quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Análise estilística do poema Cidadezinda Qualquer, de Carlos Drummond de Andrade.

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.

Devagar... as janelas olham.

Êta vida besta, meu Deus.

(Alguma poesia in Reunião, 1982)



Pretende-se fazer uma análise estilística do poema Cidadezinha Qualquer , a partir dos elementos lingüísticos que reforçam as características de uma cidade de interior no que ela tem de rotineira. Enfocaremos a mesmice transmitida pelo texto, comentando os recursos usados para sugerir a idéia de solitude, com base na observação de que o tema é reforçado com a repetição de termos que sugerem a rotina do dia-a-dia, o que dá um ritmo bastante peculiar ao texto.

Nos três primeiros versos, temos construções sem verbos, o que demonstra, de forma clara, a falta de ação objetiva inerente à cidade de interior retratada. O primeiro verso nos dá a idéia de distanciamento entre as casas ao colocar “casas entre bananeiras” e não “bananeiras entre casas”; o segundo substantivo (bananeiras) parece sobrepor-se ao primeiro (casas), como se fosse predominante, o que leva o leitor a concluir que o número de bananeiras é bem maior que o de casas. Esse distanciamento físico é bastante condizente com a condição de cidade pequena e com a solidão que ela inspira.

No verso “Mulheres entre laranjeiras”, transparece a domesticidade da vida feminina, indicada apenas para o casamento – sugestão entrevista na simbologia do temo “laranjeiras”, já que a flor dessa árvore compõe o buquê das noivas.

Concluindo o primeiro terceto, temos um verso com substantivos soltos “pomar amor cantar”, sem pontuação, como se fosse dito ininterruptamente. Os elementos semânticos das palavras denotam a simplicidade peculiar à vida interiorana isenta de qualquer atividade inédita. Além disso, os três substantivos remetem a atividades ligadas à mulher do interior, cuja vida centra-se no amor à família e cujo trabalho limita-se à esfera doméstica, estendendo-se, por vezes ao pomar, onde permanece durante horas, entoando em alto e bom som as canções de sua preferência.

Investindo no paralelismo sintático, o poeta usa o mesmo artigo, o mesmo verbo e o mesmo advérbio nos três versos da segunda estrofe, alterando apenas o substantivo. Compõe uma estrutura sintática simétrica, induzindo o leitor a colocar o homem na mesma condição do cachorro e do burro, numa forma de animalizá-lo por ter um cotidiano igual ao dos animais que o cercam. Assim, integra-os na simetria da construção sintática, inserindo-os no mesmo plano existencial.

Já a repetição do advérbio “devagar”, ora no final do verso, ora dando início a outro, pela própria força semântica da palavra, reforça a idéia de rotina elucidada em todo o poema.

No verso seguinte, nos deparamos com um momento de reflexão, afirmado pelo uso de reticências após a palavra “devagar”. O eu-poético suspende o pensamento e deixa o leitor na espectativa de uma ação que negue o sentido de mesmice da palavra pronunciada: “devagar...”; e, como a concluir que a espera é inútil, continua: “as janelas olham”. Ou seja, pessoas ociosas se colocam à janela na ânsia de que os olhos alcancem algo de novo ou com a finalidade de tomar conhecimento da vida dos outros – hábito comum nas pequenas cidades, onde a novidade restringe-se à curiosidade de saber da vida alheia. A animação do objeto “janela”, imposta pela ação do verbo “olhar”, normalmente usado para seres humanos, dá a impressão de vida igualmente imóvel. As pessoas olham e vêem o mesmo que as janelas: nada.

E, como em um desabafo, o eu-poético, cansado da rotina, assume a posição de espectador e compõe o último verso. Pensa alto sobre o que vê e diz : “Êta vida besta, meu Deus”. Atentemos para o sentido da palavra “besta” e a sua carga afetiva no verso. “Tola”, palavra sinônima, seria muito leve para expressar o descontentamento do falante. A palavra “besta”, tomada em seu sentido denotativo, nos leva a resgatar a idéia de animalização do homem, anteriormente citada, já que, literalmente, significa “asno” – animal da espécie do burro. Ou pode nos remeter à alusão de vida imbecil, ignorante. “Êta”, palavra sincopada, nos mostra a espontaneidade com que o eu-poético expôs o seu pensamento, formando com “vida besta, meu Deus” uma frase peculiar aos hábitos lingüísticos dos habitantes de pequenas cidades.

Antes de finalizar, concentremo-nos no título do poema. “Cidadezinha qualquer” não é um título aleatório, atribuído por acaso. É a síntese do poema. O diminutivo impõe afetividade à palavra, dando, de imediato, o sentido de pequenez. Mas o sufixo INH(A) transpõe a pura denotação. Deixa de indicar o meramente dimensional para sugerir o afetivo, enfatizando o valor pejorativo que leva o leitor a pensar que a cidade retratada é uma cidadezinha sem importância, da qual se faz pouco caso. O pronome “qualquer”, aí adjetivado, colocado após o substantivo, dá a idéia de vulgaridade, reforçando, assim, o sentido pejorativo com que o título pode ter sido composto.

Essa possível intenção pejorativa, entretanto, ultrapassa o sentido de depreciação. Se a cidadezinha fez-se a alma do poema, é porque exatamente a sua mesmice e a sua simplicidade cativaram o poeta, quem sabe em um processo de identificação. Seja como for, a exploração de suas características banais, tão bem sugeridas no texto, permite ao leitor intuir o dia-a-dia de uma cidade de interior, onde a vida tem a dimensão de sua extensão geográfica.

10 comentários:

Camila Mello disse...

ótima análize!
Exatamente o que procurava!
muito bom mesmo, beijos!

Gabriel disse...

Faço as palavras de Camila Mello as minhas.
Excelente Análise.

Márcia aconchego disse...

olá,estou iniciando minha prática docente no Ensino Superior e gostaria de obter sugestão de material didático de Estilística, Semântica e Literatura Brasileira. A partir do blog percebi que vc é muito abnegada, e se puder contribuir, de antemão, serei grata.
Um abraço

Caroline disse...

Adorei a análise !
Está de parabéns .
Você me ajudou muito .
Beijos

Caroline disse...

Muito boa a análise !
Parabéns!
Beijos

Pirro disse...

Olá, Aíla. Sua análise estilística do poema em questão é coerente com o que o texto diz e demonstra. Não há como questionar sua análise formal, que pode ser definida estilística da expressão afetiva presente no poema.
Contudo, discordo de sua interpretação equívoca em dois pontos cruciais. O primeiro diz respeito à "ideia de animalização" do ser humano interiorano e o segundo diz respeito ao sentido de pejorativo referente ao título do poema.
Quando o texto diz que o homem, o cachorro e o burro vão "devagar", percebo que não existe nada de animalização. Como nasci e fui criado numa pequena cidade, minha interpretação é a de que o 2º terceto sugere o ritmo vagaroso de todos os seres (sejam homens ou animais) na vida interiorana. O paralelismo sintático e ao mesmo tempo semântico sugerem esse ritmo peculiar do interior. Para mim, não há um elemento de comparação entre homem e animais para indicar animalização. O texto não faz uma comparação, apenas constrói uma simetria do ritmo da vida do interior, de homens e bichos.
Portanto, se houvesse elementos linguísticos de comparação, aí sim teríamos a ideia de animalização.
Também, não vejo a ideia de animalização no termo "Êta vida besta". Pelo contrário, percebo apenas uma expressão exclamativa para sugerir que nada de extraordinário acontece no ritmo cotidiano da vida do interior. É um cotidiano simplório, sem conotação pejorativa; Também, não vejo aqui nenhum tipo de descontentamento do poeta. Percebo no poema uma simples descrição exaltadora dessa "vida besta" cuja expressão, tal como você bem notou, é própria dos indivíduos interioranos.
O segundo ponto de discordância refere-se à análise do título “Cidadezinha qualquer" quando você afirma que o termo diminuitivo "cidadezinha" enfatiza um "valor pejorativo". Olha, sinceramente, na minha leitura, não vejo que exista um sentido pejorativo aí. Nem toda palavra diminuitiva, numa expressão poética, indica sentido pejorativo. Principalmente no caso deste poema de Drummond, poeta de origem interiorana, pois em suas obras o interior tem uma carga afetiva profunda. "Cidadezinha qualquer", na minha interpretação, faz referencia a toda e qualquer cidade pequena do interior que tenha esse ritmo vagaroso de vida cotidiana, pois todas cidadezinhas são assim. E qualquer leitor, esteja onde estiver, irá reportar-se para seu próprio espaço de vida, em memória ou na vida presente.
Não quero aqui desmerecer sua interpretação, pelo contrário, apenas dar movimento a discussão.
Pirro
professor de Crítica Literária.

Adm disse...

Eu gostei muito da análise. Evidenciou algumas coisas que por mim mesmo eu não teria notado. Porém, assim como o comentarista Pirro, acho que houve uma certa extrapolação ao falar de animalização no poema. De forma alguma vejo elementos que sustentem essa idéia.
Quanto ao título, dizer que é pejorativo me parece um pouco demais. Ao meu ver, o título tem sim alguma carga negativa, mas apenas no sentido de que a tal cidadezinha não é nenhum lugar especial; é uma cidade de interior pequena e típica entre muitas outras, e nada mais.

Lady Kelly disse...

Gostei muito, me ajudou esclarecer o texto, pois já havia lido diversas vezes e não tinha entendido dessa maneira, muito bom!

Ensaios - Aíla Sampaio disse...

Grata pela leitura e pelos comentários! Pirro e Peristilo, a minha leitura não fecha o texto, as considerações de vocês mostram outros olhares e é essa a grandeza do texto literário: a possibilidade de pensar diferente sobre eles. Obrigada pelas constribuições e pela riqueza e educação dos comentários. Abs, Aila.

José Fernandes da Silva disse...

Que ótimo que a crítica literária ainda esteja presente, e com muito boa qualidade, entre nós brasileiros. Fiquei encantado tanto com a análise críticointerpretativa de Aíla quanto com a analise, também críticointerpretativa, porém em parte concordante e em parte discordante, mas com igual capacidade e segurança, de Pirro. Crítica literária é isso mesmo, e você nos dão bons exemplo.

Sou professor aposentado, lecionei literatura, teoria literária e semiótica narrativa na Universidade Católica de Goiás (hoje Puc-Goiás), por vinte anos, e sei o quanto isso vale; e por isso os aplaudo. Abraço aos dois. Chamo-me José Fernandes da Silva (Youtube: http://zip.net/bnthvV; Face Book: https://www.facebook.com/jose.f.dasilva.73).