domingo, 21 de junho de 2009

DIÁRIO DO NORDESTE - CADERNO DE CULTURA


Lya Luft uma das vozes mais expressas da ficção contemporânea (Foto: REPRODUÇÃO)


Cultura
Ensaio
Desajuste familiar nos romances de Lya Luft
AÍLA SAMPAIO
Colaboradora*
Professora da Unifor





Nas narrativas de Lya Luft, a família aparece sempre inserida em uma estrutura desajustada, pela impotência diante dos problemas, que leva a personagem a fugir de suas responsabilidades; pela morte dos pais; pela loucura de um ente familiar ou por traumas ocorridos na infância. Tal fato se dá como gerado por um determinismo: filhos de famílias desajustadas formarão famílias também desajustadas, vivenciarão relações fadadas ao fracasso e não se realizarão afetivamente. A leitura de tal aspecto é o motivo centro dessa edição.

Assim, mães morrem cedo ou são indiferentes às suas crias, pais se eximem de seu papel ou o desempenham de forma repressiva, de modo que se percebe a necessidade de um ser estranho ou agregado à estrutura familiar, que estará presente para desempenhar o papel que caberia aos pais. É o caso da Governanta Fäulen, de ´As parceiras´, que cuida das três filhas de Catarina Von Sassen, assumindo o papel de pai e mãe, já que Catarina, isolada no sótão por não se ajustar às responsabilidades impostas pelo casamento, decide criar o seu próprio mundo e dele exclui suas quatro filhas: Beatriz (Beata), Dora, Norma e Sibila. Ela [Fäulen] ´Deu às meninas uma ilusão de família, apesar do pai ausente e da mãe enferma´. (AP. p.20) O Pai (avô da narradora), um homem bruto e rude que violentara a inocente Catarina na noite de núpcias, e em visitas esporádicas à sua ´torre´, levou-a à loucura Ele aparece apenas como protagonista do ato que traumatizaria a jovem alemã, casada conveniente pela mãe aos 14 anos. Anelise e Vânia (filhas de Norma, neta de Catarina), como atendendo a um determinismo, perdem os pais muito cedo e são criadas pela tia Beata.

Estranhamento
´A asa esquerda do anjo´ se baseia no cotidiano dos descendentes de alemães de Santa Cruz do Sul. Gisela, ou Guisela, como a chama a avó, é quem conta a história de sua família, seus segredos (escondidos metaforicamente em uma portinha no porão), as mortes dolorosas e fala sobre o anjo que guarda o mausoléu dos Wolf, sobre os anseios e as culpa que a impedem de viver uma relação amorosa. A avó alemã, Frau Wolf, mantém filhos e netos sob seu comando e não perdoa a neta Anemarie, a sua predileta, quando foge com o marido da tia. Gisela sente-se excluída e não sabe conviver com o autoritarismo da matriarca da família, que, inclusive, vê a nora, mãe de Gisela, como uma intrusa na família. Depois de adulta, Gisela refaz sua trajetória em busca de sua identidade. É uma mulher sozinha, incapaz de conduzir um relacionamento amoroso.

Em ´Reunião de família´, os filhos pouco sabem sobre a mãe, a não ser que morreu bem jovem e que recomendou à empregada Berta para que nunca os abandonasse. O Pai, também sem nome, é um velho professor autoritário e retrógrado, indiferente ao crescimento dos filhos e às suas carências; pelo contrário, sua autoridade repressora é razão da maioria dos traumas de todos eles: Alice, Renato e Evelyn, numa relação que se alicerça na simples obrigação, sem qualquer liame afetivo. Berta, a empregada que sequer recebe salário, dedica sua vida àquele lar e desenvolve um ódio macerado do patrão. É ela quem detém o mistério da morte precoce da patroa.

Dois quadros
Em ´O quarto fechado´, Renata é uma mãe impotente diante dos problemas dos filhos, sobretudo porque os gêmeos Camilo e Carolina são crianças totalmente diferentes das outras. É Mamãe, a madrasta de seu ex-marido, avó postiça, portanto, das crianças, quem realmente se preocupa e cuida delas.

Já ´A sentinela´ traz uma família formada pelo pai, Mateus; a mãe, Elsa; a filha mais velha, Lilith; a filha mais nova, Nora, e Olga, que é filha de Mateus antes do casamento. Como Elsa rejeita completamente Nora, é Olga quem a orienta, quem a socorre nos momentos difíceis, já que Mateus, embora lhe tenha afeto, fica sempre do lado da esposa. Nora, quando adulta, sufoca o filho Henrique, pecando por excesso de amor, tentando dar a ele o que não teve. É que, para ela, a família não deveria ser a raiz de todos os problemas, mas ´o lugar onde a gente devia se sentir bem, entendido e amado até naquilo que os outros não aceitam, nem sequer entendem´. (p. 109) ´O ponto cego´ (1999) constrói toda a problemática familiar pela ótica de um menino de sete anos que se recusa a crescer, com medo de ficar igual aos adultos, perdendo evidentemente a própria perspectiva. A infância é ainda a sua única proteção. O Menino sem nome é também uma criança diferente, curiosa, perscrutadora e adulta, com uma percepção demais aguçada. É rejeitado pelo pai e superprotegido pela mãe, até o momento em que ela, uma mulher anulada pelo autoritarismo do marido, decide dizer ´sim´ à própria vida e vai embora sem explicação.

Sob um novo olhar
O menino passa, então, a ser cuidado pelas Tias do pai, já que a irmã é indiferente à sua fragilidade: ´As tias vinham todo dia cuidar de mim, me enchiam de agrados, me consolavam - me fazia bem chorar escutando seus passinhos ao redor da cama: alguém se importava, alguém cuidava de mim outra vez. Mas não era a mesma coisa, não era o mesmo colo, não eram o perfume e a bondade dela´. (PC p. 149) O modelo de família é praticamente o mesmo em todos os romances. Como comenta Batista (2007), todos ´mostram o casamento e o contexto familiar como motivadores dos traumas, da loucura, morte e perdas das mulheres. O patriarcado, mesmo fragilizado, ainda dita as regras, e a única opção que se oferece a essas personagens em crise é a aceitação do jogo, a acomodação aos papéis impostos. Ou, na maioria dos casos, resta-lhes a morte ou a loucura.


FIQUE POR DENTRO

Recursos de intratextualidade
É característica marcante nos romances de Lya Luft a recorrência a cenas, situações ou temas que já apareceram em outras obras suas. Seja através de referência a personagens anteriores ou pelo delineamento de posturas idênticas; seja pelas patologias comuns ou pela força de determinismos, a verdade é que os personagens se irmanam na fragilidade, no desajuste emocional, na carência afetiva, na sexualidade ambígua, mal resolvida, na dor de perdas insubstituíveis, na orfandade, no instinto de autoritarismo ou violência, enfim, se unem por um laço único que enreda toda sua ficção. Sobre o tema central de suas narrativas, ela diz: ´A família - da qual incansavelmente escrevo, por conhecer a sua importância e saborear o seu encanto - nos apresenta ternas armadilhas. É lá, sobretudo, que ainda, neste novo século, se cultiva a árvore da culpa e da indecisão´. (HT p.83). A escolha consciente da instituição familiar como centro de sua criação leva-a a um mundo de desajustes, incompreensões, dramas e fatalidades que acaba por traçar um retrato desolador da família contemporânea, motivo desse ensaio.

Insegura autoridade masculina

A Selva de 1943. Guache sobre papel, montado em tela, a 239 cm X 239 cm. Museum of Moderm Art, Nova York (Foto: REPRODUÇÂO)
Embora as narrativas de Lya Luft centralizem a figura da mulher, o homem não aparece como mero coadjuvante; desempenha papéis de relevo, seja como marido submisso, que para resguardar a infantilidade da mulher, negligencia e até fica contra os próprios filhos (´Exílio´, ´As parceiras´, ´A sentinela´), seja pelo autoritarismo (´Reunião de família´, ´O ponto cego´). A própria autora, tecendo comentários sobre os seus personagens em ´Rio do meio´, confessa sua opinião sobre o sexo masculino, mas não se isenta de identificar esses seus seres fictícios como pessoas solitárias: (Texto I)

O ponto de partida
Na primeira obra (´As parceiras´), se sobressai a figura do Avô da narradora, inicialmente, um viril trintão, compulsivo por sexo, que se casa com uma moça de 14 anos. Mesmo após sair de casa, visto que a esposa, com aversão aos seus assédios se recolhera louca no sótão, ele a visita e a violenta quando então tem vontade: ( Texto II)

O pai de Anelise, a narradora, é um médico que vive em função de Norma, sua frágil e ameninada esposa, de quem ele nada cobra em relação às filhas: (Texto III)

Já o marido de Vânia, irmã da narradora, impõe como condição para o casamento a renúncia da então noiva à maternidade, haja vista que não deseja fazer perdurar a ´raiz podre´ daquela família. Vânia aceita a imposição e se submete às vontades do marido.

A trilha do conflito
Em ´Reunião de família´ é o Professor a figura preponderante. Autoritário e violento, ele, além de não dar amor aos filhos órfãos, maltrata-os: (Texto IV)

O velho é odiado, inclusive, pela empregada, que até o responsabiliza pela morte precoce da patroa: (Texto V) Já Renato aceita passivamente o temperamento de Aretusa, e Bruno alimenta a quase-demência de Evelyn, após a perda do filho.

O ícone da solidão
Martin, de ´O quarto fechado´, é um marido impotente diante da inadaptação de Renata à vida matrimonial e aceita a separação, sem questionamentos. É o personagem masculino mais solitário da ficção de Lya. Não houve possibilidade de ele realizar-se com sua quase-irmã Ella e, com Renata, jamais teve uma estrutura familiar normal: os gêmeos eram crianças diferentes, a mulher não sabia ser esposa nem mãe, o filho Gabriel morreu bebê ainda.

O pai, de ´Exílio´, remete ao pai da narradora de ´As parceiras´. Vive em função da mulher alcóolatra e, além de deixar os dois filhos em segundo plano, pede que eles compreendam a fragilidade da mãe, que acaba por suicidar-se e desestruturar toda a família. Na mesma obra, temos a figura de um homem forte corporificada no amante da médica, um viúvo que cuida pessoalmente do filho excepcional. Esse é, talvez, o mais forte personagem masculino de Lya Luft, sobre o qual ela mesma, a escritora, comenta em ´Rio do meio´: (Texto VI)

Em ´A Sentinela´, Mateus retoma o estilo submisso à esposa e vive em função de Elsa, inclusive compactuando de sua rejeição à filha Nora. João, amante de Nora, é insubmisso, mas se fragiliza diante dos problemas vividos pela filha, consumidora de drogas.

O Pai de ´O ponto cego´ é extremamente dominador. Embora administre os bens da esposa, é ele quem dita as regras e a mantém submissa aos seus caprichos e também a sua infidelidade: (Texto VII)

Embora o pai constitua um contra-modelo para o filho, que, em função disso, se recusa a crescer, e se apresente no decorrer da narrativa como um homem temido, quando sua esposa vai embora, ele mostra suas fraquezas, rapidamente, assim, então, percebidas pelo menino: (Texto VIII)

Submissão e insubmissão
Na obra ´Histórias do tempo´, no capítulo ´Histórias de Perdas & Ganhos´, a narradora fala de uma reunião com um grupo de homens ´de quarenta a sessenta anos, bem sucedidos na profissão´, a fim de debater maturidade, perdas e ganhos. Ela diz se surpreender com os medos, os desejos e as inseguranças, dores e aflições também vivenciados por eles. Lya toca na fragilidade masculina do homem que se sente isolado dentro da família, cujos maiores espaços são da mãe e dos filhos na ótica deles.

As relações familiares estão sempre pautadas em relações de submissão ou insubmissão, como se a forma de convivência dependesse de um elemento dominador e de outro dominado, numa total ausência de equilíbrio. Isso se evidencia tanto no ângulo feminino como no masculino, quando a submissão aparece representada dentro de um contexto de ´aceitação´. A personagem feminina submissa aceita sua condição, na maioria das vezes, por não ter opção ou por prender-se a algum valor, embora demonstre, em sua aparente postura acomodada, indícios de insatisfação. Já o homem submisso o é naturalmente, por devoção, sem qualquer necessidade de libertar-se. O certo é que, na obra de Lya, ´Numa relação há sempre um que se curva e outro que comanda´, como diz, ainda lúcida, a Avó de ´O ponto cego´ (p.75) à sua filha.

´A asa esquerda do anjo´ mostra na avó o desenho do autoritarismo. Todos vivem à sua sombra, embora morando no Brasil, seguindo seus preceitos alemães. Gisela, sua neta, não se acostuma à postura submissa da mãe, e vive dividida entre a obrigação de seguir as rígidas normas da educação alemã e a vontade de ser como as outras crianças. Sua mãe não tem força para optar pela educação da filha. Assim, a menina cresce sob a censura da avó e à sombra da prima, a ´preferida e perfeita´ Anemarie, a única a romper o cerco opressivo.

Alice, a narradora de ´Reunião de família´ (1982), ao afastar-se da casa em que vive com o marido e os filhos, para reunir-se com os irmãos e o pai, demonstra explicitamente sentir falta de seus afazeres domésticos e não se desliga da rotina de sua casa.

Admite sua dependência emocional do marido autoritário e sucumbe a suas vontades próprias para não contrariá-lo. Seu marido representa uma espécie de ´salvador da pátria´, que a libertou da rudeza do pai. Ela até os compara para mostrar que o marido, embora com todos os defeitos, é bem melhor que seu genitor, consoante o trecho: (Texto IX)

TRECHOS

TEXTO I

´... todos os homens que inventei, paridos da minha fantasia, sólidos ou frágeis, grosseiros ou machucados, vitoriosos ou traídos... sempre os achei solitários, embora não me fossem apresentados como espécimes muito confiáveis. Desde criança ouço falar pouco confiáveis. Desde criança ouço falar pouco bem deles. (RM p.71) /.../ escrevo muito sobre a solidão dos homens - que é também a solidão de suas mulheres´. (RM p. 73)


TEXTO II

´O marido desistiu de lhe ensinar a arte dos bordéis, preferindo teúdas e manteúdas àquela adolescente que já lhe provocava mais arrepios de medo do que de desejo. Mudou-se para uma de suas fazendas, no casarão aparecia apenas como visitante temido. Minha avó ficou meio esquecida com as empregadas e uma governanta. Quando o marido irrompia naquela falsa tranqüilidade, não deixava de procurar a mulher. Dava um jeito de abrirem o sótão, e, entre gritos e escândalo, emprenhava Catarina outra vez´. (AP p. 15)

TEXTO III

´Nossa família era isso: os pais, felizes e alheados, falavam conosco, nos levavam para a praia nos verões. Papai indagava da escola, mas não éramos nós sua verdadeira preocupação: era mamãe. Pensei que se amavam demais, o resto do mundo não interessava...´ (AP p.28).

TEXTO IV

´No banheiro Renato foi obrigado a se ajoelhar; achei grotesco alguém pedir perdão de joelhos por urinar fora do vaso... Sujou? Agora limpe com a língua... o pai então pressionou-o com a mão poderosa e ossuda até esfregar o seu rosto no chão. (p.36) /.../ Nunca deixei de ter medo do meu pai. Acho que todos temos. A um gesto seu, mais brusco, afastamos instintivamente a cabeça, como para fugir daqueles tapas de antigamente. Pois apanhávamos até na frente de nossos amigos... Nossos castigos eram constantes e cruéis: tapas, surras, horas sentados quietos sem licença de levantar nem para beber água´. (p.35)

TEXTO V

´Lembra o dia quando o senhor esfregou minha cara nomijo do chão, lembra? ... Naquela ocasião Berta me contou que minha mãe morreu de desgosto, de solidão. Muitas pessoas comentavam isso, para ela o senhor também foi um carrasco. p.84... Berta me disse também que logo antes de morrer nossa mãe pediu que ela tomasse sempre conta de nós, porque o senhor não tinha coração. Ela falou: ´O pai deles não tem coração´. (p.85.

TEXTO VI

´Há um personagem masculino que abordei com especial reverência. Aquele que chamei pater dolorosus, cumprindo uma paternidade pouco conhecida: segurando nos braços seu filho adolescente pouco mais que um vegetal, alimentava-o pacientemente com uma colher, limpando-lhe do queixo o mingau que escorria, enquanto os pobres olhos desarticulados o contemplavam em muda - e terrível - devoção. /.../ Não sei se voltarei a sentir a pungência que me varava cada vez que eu via com meu olhar interior, e descrevia, esse homem de uma tal grandeza. Não digam que em meus livros os homens são uns fracos´. (RM p.97)

TEXTO VII

´A vida não é fácil ao lado de meu Pai, aquele olho azul sempre avaliando e despachando. /.../ Meu pai é controlador. Sabe e vê tudo, pesa, corta e divide. Mas o meu pensamento ele não consegue regular. Ele decide a existência de minha Mãe, mas não poderá impedir sua mirada. Prevê as vitórias de minha irmã, mas não escreverá todo o destino dela´ (PC p. 47)

TEXTO VIII

´Só depois que tudo aconteceu e que essa história foi desenrolada até quase o final, compreendi que sua insegurança o fazia agir assim; por medo queria conformar as coisas todas segundo sua vontade. /.../ (Meu pai também carregava a sua dor)´ (PC p. 23)

TEXTO IX

´Aos dezoito anos casei e fui construir a minha vida com aquele que fora meu primeiro namorado. Um rapaz quieto e bondoso, muito menos severo e exigente do que meu pai. Desisti dos planos de estudar, resolvi ser uma boa dona de casa´ (p.35) /.../ Por sorte, casei-me com um homem menos exigente,que não é severo; apenas um pouco distante. Fico feliz quando noto que está contente comigo´. (p.20). (Num tom confessional.)

Carência afetiva dos filhos

Conto de Fada 1944. Óleo sobre tela. 152 cm X 92 cm. Coleção particular (Foto: REPRODUÇÂO)
É praticamente regra geral na obra de Lya a referência dos filhos aos pais, como negligentes, distantes, desapegados ou violentos. Todos, invariavelmente, apresentam sequelas dessa ausência, sejam ocasionadas pela fragilidade, pelo descaso ou pela morte da mãe; sejam provocadas pelo excesso de apego do pai à esposa, sejam pelo autoritarismo ou pelo desprezo. Leiamos, então, as palavras de Anelise, filha de Norma, a frágil filha de Catarina (´As parceiras´): (Texto X)

As marcas da infância
Gisela, de ´A asa esquerda do anjo´ tem a infância marcada pela rigidez da avó, que lhe impõe uma educação alemã, quando sua alma brasileira clama pela liberdade de ser criança. Sua mãe não é capaz de se rebelar e mantém a situação para não contrariar a sogra. Na fase adulta, Gisela revela-se uma pessoa extremamente mal resolvida.

Alice, a narradora de ´Reunião de Família´, registra a falta que fez a mãe morta tão cedo e mostra a indiferença e o desapego da pai: (Texto XI)

Ausência e carência
Em ´A sentinela´, a carência da personagem Nora é tanta que ela chega a pensar que seria melhor ter morrido no lugar da irmã, só para chamar atenção. A extrema atenção dada ao seu filho, Henrique, é um processo de transferência fruto da ausência da figura materna ´como mãe enquanto matriz, enquanto ser que gera e acolhe o filho´. A forma como Nora recebe o único bolo de chocolate mandado pela mãe, enquanto estava no internato, denuncia a necessidade do afeto materno.

Após ouvir da mãe que sempre foi uma intrusa em sua vida, ela conversa com Olga, a irmã por parte de pai e tem a seguinte avaliação (Texto XII)

Zona de conflito
O Menino de ´O ponto cego´, que se sentia rejeitado pelo pai, mas superprotegido pela mãe, na ausência desta, desabafa, então, sua carência: (Texto XIII)

A maioria dos ´filhos´, nos romances em foco, tiveram uma infância privada de amor; as mães, sempre ausentes por não terem ´condições´ de assumir a maternidade, são, na maioria dos casos, incapazes de carinho ou atitudes mais afetivas. O pai, em vez de suprir a lacuna, geralmente se ausenta ou se comporta de forma muito rígida, propiciando o desenvolvimento da insegurança dos filhos que não sentem apoio na família. A consequência desse tipo de educação é uma total carência afetiva, além da tendência natural a atrair relacionamentos igualmente confusos, bem como insatisfatórios.

Elementos recorrentes
Em todos os romances de Lya Luft, a família aparece como propulsora dos desajustes dos filhos, que tendem a viver situações idênticas, quando têm um lar. A mulher aparece, na sua ficção, sempre inserida num contexto familiar patriarcal, vivendo ´exilada, marginalizada à procura de formas de sobrevivência mediante satisfações substitutivas, ou então pela sublimação de suas perdas através da arte´, como Assinala Osana (2003 p.13). Em ´As parceiras´, a própria narradora, Anelise, se considera de uma ´família de perdedoras´. Sua irmã, Vânia, aceita, inclusive, como condição para casar-se, a opção de não ter filhos, para não ´transmitir o legado da sua miséria´, como disse Brás Cubas um século antes.

Nas outros romances, ´A asa esquerda do anjo´ e ´Reunião de família´, a personagem feminina continua submissa e insatisfeita; quando alguém rompe o cerco e se rebela, paga sempre um preço muito alto. Nos seguintes, ´A sentinela´, ´O quarto fechado´, ´Exílio´ e ´O ponto cego´, as personagens femininas, além de não serem capazes de manter os relacionamentos afetivos com o parceiro, falham como mães, seja pela incapacidade de lidar com os problemas, seja pelo peso se um passado de opressão. Acabam, inevitavelmente, reproduzindo os desajustes de que foram vítimas quando da infância.

Conclusão
Os homens aparecem como figuras secundárias, mas não desvinculadas dos dramas familiares: Em ´As parceiras´, ´Reunião de família´ e ´O ponto cego´ é o autoritarismo deles que gera toda a desarmonia. Já em ´A sentinela´ e ´Exílio´, é passividade do homem/pai que intensifica o vazio do amor familiar, já que as mães, nesses dois romances, nada têm a dar aos filhos, tal como a Renata de ´O ponto cego´.

Em todos os casos, a carência afetiva dos filhos é imensa e se reflete nos adultos em que se transformam, incapazes de amar inteiramente ou de serem generosos com o outro. A família é, pois, celeiro de autoritarismo, desarmonia e desafeto, quando não de rejeição, revelando, assim, a fragilidade do ser humano diante da vida e de si próprio.

TRECHOS

TEXTO X

´Caminho nesta solidão prateada, e penso em minha mãe, que conheci tão pouco. Quando ela casou todos acharam que lhe convinha muito aquele homem já maduro, bondoso. Ainda por cima um médico, que poderia entender e tratar melhor certas singularidades de Norma. Pois ela era um pouco infantil, desinteressada pelas coisas práticas, aparentemente incapaz de assumir uma família sua. Pareceu feliz com meu pai, viviam bastante isolados /.../ Depois do jantar tocava piano para ele na sala: era para ele que tocava, cantava, vivia /.../ (AP p.25) /.../ ´Meus pais eram bondosos e tranqüilos, mas distraídos. Talvez sentissem a brevidade do se prazo, a felicidade precária precisava ser tão protegida quanto minha mãe, que sobrevivia apenas assim, pairando pela casa, quase ausente, acompanhando um pouco a distância a vida dos filhos e os acontecimentos domésticos. Nunca podíamos correr, gritar, discutir na frente dela, tudo a perturbava, começava a chorar, recolhia-se ao quarto, me deixava louca de remorsos´. (AP p. 26)

TEXTO XI

´Cresci sem mãe; sem avós; sem tias nem primas; nosso pai não era ligado à família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de dormir, ou contar histórias; para me dar conselhos. Nem para cuidar de Evelyn, que era um bebê quando nossa mãe morreu, e foi criada por Berta; ou para ajudar meu irmão Renato, que só levava surras de nosso pai´. (20) /.../ ´O Professor não era um pai de verdade; desses que chegam em casa no fim do dia e a gente se alegra com sua presença; desses que pegam o filho no colo; ou os levam para passear. ... Todos chamavam meu pai de Professor. às vezes também o tratávamos assim, e ele nunca reclamou. Nossa casa era a continuação da escola: deveres e castigos; medo de errar´. (p.20)/.../ ´Naquele tempo carregava comigo uma fotografia de minha mãe; dormia com ela debaixo do travesseiro; beijava-a; chorava seguidamente sem maior razão, e me sentia muito infeliz´.(RF p.35)

TEXTO XII

´- Isso não é normal na sua idade /.../ Esse amor de criança carente na sua idade é coisa de psiquiatra. Vá se tratar, eu já disse (p.28). Nora fala que sempre se sentia desprotegida, já que o pai sempre dizia que ´Elsa era uma grande mãe e [ela] a filha ingrata´.


TEXTO XIII

´ Choro sozinho no escuro de noite e não tenho por quem chamar, pois minha mãe, que hoje sonha com outro, já não virá me confortar. (PC p. 127) j´O que vai ser de mim? Quem vai me dar colo de Mãe, quem vai me confortar e manter afastados os horrores todos? As Tias cacarejam ao meu redor, excitadas com a importância que de repente assumiram cuidando de mim, raro caso de dasarrumação do tempo´. (PC p. 151)

FRASES SOBRE LYA LUFT

´Louve-se ainda, nesta extraordinária criadora de figuras e situações que é Lya Luft, a sobriedade e a exatidão de sua língua literária - ajustada a seus motivos, como a pele ao corpo apolíneo´

Josúe Montello
Ficcionista

´A tessitura da frase de Lya Luft já nos diz de uma prosa irretocável, na qual a condição humana assume o papel de protagonista. Tudo nela é verdadeiro, principalmente quando as estruturas do real sofrem um abalo´

Rômulo A. P, Souza
Crítico literário

SAIBA MAIS

Judith. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Donizete A. Espaço e identidade em Lya Luft: Exílio. Dissertação de Metrado. UFPa, 2007.


M. Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. Rio de Janeiro: Anablume, 2003

LUFT, Lya. Exílio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.

LUFT,Lya. A asa esquerda do anjo.São Paulo: Siciliano, 1991.

LUFT,Lya. O quarto fechado. São Paulo: Siciliano, 1991.

LUFT,Lya. Reunião de família. São Paulo: Siciliano, 1991.

LUFT,Lya. A sentinela. São Paulo: Siciliano, 1994.

LUFT,Lya. O rio do meio. São Paulo: Mandarim, 1996.

LUFT,Lya. O ponto cego. São Paulo: Mandarim, 1999.

LUFT,Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Record, 2003.

LUFT,Lya. Mar de dentro. Rio de Janeiro: Record, 2004.

ELÓDIA.Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Ventos, 1998