A
Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES traz a
público mais uma Antologia, com a
compilação de textos considerados significativos, de algum ponto de
vista, como é característico de obras coletivas. O número de
profissionais da área que enveredam pela literatura
faz-me de imediato lançar a pergunta: Por
que os médicos procuram a arte da palavra? Não há uma resposta
exata. Talvez porque, além de conviverem com a vida das pessoas –
seus sofrimentos, medos e esperanças, tomem parte com a fragilidade
delas, com a finitude iminente, e sintam necessidade de evadirem-se
do peso emocional. Essa impressão minha remete à declaração
do filósofo alemão Friederich Nietzsche no Crepúsculo
dos Ídolos:
“Temos a arte para que a verdade não nos mate”. De fato, os
médicos trabalham no limite entre a vida e a morte; se têm o
conhecimento científico para a cura de muitos males, têm também a
humana impotência diante do imprevisível. Convivem, diariamente,
com o tangível da ciência, com a crua força vital, com a terrível
certeza do sábio Sileno, que diz ser o sofrimento inerente à
condição humana.
Escrever
é, desde sempre, uma arte imprescindível para eles e para todos
nós; sobretudo nesses tempos líquidos em que tudo escorre pelas
nossas mãos. A palavra é a nossa arma, nessa guerra travada com a
vida todos os dias; é ela que nos preenche o vazio em que nos jogam
as incertezas; é ela que nos defende do silêncio ensurdecedor da
mediocridade.
Tantos
médicos se destacaram na literatura mundial, que eu não ousaria
citar todos, mas gostaria de destacar alguns: Arthur Conan Doyle,
escritor britânico que estudou medicina na Universidade de
Edimburgo, criador do célebre Sherlock Holmes; o contista memorável
Anton Tchekhov, que cursou medicina na Universidade de Moscou;
Joaquim Manuel de Macedo, autor do romance A
moreninha
no Brasil do século XIX; Guimarães Rosa, autor de obras canônicas
como Sagarana
e Grande
Sertão: Veredas;
e o português António
Lobo Antunes, médico
psiquiatra, que utiliza materiais psíquicos, enredos de crises
conjugais e contradições revolucionárias em suas obras;
especificamente no romance Hei
de amar uma pedra, o
enredo parte de uma história verídica colhida num hospital em
Coimbra, quando um colega seu, também psiquiatra, o chamou para
ouvir o relato da história de amor de uma mulher, descrita no livro
como "Doente
de 82 anos, sexo feminino, idade aparente coincidindo com a real”.
Ficção e verdade se fundem num só amálgama.
Como
amar a imprescindível dureza hipocrática e a ela sobreviver com um
coração que não é de pedra? Somente pela arte, pela
transfiguração da realidade; pela criação de uma vida paralela na
pintura, na música, na fotografia, na literatura. Há os que seguem
alguma(s) dessas veredas sem
pretensões, para esgotar a ansiedade e a dor de existir;
outros
para darem vazão ao pendor artístico, às aptidões antes
encobertas pelas densas páginas dos compêndios médicos. Todos,
certamente, o fazem pela necessidade de sobreviver aos próprios
enigmas.
A
diversidade de textos publicados nessa coletânea da SOBRAMES bem
atesta a liberdade criadora de cada um. Há os que têm o
conhecimento da literatura como um trabalho de linguagem; os que
utilizam a escrita com finalidades determinadas; e ainda os que
apenas se permitem exercícios catárticos. Seja num discurso de
posse, num ensaio sobre um assunto médico, num relato de
experiências, numa carta ou numa homenagem a um ente querido morto,
rememorações e textos confessionais, se interpõe a capacidade
criativa da palavra, que é o que verdadeiramente importa. As
narrativas breves atestam a preferência da maioria. Destaco, nessa
seara, as artimanhas do humor em narrativas de Celina Corte Pinheiro,
Flávio Leitão, José Murilo Martins, Francisco Sérgio de Paula
Pessoa, José Fonteles, José Luciano Sidney Marques; os 'causos' bem
contados de Dalgimar Beserra de Manezes, José Brayner C. de Andrade,
Sebastião Diógenes e Marcelo Gurgel, a maturidade dos contos de
Larissa Barros Leal, Fernando Siqueira e José Alves.
A
matéria literária vai de casos médicos ao futebol; elocubrações
sobre a utopia, reflexões sobre saúde pública, as benesses da
maturidade, os “respingos de lembranças” que abrem clareiras de
saudade, temas polêmicos como a maioridade e a descriminalização
das drogas, uma apresentação de tese de livre docência. Há os que
contam e os que se contam, como uma forma de confirmar as
experiências vividas ou a própria existência.
Se
a prosa envereda por motivos vários, sem necessidade de
classificação em gêneros, os versos se espraiam livres ou
metrificados em sonetos, ora saudosistas, românticos, memorialistas;
ora filosóficos, existencialistas, catárticos, mas sempre cotejando
o ritmo e a musicalidade a que fazem jus. Assim são os poemas de
Chico Passeata, Alana Maia, Dione Mota, Eduardo Jucá, Emanuel de
Carvalho, Eurípedes Chaves Jr., Francisco Andrade Pessoa, Luiz
Porto, José Wilson de Souza, Vicente Alencar, Luciano de Arruda,
Walter Miranda, Manuel Dias Neto, Sérgio Macedo e Martinho Fernando,
cujo lirismo resgata a poesia da vida, celebra amores, faz digressões
sobre a passagem do tempo ou lança as efusões da alma.
Se
“Beleza é contar a sua história, / de repente ou de memória, em
rima branca sem pudor”. Se “Beleza é fugaz prosa ligeira...”
como dizem os versos de Isaac Furtado, os textos que aqui estão, em
prosa ou em verso, longe de um julgamento estético e subjetivo da
minha parte, confluem para o belo, na medida em que proporcionam
prazer ou satisfação nos que escrevem. Nascem, todos, de uma
percepção súbita, de um encontro com o que os altera, de um
estranhamento do comum e trivial. Esse trânsito entre o referencial
e o poético, o objetivo e o subjetivo já faz valer cada texto aqui
compartilhado com os leitores. Parabéns a todos os escritores, aos
citados ou apenas referenciados por seus temas!
Pouco importa o
compromisso com estilos ou padrões ou a falta dele. Importa
entendermos que, pela arte da mentira – a literatura –,
transcendemos a montanha rochosa das verdades; nada como uma boa
ilusão para não cairmos nas garras da íngreme realidade, com seus
riscos de
infarto e tédio!
Aíla
Sampaio
Professora
da Unifor – Doutoranda em Letras pela UFC
Membro
da Academia Cearense de Língua Portuguesa e da Academia de Letras e
Artes do Norte e Nordeste.
Prefácio da Antologia da SOBRAMES - 2015
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