todas as tramas se constroem essencialmente a partir da memória. Seus personagens são seres completos, pois, além do presente, têm sempre um passado recuperado no relato, seja pelas próprias lembranças, seja pelas reminiscências de um narrador onisciente que o evoca as suas recordações. Sylvia Telarolli (2007) assegura que “o autor associa no percurso das personagens a  abordagem de traços definidos por sua feição individual, mas também forjados por características que brotam  da vivência coletiva, seja do universo manauara, seja  das origens vinculadas ao universo cultural do imigrante árabe”.

Trata-se, pois de uma memória coletiva, sobre a qual disserta Halbwachs (1925, apud STOETZEL, 1976, p. 133-134): “Os homens, que vivem em sociedade, usam palavras, cujo sentido compreendem: é a condição do pensamento coletivo. Ora, cada palavra (compreendida) se faz acompanhar de lembranças; e não há lembranças a que não pudéssemos fazer corresponder palavras. Nós falamos nossas lembranças antes de evocá-las; é a linguagem, e é todo o sistema das convenções sociais com ela solidário, que nos permite, a cada instante, reconstruir o nosso passado”. 

Por meio dessa estratégia, os personagens de Hatoum são moldados em sua busca pela identidade. Mostraremos, neste artigo, como a memória perpassa as narrativas do autor e como a recuperação da infância, por meio dela, justifica o comportamento desajustado dos seus personagens na fase adulta em dois dos seus romances: Dois irmãos e Cinzas do Norte .     



Memória e infância nas obras

Em Relato de um certo Oriente, a narradora, uma mulher que, após 20 anos distante, volta de Paris à terra natal para reconstruir suas origens e buscar sua identidade,   faz um relato (de 8 capítulos) em forma de carta ao irmão, tecendo o universo dos imigrantes de origem árabe, conflitos interiores, encontros e desencontros. Ela chega a Manaus na véspera da morte de sua mãe adotiva, Emilie, e esse fato ajuda a tecer seu caminho de volta ao passado, com o resgate das memórias do filho mais velho de Emilie, Emir, o único que conserva a cultura árabe, e vive isolado da família; de Dorner, fotógrafo alemão e grande amigo da família; e da amiga de Emilie, Hindié Conceição. São muitas as vozes que compõem essa narrativa e recuperam as histórias que se cruzam, entrelaçam-se e terminam por se completar.

Dois irmãos é também uma narrativa em primeira pessoa, dessa vez, feita por um personagem secundário, Nael, filho da empregada de uma casa de descendentes árabes. Em busca de sua origem, ele investiga sua paternidade ao contar a história da família de Halim, Zana, Yaqub, Omar e Rânia, expondo a rivalidade entre os irmãos gêmeos, bem como as relações conflituosas pautadas por rejeição e insinuações de incesto. 

Em Órfãos do Eldorado, há a combinação de história e mito, ficção e fábula, lenda e verdade. A narração é feita por Arminto Cordovil que, velho e sozinho, às margens do rio Amazonas, relata a um viajante a trajetória de sua própria vida, que começa marcada pela morte da mãe. Recriminado pelo pai e único herdeiro de uma família rica, ele é criado por Florita, que o aproxima dos índios, seus vizinhos. Desde criança, ele escuta as histórias fantásticas daquele povo e se desvincula da sua própria família.
Ele se apaixona por Dinaura, uma menina criada pelas freiras carmelitas, cuja história guarda um segredo. 

Já o enredo de Cinzas do norte se passa entre os primeiros anos do Golpe Militar de 1964 até a abertura democrática dos anos 1980.  Transcorre na capital amazonense, com passagens pelo Rio de Janeiro e Londres, e não traz nenhuma digressão acerca de descendências árabes. É também um relato memorialístico em três vozes – a de Lavo, o narrador da maior parte do texto; a de Ranulfo, que intercala seus relatos aos escritos do sobrinho e, por fim, uma carta de Mundo revelando seu segredo já nos momentos finais de sua vida. 

A história contrapõe duas famílias, uma rica e a outra pobre. Delineia-se, nesse painel, um arsenal de personagens completos e incompletos em suas formas ficcionais: Mundo, ou Raimundo, sonha ser artista plástico, é apaixonado por desenho desde pequeno e não faz conta de educação formal. Ele vive em conflito com Jano, seu pai, um ricaço português, amigo dos militares, que não aceita que o filho troque os negócios da família pela arte. Ranulfo é o típico boêmio que não se submete a patrão, vive a paixão clandestina com Alícia, mãe de Mundo, que trocou o namorado pobre pelo dinheiro e pelo status de Jano. Ramira é costureira, vive em desavença com o irmão e ajuda a criar o sobrinho a partir da morte dos pais dele num naufrágio. Arana é o artista oportunista; e Lavo, o amigo pobre, mas sensato, forma-se advogado e vive uma vida acomodada, sem ambições.

A cidade ilhada é uma coletânea de 18 contos, a maioria deles com enredo ambientado em Manaus, cidade visitada por estrangeiros e sempre revisitada pelos nativos que vêm e vão. Manaus aparece não como espaço concreto de uma região, mas como ponto de partida e chegada, na verdade um microcosmo do universo em que se movimentam os personagens dos contos; seres enraizados, mas permanentemente em trânsito (SAMPAIO, 2013) no espaço e no tempo. Rio de Janeiro, Paris, Palo Alto, Berkeley, Barcelona, Bombaim e a capital amazonense são cenários móveis, transitórios como as vidas que neles circulam em torno de uma busca ou para resgatar lembranças. Todos estão à procura de algo que reconstitua ou justifique sua própria existência.

Um solitário à espreita, uma coletânea de crônicas dividida em quatro blocos, traz textos anteriormente publicados em jornais e revistas, sobre assuntos variados: a realidade, a linguagem, a literatura, os afetos, a política, sempre prevalecendo o enfoque memorialístico. Muitas foram reescritas, mas permanece a visão de mundo do autor, seu tom por vezes melancólico e pessimista, porém leve e enxuto.

A raiz dos conflitos

    Em todas as obras do autor, como dissemos, está presente o conflito da busca da identidade e o do resgate da essência que se dá na reconstrução do passado pela memória, esse fio cujo mecanismo tem um papel crucial na vida do ser humano. Nos romances Dois irmãos e Cinzas do Norte, a raiz do conflito está na infância, no seu transcurso problemático pela vivência de perdas, rejeições e interditos.
Em Dois irmãos, os gêmeos Yaqub e Omar têm, desde crianças, tratamento diferenciado da mãe, que não disfarça sua proteção pelo Caçula, o último a sair da sua barriga. Na fase adulta, os irmãos desenvolvem personalidades distintas e se tornam inimigos, qual Caim e Abel na história bíblica. Foram crianças criadas de modo diferente, experimentaram vivências culturais diversas, haja vista o período vivido pelo menino Yaqub no Líbano, terra dos seus pais, e os traumas daí advindos.
Como falamos no ensaio Dois irmãos: incesto, rejeição e rivalidade na relação familiar (SAMPAIO, 2007, p. 100), a história da família de Dois Irmãos intertextualiza, inicialmente, a de duas famílias bíblicas: a de Adão e Eva e a de Isaac e Rebeca, ambas extraídas do Gênesis, livro primeiro da Bíblia Sagrada. A primeira história de rivalidade entre irmãos se dá com Caim e Abel; depois com Esaú e Jacó. Zana parece a recriação de Rebeca que, ao privilegiar o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, faze-os inimigos irreconciliáveis. Quando Zana escolhe mandar Yakub para o Líbano e fica com Omar, só acentua a rivalidade entre os dois.
Hatoum faz sua narrativa entrecruzar-se em diversos diálogos intertextuais homo e heteroautorais, passeando pelo mítico ao retomar as histórias bíblicas, (em Dois irmãos), e o mito de Eldorado, (em Órfãos do Eldorado), o que, de acordo com Maria Emília Martins da Silva (2011, p.40), conota uma “tentativa de recobrança do sujeito contemporâneo de sua unidade perdida, que é a origem da sociedade do espetáculo, segundo o teórico Guy Debord”.
Em Cinzas do Norte, os mitos se reatraem. A narrativa da Lavo se entrecruza com cartas, um recurso estratégico de recuperação da memória. No relato, o personagem Raimundo (Mundo) vive em desarmonia com o pai, que não aceita seu comportamento avesso aos seus valores burgueses, tampouco seus pendores artísticos, e tenta moldá-lo à sua semelhança, o que gera a impossibilidade de convivência e culmina na destruição de ambos.
Em Dois irmãos e Cinzas do Norte, pois, os personagens guardam as solidões da infância que, de acordo com Bachelard (2000), permitirão ao sonhador adulto viver suas próprias solidões. De fato, os protagonistas aparecem já na fase adulta, com seus temperamentos em choque, no cerne de desajustes familiares insolúveis, permitindo que o leitor, por meio dos relatos, reconstrua a trajetória deles e busque a criança que foram para compreender o adulto em que se transformaram. Desse modo, ele conhece o menino que fez o homem e que subjaz no discurso do narrador.  Onde reside a fronteira entre o homem e o menino é um dos desafios lançados, afinal, como afirma Heidegger (apud Homi Bahbha, 1998, p.19), “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É a rememoração o fio condutor dos enredos dos romances de Milton Hatoum; é por ela que se engendra a criação. Em entrevista a Luiz Henrique Gurgel, o próprio escritor (2008, p.2-4) diz: "Não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a infância. Acho que o momento da infância e da juventude é privilegiado para quem quer escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: as grandes felicidades, os traumas, as alegrias e também as decepções. Certamente não estou falando da lembrança pontual e nítida. O que interessa é a memória desfalcada, a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque aí é que se instala o espaço da invenção."
A construção da memória nos dois romances - Dois irmãos e Cinzas do Norte - se dá pelos mecanismos de  resgate dela: lembrança, esquecimento tempo e espaço, na remontagem do passado, permitindo que o leitor observe e possa usufruir dessa transição temporal entre o menino e o homem maduro.
Assim, é por meio da palavra reconstrutora do passado, que se percebe a desunião e a rivalidade entre os gêmeos de Dois irmãos com origem na infância; o comportamento deles, bem como a personalidade, têm a ver como o modo como foram criados e com os lugares em que viveram. O personagem central de Cinzas do Norte, Raimundo (ou Mundo, como é chamado), desde bem menino sente a incompatibilidade de valores entre ele o pai, o que vai propiciar uma relação tirânica, baseada em desentendimentos e agressões mútuas. Mesmo a mudança do espaço opressor e a morte do pai não o libertam do ódio que passa a alimentar a sua vida.
Em ambos os casos, tais crianças se tonaram adultos infelizes, vingativos e socialmente desajustados.




 REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______ . Poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
HATOUM, Milton. “Não há literatura sem memória”. [Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel]. Na ponta do Lápis. Ano IV, n. 8. AGWM Editora e Produções editoriais, p. 2-4, Junho/2008, p. 4. Disponível em: http://www.elfikurten.com.br/2013/05/milton-hatoum-o-arquiteto-da-memoria.html Acesso em 10/01/2014

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.         
SAMPAIO, Aíla Maria Leite. Dois irmãos: incesto, rejeição e rivalidade na relação familiar In: Revista de Humanidades, v.22, nº 2, Fortaleza: Unifor, 2007, p. 98-102.
SAMPAIO, Aíla Maria Leite. Personagens em trânsito, espaços subjetivos e intertextos em “A cidade ilhada”, de Milton Hatoum In: Revista de Humanidades, v.28, nº 1, Fortaleza: Unifor, 2013, p. 33-44.
SILVA, Maria Emília Martins da. Do mítico ao imagético: a espetacularização em Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum In: Revista Kalíope. nº 14. São Paulo, 2011, p.40-51.
 OBRAS DO AUTOR
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
______ . Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
______ . Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
______ . Cinzas do Norte. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
______ . A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

 Aíla Sampaio