quinta-feira, 23 de junho de 2011

70 poemas para orvalhar o outono




O livro comemorativo dos 70 anos do poeta Barros Pinho traz 70 poemas selecionados de oito livros de sua autoria, e uma fortuna crítica respeitável acerca de sua produção literária: Linhares Filho e Ubiratan Aguiar apresentam a obra na qual estão, também, inseridos artigos assinados por Pedro Paulo Montenegro, Antonio Carlos Vilaça, José Alcides Pinto, Francisco Carvalho, Adriano Espínola, F. S. Nascimento, Pedro Lyra, Sânzio de Azevedo, Caio Porfírio Carneiro, Artur Eduardo Benevides, Antonio Girão Barroso, entre outros críticos que se debruçaram sobre a sua criação.

A beleza do volume se coaduna com a preciosa seleção de poemas, representativos, pois, de toda a sua poética, que tem como linhas condutoras duas figuras essenciais: o menino e o rio. Ainda que ele diga

setenta anos
muito tempo
para ser menino
não se agita mais
a água da infância
a vida só o papel
timbrado na sombra
onde se escreve o ontem
em páginas brancas
na face da espera
(p. 29),

faz rediviva sua infância a cada verso, renascendo ‘no papel’, entre linhas e entrelinhas, pois que, homem feito de linguagem, não sabe ser senão reinventando-se pela palavra.

O menino perdido no tempo cronológico aparece cada vez mais vivo no tempo da memória:

a infância corre
na correnteza do rio

o sonho não sabe
o rumo dessas águas
seria o mar
ou o mar seria apenas
uma solução geográfica

sabe-se
que só nós meninos
o rio se encanta
até voar como pássaro

nasce em mim o desejo de escrever

o rio inteiro a correr
sobre o papel da palavra
sintaxe de sol
antes dos olhos
se abastecerem de fadiga
(p.52).

A travessia do rio é a travessia da vida que se rende a soluções geográficas apenas, racionais, desprovida de sonhos. Na alma do poeta, entretanto, ‘se pode voar como pássaro’, na possibilidade de vencer a correnteza do tempo e recuperá-la, ainda que encantatoriamente, na poesia.

Esse rio que atravessa a escritura do poeta é um rio atávico, cuja localização espacial – a Parnaíba – funciona como eixo, tronco de sua árvore genealógica. O homem que por razões diversas deixa sua terra de origem vive em duplo exílio: o físico e o psicológico, pois que, longe de sua taba, não encontra seu verdadeiro rosto senão no olhar para trás e no permanente saudosismo que o afaga:

meu avô morreu
na chapada da distância

procurando a lua de olhos
vivos no rio o rio mais
longe de sua vontade

as mãos sem carne
os pés sem perfume
a rastejar fantasmas

na superfície das pedras
o engenho abrigo do tempo
moendo moendo seus ossos
(p.64).

As reminiscências, cavadas pela saudade, pelo acúmulo e pela intensidade, tornaram-se mais constantes na estação do outono, com que o poeta metaforiza sua entrada nas 70 décadas de existência, mas a saudade ancestral (que o acomete) está nele desde sempre:

guardo há muito tempo
na gaveta da vida
uma solidão disfarçada
um triste acanhado
pelos cantos dos olhos no calendário
(p.83).

Sua poética presentifica ausências. No outono, a palavra desgoverna-se para romper os silêncios e orvalhar-se em confissão: há saudade, há solidão, há ‘vontade de dizer / o que não se diz pela metade’ (p.83). E o poeta diz dos seus naufrágios, das celebrações, diz, sobretudo, do seu cansaço de tantas ausências:

carrego madrugada
no canto dos olhos

nos meus ombros
depositaram noites
que não querem ser dia

nos cabelos guardo
a ilusão ou o sonho
dos que sonharam

nas mãos trago
pedaços de sol
só para distribuir

n’alma a ausência
cansada de bater
nos dique da vida
(p.127).

Mas não é de tristeza a poesia de Barros Pinho. Tampouco é meramente confessional. Não há lágrimas, mas celebração:

recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade”
(p. 160).

Sua saudade da terra é a saudade de todo exilado (não apenas de corpo, mas de coração) e as dores de que ele fala são dores sem nacionalidade definida.

O rio foi o começo de tudo, foi o espasmo ante o icognoscível. Depois veio o amor com suas estradas impossíveis de não percorrer:

o rio encheu os olhos
do menino
só de espanto
a menina
encheu-lhe a vida
de paralelas”
(p.130).

Assim o menino se fez homem, sendo universal ao cantar sua aldeia (Tolstói) ou, qual Caeiro/Pessoa, cantando seu rio: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Tal qual diz o poeta em seu outono:

“não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano”
(p.153).

Hoje, depois de tanta estrada e poesia, depois de tantas travessias de rios e mares, continua menino o homem que reconfigura o Natal; continua menino o poeta que orvalha seu outono com poesia...com certeza, continua a procurar São Jorge nas luas de suas e de tantas outras terras. Seus sonhos não se evaporaram, tampouco as folhas caídas que ele cata e recupera a cada verso que escreve...


A poesia harpa da manhã
Acende o orvalho a orvalhar
O lírio do pássaro
No lírico segredo do outono

(“Orvalho para orvalhar o outono”, p. 29-30)

Parabéns ao poeta que sabe o segredo não apenas do outono, mas de todas as estações da poesia!

Aíla Sampaio

Um comentário:

docerachel disse...

Bela homenagem, Aila!