terça-feira, 30 de outubro de 2007

OS MISTÉRIOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Trabalho publicado no Fascículo VestLetras - Jornal O POVO, 1996

DADOS BIOGRÁFICOS

Lygia Fagundes Telles nasceu a 19 de abril de 1923, em São Paulo. Filha de um promotor público e de uma pianista amadora, teve uma infância andarilha pelo interior do estado natal, onde fez o curso primário. A sua paixão pelos mistérios deve vir dessa época, pois teve a sorte de conviver com uma pajem que adorava contar histórias de bruxas, fadas, assombrações, sacis, florestas encantadas e mulas-sem-cabeça, histórias essas que retinha na cabeça e, às vezes, nos cadernos. Ela própria passou, depois, a contá-las em público, com a intenção de transferir o medo que sentia ao ouvi-las.

Já na capital, cursou o ginásio, quando começou a escrever as suas primeiras histórias, e o curso normal, logo rompendo com os padrões da época ao entrar para a Faculdade de Educação Física e, depois, para a de Direito, por volta da década de 40.

A pedido da mãe pianista, Lygia recitava Casimiro de Abreu, Olavo Bilac e Guilherme de Almeida, mas foi lendo Edgar Allan Poe, Tolstoi, Virgínia Wolf, Kafka e Faulkner, que definiu a sua preferência pelo gênero de ficção.

Mesmo tendo vivido o Brasil do Estado Novo, quando a ditadura de Vargas censurava a imprensa e perseguia os estudantes, a escritora não se furtou do prazer de levar a lume a sua primeira obra __ Praia Viva (1944), a que se seguiria O Cacto vermelho (1949), ambos livros de contos. Apesar de nunca ter tido problemas com a censura, Lygia não deixava de participar de atos públicos, manifestos e abaixo-assinados em favor do livre exercício da profissão do escritor. Em 1954 ela lança o seu primeiro romance __ Ciranda de Pedra __, que, nos anos 80, foi transformado em novela pela Rede Globo.

Hoje, rígida com o artefato literário, Lygia fala dos seus dois primeiros livros como oriundos dos impulsos da adolescência. Dividindo-se entre o romance e o conto, ela vive ainda em São Paulo, aos 73 anos, em plena atividade de criação. A sua última obra, uma coletânea de contos intitulada com um verso do poema “Assovio” (do livro Viagem) de Cecília Meirelles __ A noite escura e mais eu __, foi publicada no ano passado (1995).



CONTEXTO HISTÓRICO-LITERÁRIO

Tendo estreado na literatura no ano de 1944, Lygia Fagundes Telles situa-se, cronologicamente, na terceira fase do Modernismo brasileiro denominada “Geração de 45”, ao lado de Clarice Lispector, Fernando Sabino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos, entre outros. Mesmo desligada de grupos, ela já trazia a marca da geração pós-guerra, empenhada que se mostrava no resgate do mundo interior do homem.

Com efeito, a prosa de 45, como a que se seguiria nos anos 50, apresentava tendências bem diferentes do Romance Regionalista de 30, (que configurou a segunda fase do Modernismo). A temática das relações sociais dessa segunda fase, enfocadas prioritariamente na região nordestina, foi substituída por narrações intimistas, cujo cerne era a reconstrução do ser humano, há pouco afetado pelos traumas da II Guerra Mundial.

Embora não se possa qualificar a ficção de Lygia Fagundes Telles como essencialmente intimista, é na efusão da prosa psicológica e introspectiva que ela surge e se fixa no meio literário como uma escritora urbana.

Mas ela não se limita a refletir a condição e a natureza humanas através de suas personagens, predominantemente femininas. Cria, também, em muitos dos seus contos, uma supra-realidade; ou seja, constrói um mundo misterioso, em que a lógica dos acontecimentos é somente admitida como extranatural. Lançadas esparsamente nos seus livros de contos, essas narrativas breves, consideradas em sua maioria como fantásticas, foram reunidas na obra Mistérios, que veio a lume em 1981.

Como o próprio título prenuncia, os 19 contos que compõem a coletânea têm os seus enredos conduzidos por uma fato misterioso, que subverte a realidade do mundo empírico.

DIFERENÇA ENTRE NARRATIVA DE MISTÉRIOS E NARRATIVA FANTÁSTICA

Fantástico é um gênero de ficção que se afirmou em meados do século XIX, com o advento do Romantismo. Diversos teóricos ( Roger Caillois, Louis Vax, Tzvetan Todorov, Irène Bessière, Filipe Furtado, Victor Bravo) se empenharam em sistematizar os seus cânones, enquadrando-o, de modo geral, como um tipo de narrativa cujo enredo traz um fenômeno que não pode ser explicado pelas leis da razão. Para que se conduza o efeito fantástico, não basta se ter um mistério, mas é necessário que o texto não traga sinais ou dados que possam intuir a compreensão racional dos fatos extraordinários que estão sendo encenados. Esses fatos só podem ser concebidos à luz do sobrenatural.

Já a narrativa de mistérios não tem que se submeter à condição da inexplicabilidade. Há um mistério que se interpõe como o motivo condutor do texto, mas as pistas que o decifrariam podem estar implícitas no discurso, possibilitando a sua revelação ou deixando pairar suspeitas consistentes. Tomemos como exemplo ilustrativo dois contos da obra Mistérios: “Noturno Amarelo” e “Venha ver o pôr-do-sol”.

No primeiro, a personagem Laura faz uma viagem ao passado, reencontra os familiares, numa fração de tempo que não consegue ser cronometrada. No seu retorno ao tempo presente, percebe que o horário é o mesmo em que estivera na casa da avó e que o seu companheiro não se deu conta da sua ausência. Chega-se a pensar que a transposição temporal da personagem foi apenas “psicológica”, mas, antes que essa justificativa se consolide, ela revela que mantém guardada na mão a pulseira que Eduarda lhe dera como nova aliança de amizade. Ora, Eduarda é uma personagem do plano do passado e foi durante o inusitado encontro que Laura teve com ela que a pulseira lhe foi ofertada. Se o objeto, dado no plano do passado, se mantém no poder de Laura, no seu retorno ao presente, temos a prova de que o impossível pôde se realizar, ou seja, a personagem fez realmente uma viagem ao passado e nada há que possa explicar a insólita façanha. Nesse caso, estamos diante de um texto fantástico.

Em “Venha ver o pôr-do-sol”, Ricardo convida a ex-namorada Raquel, então noiva de um rapaz rico, para ver o pôr-do-sol em um cemitério abandonado. Imbuído do intuito de vingança, por ter sido trocado por outro só por causa de dinheiro, ele a induz a entrar numa catacumba, fingindo-se consternado por ter enterrado os seus familiares queridos ali. Raquel se despoja da postura de superioridade e se sensibiliza com a história, mas, quando cai em si, percebe a armadilha: Ricardo a tranca na catacumba e foge, deixando-a aos gritos, certo de que ninguém a socorreria. O texto finda com os gritos desesperados da moça, interrompendo-se sem um desfecho definido. Deixa reinar o mistério da morte ou da sua sobrevivência da personagem. Apesar da incerteza dos fatos, concernente aos textos fantásticos, a narrativa não se insere no gênero, pois nada há de inexplicável; há, sim, muito de inusitado e macabro, pois não é comum um convite para fazer uma despedida num cemitério abandonado, de onde se pode ver “o pôr-do-sol mais lindo do mundo” (p. 204).

Como se observa, apenas em “Noturno amarelo” o gênero fantástico se afirma, o que nos induz à constatação de que nem todo mistério é fantástico, embora todo fantástico conduza um mistério.

Os contos que conduzem o fenômeno fantástico

Como acabamos de expor, nem todos os contos da coletânea são fantásticos, embora todos resguardem um mistério. Conheçamos, então, os que são considerados fantásticos e o fenômeno que cria tal efeito estético.

O efeito fantástico do conto “Emanuel” consiste na materialização de um homem que, durante todo o conto, existiu apenas no imaginário da personagem protagonista. Quando Afonso anuncia que Emanuel, o amante de olhos verdes, chegou para buscar Alice, todos são surpreendidos pois ela sabe que esse Emanuel não existe e, embora os amigos dela não tivessem certeza de que ela havia mentido, desconfiavam de que se tratasse apenas de um delírio, como de fato era. A chegada do tal amante subverte, pois, as leis da razão ao fazer irromper no real um ser fictício, produto da imaginação prodigiosa de uma mulher carente.

O fenômeno de “A caçada” está no encontro da personagem com o seu duplo, ou seja, com o seu outro eu soterrado pelo tempo. A narrativa transcorre em torno da sua obsessão em descobrir o motivo da intensa familiaridade que lhe insinua uma velha tapeçaria (com a cena de uma caçada) dependurada na parede de uma loja de antigüidades. Imagina ter sido o artesão que confeccionou a peça, o pintor que fez o quadro original, o caçador que tem o arco empunhado para a caça arquejante ou o companheiro que fica à espreita por detrás da árvore. Sem descobrir a identidade com a cena, o herói do conto se angustia e, na última visita ao local, vê-se, de repente, dentro do bosque. Ou seja, inexplicavelmente, o bosque da tapeçaria invade a loja e ele é transformado em caça, sendo logo atingido pela seta disparada do arco do caçador. Assim, descobre o seu duplo e termina ferido. Não se pode assegurar que ele morre, nem que espaço predomina no desfecho: se o chão do bosque ou o da loja. Tal indefinição visa a acentuar o efeito fantástico.

Em “O encontro” o tema também é o do duplo. Passeando pelo bosque, intrigada pela intimidade com a paisagem desconhecida, a personagem se encontra com uma moça que parece retirada de um álbum de fotografias bem antigo, haja vista o traje antiquado. Ao iniciar o diálogo, a personagem, inesperadamente, antecipa episódios da vida da moça e decifra a profunda tristeza que a acomete. Completamente desiludida, a moça antiga monta no seu cavalo. A protagonista, então, descobre o mistério: aquela moça fora ela em outra vida. Sabendo a atitude extrema que ela tomará, a personagem tenta impedi-la, mas não consegue. A moça se atira no despenhadeiro, deixando-a imersa no desespero dos impotentes, ao assistir o seu próprio suicídio em outra vida. Esse fenômeno poderia perfeitamente ser explicado pelo Espiritismo, mas, como o texto não faz nenhuma menção a crenças religiosas nem propicia pistas que justifiquem o fato ocorrido, o efeito fantástico se consolida.

“As formigas” é um conto que traz como protagonistas da ocorrência insólita os próprios insetos. Duas estudantes, uma de medicina e outra de direito, hospedam-se numa pensão barata, situada em um velho sobrado de aparência sinistra. No quarto, que na verdade é um sótão, descobrem uma caixa com os ossos de um anão, o que logo desperta o interesse da estudante de medicina, que se propõe montar o esqueleto oportunamente. Elas terminam fugindo atemorizadas do local, pois descobrem que pouco a pouco o esqueleto está sendo montado pelas formigas que, formando uma trilha espessa, aparecem repetidamente por volta da meia-noite. Como não conseguem descobrir de onde vêm os insetos, nem o que capacita a minúscula espécie a proceder tal operação, supõe-se a intervenção do sobrenatural.

Fábio Lucas, na sua análise sucinta dos contos da obra Mistérios, diz que o “Seminário dos ratos” encera uma fábula: “parte do referencial é o ‘milagre’ brasileiro, ou seja, a emergência da tecnoburocracia ilustrada e de seus filhos diletos: a censura, a repressão, as mordomias, o sigilo da administração etc.” O discurso do conto “Seminário dos ratos”, entretanto, não propicia dados que confirmem tal simbologia, e, segundo Todorov, para que haja alegoria (uma representação da realidade), é necessário que o texto traga referências explícitas aos fatos vinculados à realidade referencial. Assim, pode-se fazer a leitura fantástica do texto a partir da estranha invasão dos ratos à mansão onde se realiza o “VII Seminário dos roedores”. Que explicação racional pode haver para o poder que adquirem os mamíferos roedores, capacitados que se encontram de conduzir alimentos e objetos desproporcionais para os seus tamanhos? E para o poder de enfrentar um ser racional, de igual para igual e vencê-lo? Só a lógica extranatural pode conceber tais fatos como possíveis.

Em “Tigrela” e “Lua crescente em Amsterdã” o efeito fantástico se realiza na incerteza do acontecimento. Ambos supõem uma metamorfose, que só se evidencia nas entrelinhas. Em “Tigrela”, uma tigresa, criada num apartamento, convive com os seres humanos numa relação de igualdade. A sua companheira, Romana, cansada dos seus ciúmes, resolve induzi-la ao suicídio. Enquanto aguarda o desfecho, ela fica temerosa que descubram que quem se atirou do prédio foi uma jovem nua. Como o suicídio está programado para a meia-noite, a hora das transformações e dos festins das bruxas, fica patente a possibilidade de que o animal se transforme numa mulher, embora o discurso não afirme que o fato ocorre.

Já em “Lua crescente em Amsterdã”, um casal, desprovido de condição financeira para sobreviver em uma cidade estranha e sem mais afeto um pelo outro, apenas manifesta o desejo de se transformar em outra espécie (para sair da situação) e desaparece do cenário. Após o forte vento que assolou o jardim, no lugar em que eles se encontravam, aparecem o passarinho de penas azuis e a borboleta, exatamente as espécies escolhidas para a transformação. Note-se que, geralmente, esse tipo de fenômeno é sinalizado pela ventania ou pela tempestade __ o que aconteceu prontamente, implementando a possibilidade da metamorfose.

Em “Noturno amarelo”, como vimos há pouco, o fenômeno fantástico consiste numa viagem ao passado. Através da transposição temporal, a personagem reencontra os familiares em uma noite antiga e volta para o presente, trazendo um objeto que lhe fora dado pela prima durante a sua estada na casa da avó que, como sabemos, se situa no outro plano.

No “Natal na barca” é o fenômeno da ressurreição que subverte a lógica. Uma mulher (a narradora), após ouvir a triste história da companheira de viagem, percebe que o filho dela está morto sob o xale. Comovida, ela tenta fugir para não presenciar o desespero da mãe, mas é surpreendida pela declaração dela: “__ Acordou o dorminhoco!”. Para a mãe, acordou quem simplesmente dormia, mas para a mulher aconteceu uma inexplicável ressurreição. Por que consideramos o fenômeno da ressurreição? Porque a personagem não admite que se equivocou, nem atribui o fato a um milagre da noite de Natal. Queda perplexa, buscando explicações nas misteriosas águas do rio.

Já em “A estrela branca”, o motivo fantástico é a possessão. Um jovem, na iminência de cometer o suicídio, revoltado pela cegueira repentina, é impedido de cometer o ato por um médico que promete devolver-lhe a visão, apenas em troca do sucesso da cirurgia. Leva-o para conhecer o doador __ um velho mendigo moribundo, já na fase final. Após o transplante, o jovem percebe que não tem nenhum domínio sobre os olhos, pois eles não querem atender o seu desejo de olhar a estrela branca __ razão mística da sua existência. Além de desobedecer-lhe, os olhos se divertem às suas custas, como se se mantivessem presos ainda à vontade do asqueroso doador. Sem encontrar meio de libertar-se, o jovem decide, outra vez, cometer o suicídio para assassinar os monstruosos olhos, que, apavorados com a idéia da morte, passam, então, a obedecer a ele. Ora, um transplante de olhos, na lógica natural, não implica nenhuma ligação do doador com o receptor __ o que nos leva à compreensão do fato como um fenômeno transfigurador da realidade.

Em “A mão no Ombro” o enredo é também condutor de uma ocorrência fantástica, ou seja, de algo que transgride as leis racionais. Durante um sonho, um homem vê-se em um jardim fora do tempo e do espaço e se apavora com o pressentimento da morte que lhe parece chegar através de uma mão que quer tocar o seu ombro. Atordoado, ele resiste e acorda, fugindo, assim, de seu algoz. Em vigília ele se mantém impregnado com a idéia da morte próxima e faz um balanço da sua vida, comovendo-se com a frieza das relações familiares. Ao sair para o trabalho, ele se depara outra vez com o mesmo jardim, desta vez, não mais em sonho. E, para fugir da morte, arquiteta uma saída: se no sonho, ele escapou acordando; em vigília, haverá de escapar dormindo. Resolve dormir para devolver a realidade ao sonho e assim vencer a maldita morte que o persegue. O sonho, então, continua do ponto em que começou, mas, como a narrativa é finalizada, não se pode confirmar nem o mérito nem o fracasso da personagem.

Os contos que conduzem o mistério sem o efeito fantástico

Em “A presença” o mistério reside no comportamento obstinado de um jovem que insiste em permanecer num hotel reservado apenas para os mais velhos, como um hóspede completamente indesejado. Mesmo sabendo que a sua presença significa uma verdadeira agressão àqueles que, assolados pela decrepitude, se isolaram ali para esquecer o mundo, ele mantém uma postura imperiosa, a ostentar a beleza e a saúde da juventude, como se tivesse a intenção de ferir propositadamente os velhos. As advertências do porteiro insinuam claramente a possibilidade de um assassinato, visto que os velhos, agredidos e contrariados no seu espaço, seriam capazes de tudo para expulsá-lo. Por fim, a própria narrativa sugere o assassinato, ao relatar que, durante o jantar, o rapaz “achou um certo amargor na goiabada com queijo” e, após, “já não se sentia bem”. Supõe-se, pelas pistas dadas no relato, que os velhos decidiram realmente pela exclusão do intruso, sem ponderar os meios. Não esqueçamos que o narrador, tomando as palavras do porteiro, avisou ao jovem que eles (os velhos)

usariam de todos os recursos para que as regras do jogo fossem cumpridas: até onde poderia chegar o ódio por aquele que viera humilhá-los, irônico, provocativo, tumultuando a partida. (p. 219).

Mais uma vez fica-se sem saber se a morte realmente ocorreu. Se admitida essa possibilidade, o ódio dos velhos os colocaria como suspeitos de um crime, aproximando a narrativa do relato policial __ o que explicaria todo o mistério.

No conto “O jardim selvagem” há a estranheza da doença repentina da personagem Ed, logo seguida de um suicídio. O casamento dele com Daniela surpreende a toda a família, que só é comunicada da união depois de efetivada. Além disso, a mulher apresenta traços inquietantes como o fato de usar permanentemente uma luva na mão direita e de transformar a fisionomia quando fica com raiva:

__ Quando fica brava... A gente tem vontade até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor. (p. 55).

Outra atitude incomum é o assassinato frio do cachorro de estimação, sob a alegativa de que

a doença sem remédio era um desafino, o melhor era acabar com o instrumento para não tocar mais desafinado (p. 54).

O enigma que resguarda essa mulher, comparada pelo marido a um jardim selvagem, torna-a suspeita de um assassinato ou, pelo menos, de indução ao suicídio do marido. A atitude e a justificativa para o que fizera com o cachorro é uma pista incontestável: se Ed estava doente, sem cura, era comparado a um desafino e ela foi clara ao dizer que era melhor acabar com o instrumento a ouvir o som desafinado; ou seja, para ela, o fato de não querer conviver com a doença justificava a decisão pela morte. Observemos, porém, as astúcias do discurso para escamotear as suspeitas: Pombinha, a irmã de Ed, ao conhecê-la, considera-a um “amor de moça” (p. 53) e os próprios médicos elogiam a sua dedicação ao companheiro doente. Mas tais elogios funcionam, insistimos, como dados escamoteadores da atribuição da sua possível culpa. A mesma empregada, que relatou estarrecida o episódio da morte do cachorro e a explicação de Daniela, diz que o ato extremo dele foi “por causa da doença”, como a lançar discretamente uma suspeita. Esse conto, como o anterior, também se aproxima do relato policial.

Já a narrativa de “Venha ver o pôr-do-sol”, conforme comentamos há pouco, implementa o seu mistério com a indefinição das conseqüências do ato de Ricardo: Raquel morrera presa na catacumba? Haveria possibilidade de que ele se arrependesse e voltasse para salvá-la? Alguém poderia ouvi-la? O desfecho é uma interrogação que incrementa o teor macabro do enredo.

Em “O dedo”, é o insólito o motivo condutor da história. Catando conchas e seixos numa praia selvagem, uma moça encontra, entre as coisas que o mar atirou na areia, um dedo. Apesar de faltar-lhe a última falange, ela o identifica como feminino pela existência de um anel com uma bela esmeralda. A partir daí, ela começa a lançar hipóteses sobre quem seria a dona do dedo e conclui que seria, provavelmente, uma mulher rica e de meia-idade. Depois, questiona os motivos daquela morte no mar e deduz três possibilidades: ela teria naufragado com um elegante transatlântico, poderia ter sido vítima de crime passional ou simplesmente ter cometido o suicídio. Perseguida pela personalidade dupla, a personagem vê-se tentada pelo seu lado calculista a ficar com o anel. Mas, com medo de que a morta, a “dama do mar” como ela a denomina, o reclame, decide por obedecer ao seu lado emotivo e enterra o dedo na areia da praia.

No conto “O noivo” é a amnésia direcionada que constitui a estranheza do relato. Miguel é acordado pela criada, que avisa estar já na hora do seu casamento. Surpreso, ele demora a admitir que irá casar-se àquela manhã e, mesmo ao encontrar o fraque e a mala preparada para a viagem de lua-de-mel, não lembra ter assumido esse compromisso, nem com quem. Perturbado, ele testa a memória e constata a sua total lucidez, inquietando-se mais ainda por perceber que só não recorda o detalhe do casamento e quem é a noiva. Mostrando-se avesso à instituição do matrimônio, ele cita vários nomes de mulheres com quem se relacionou, para ver se descobre quem é a escolhida. Tarefa inútil; só quando chega à igreja, escoltado pelo seu melhor amigo, é que desvenda o mistério:

“Que estranho. Lembrei-me de tantas! Mas justamente nela eu não tinha pensado...” [...] Inclinou-se para beijá-la (p. 187).

Embora o protagonista desvende o mistério, não o revela ao leitor, que se mantém intrigado com o desfecho evasivo, pois o discurso não fornece nenhuma pista que possa esclarecer a identidade da noiva.

Em “O muro” e “Negra jogada amarela” o mistério está intrinsecamente ligado à infância. O velho de “O muro”, enquanto criança, era tão obsediado para ver o que existia no quintal do vizinho, misteriosamente escondido pelo muro que os pais não o deixavam transpor que, nos instantes finais da sua vida, resgata os momentos da infância só para poder conhecer o enigmático território. Enquanto conhece o outro lado do muro, passa serenamente para o outro lado da vida. O quintal do vizinho, com suas árvores frondosas, vai-se acoplando ao território do paraíso e se fundindo num só espaço, atapetado pelo verde das copas das árvores. Já em “Negra jogada amarela”, a personagem, ao descrever o jogo da amarelinha e Kalina, a amiga de infância, cria a metáfora da vida, que passa a ser entendida como um jogo para o qual se precisa ter fôlego e coragem.

Em “Um coração ardente” temos o tema do desencontro na percepção de um contraste: num mesmo prostíbulo, uma prostituta recusa-se a deixar a vida mundana para casar-se com um pretendente apaixonado por achar que o seu futuro está ali; outra se suicida por não acostumar-se àquela vida e não ter jamais encontrado quem desejasse tirá-la do triste ofício.

O DISCURSO DA INCERTEZA

É utilizando-se de uma linguagem simples e escorreita que Lygia Fagundes Telles costura os seus enredos, arquitetados na consciência da técnica do texto, que não funciona simplesmente como um instrumento de catarse, mas, antes, de testemunho vivo da sociedade contemporânea. Assim, o jovem e o velho, a mulher e o homem, a prostituta e a dama, a mulher reprimida e a liberada, como vimos, figuram na sua ficção como amostras das espécies humanas díspares que vivem os encontros e os desencontros do século XX. Como reconhecem os críticos que compuseram a obra Lygia Fagundes Telles - Literatura comentada, “a literatura da escritora não é uma literatura de evasão. É de mergulho e de reconhecimento nos outros e do próximo”(p.102).

Abordando sempre o conflito que resulta do relacionamento da personagem com o mundo, Lygia prima pela criação de obras, em que o destaque está nos seres fictícios e não na ação. Desse modo, cria, através de sugestões, uma escritura plasmada na incerteza; a essência fica resguardada nas entrelinhas.

Principalmente nos textos da obra Mistérios, ela sugere mais do que diz propriamente. Há uma supervalorização do envolvimento do leitor com a história. Confiramos alguns fragmentos em que este é levado a completar as declarações do narrador:

Um equívoco, é lógico: um amigo ia se casar e a roupa viera para ele, feito tonta Emília recebeu o pacote e pensou que. [“O noivo” (p.179)].

O mesmo discurso reticente se repete no conto “Tigrela”:

Crescera um pouco mais do que um gato, desses de pêlo fulvo e com listras tostadas, o olhar de ouro. Dois terços de tigre e um terço de mulher, foi se humanizando e agora.(p.93)

Além do hábito de deixar, muitas vezes, o discurso evasivo, Lygia investe na ambigüidade; ou seja, em algumas passagens deixa entrever interpretações dúbias. Em “A caçada”, por exemplo, quando a velha comenta a origem da tapeçaria, o homem diz “ __ Extraordinário” (p. 24), o que deixa a personagem e o leitor na dúvida se ele se refere à história relatada ou à estranha familiaridade que a tapeçaria lhe inspira. Mais na frente, na última visita que o protagonista faz à loja de antigüidades, a velha diz: “__ [...] Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho.” (p. 27), ao que ele responde ou pensa intrigado: “Conheço o caminho”, deixando a incerteza do referente: ele conhece o caminho que vai da porta da loja à parede em que está a tapeçaria? Ou o caminho imaginário que o conduz ao bosque da paisagem, no qual ele, inexplicavelmente, penetra? Não existem respostas.

O tema da morte tratado através da incerteza

A morte, um dos temas mais constantes nos seus contos, nem sempre é tratada através de certezas absolutas. Vejamos: em “A caçada”, o protagonista finda penetrando o bosque da tapeçaria e, transformado em caça, sendo atingido pela seta do caçador. Ele lança um grito de dor e rola encolhido no chão. Não se sabe, no entanto, se no chão do bosque ou da loja, como não se sabe se quem morre é o homem ou ele transformado em caça. Aliás, não se pode ter certeza nem se ele morre, pois a narrativa é interrompida no instante culminante.

Em “A mão no ombro”, quando a personagem, em vigília, se depara, outra vez, com o inusitado jardim, desta feita materializado à sua frente, procura dormir para escapar outra vez da morte, e recomeça o sonho do ponto em que o interrompeu, ou seja, do momento em que a mão vai tocar o seu ombro. Como o texto finda exatamente nesse instante, fica-se sem saber se o gesto corresponde realmente à chegada da morte, ou seja, se ele morre, e em que plano essa morte se efetiva: se no sonho ou na vigília.

Em “A estrela branca” a morte significa a salvação da personagem, que encontra nela a única forma de libertar-se do asqueroso mendigo que lhe doara os olhos, mas permanecera neles, impedindo-os de obedecer ao novo dono. Entretanto, o suicídio não se efetiva, pois, como a narrativa é contemporânea dos fatos, ou seja, é veiculada no tempo presente, o discurso termina na iminência do ato. Em “Venha ver o pôr-do-sol”, como em “A presença”, a morte é, também, apenas sugerida no desfecho.

Note-se, pois, que a interrupção do discurso no momento crucial faz parte do estilo de Lygia e visa a provocar a incerteza dos fatos, acentuando, assim, o mistério que se coloca como o fio condutor dos seus enredos.

A morte concretizada

Já em “O dedo”, “O jardim selvagem”, “O muro” e “Um coração ardente” a morte se afigura de formas diferentes: no primeiro, ela se afirma através de um dedo encontrado na areia da praia, levando a protagonista a oscilar entre devolvê-lo intacto ao mar ou apoderar-se da jóia. No segundo, a repentina morte da personagem Ed deixa pairar suspeitas sobre um possível assassinato (ou de indução ao suicídio), haja vista a estranheza do comportamento da sua esposa Daniela. A narrativa de “O muro”, transcorre no território que separa a vida da morte. Padecendo no leito do hospital, o velho, após recordar os momentos significativos da infância, transpõe o limite, aliviando-se do martírio da doença. Em “Um coração ardente”, a morte também se realiza e, neste caso, traz a simbologia do desencontro, um dos temas prediletos de Lygia Fagundes Telles.

Observe-se que a morte é somente tratada sob a égide da incerteza nos contos considerados fantásticos, o que funciona como um requisito para incrementar o mistério de um fenômeno sem explicação. Diferentemente, onde a morte aparece concretizada, nada há que o discurso não justifique.

A metamorfose, outro tema tratado através da incerteza

No conto “Emanuel”, como já tivemos oportunidade de comentar, um ser imaginário se transforma em um ser real, subvertendo a lógica do mundo empírico. A materialização desse ser dá-se no momento em que a frágil Alice aguarda a humilhação de ter a sua mentira desmascarada. A aparição do homem Emanuel, assim considerando, parece conduzir o intuito de redimir Alice da chacota dos amigos __ o que só poderia ser feito por alguém com quem ela tivesse uma forte relação afetiva. Como o único liame dessa natureza que ela possui é o gato, também chamado de Emanuel, de quem ela inclusive roubara características e detalhes para compor a inverdade do amante, supõe-se que a materialização do imaginário decorra da metamorfose do gato no homem. Suposição apenas, porque o discurso não explicita o fato, fornece apenas vagas pistas.

Em “Lua crescente em Amsterdã”, essa possibilidade parece mais consistente, mas também não há uma referência explícita à concretização do ato. Encontrando a metamorfose como a única saída para a situação de penúria em que se vêem, as personagens escolhem os bichos nos quais querem se transformar: ele, em um passarinho de penas azuis e ela, em uma borboleta. Tão logo manifestam o desejo, sopra um forte vento e a menina holandesa que aparecera no início do relato, reaparece procurando-os e não os encontra. Inexplicavelmente, o casal desaparece do cenário e, no lugar em que estavam __ no banco de pedra __ surgem as espécies aludidas, o que induz à sugestão de que a metamorfose se processou.

“Tigrela” já relata a estranha história de Romana, que convive com uma tigresa, num apartamento de um edifício altíssimo. O inusitado do fato já se inicia com a adulteração da espécie animal que possui “dois terços de tigre e um terço de mulher” (p. 93) e com a relação de trocas igualitárias: enquanto a Tigrela se humaniza, adquirindo peculiaridades femininas, Romana introjeta hábitos selvagens como comer cenoura crua, cheirar os alimentos e se olhar no espelho com olho de fenda. À medida em que a possessão da Tigrela aumenta, desgasta a relação e faz com que Romana deseje rompê-la. Ao contrário do que seria lógico, no entanto, a mulher não decide por devolver o animal ao zoológico, induz o seu suicídio ao sair de casa, provocar os seus ciúmes, deixar a porta da área aberta e encher a sua tigela de uísque. Aguarda o desfecho, tensa e ansiosa, na mesa de um café, onde relata o fato a uma amiga. Teme, no entanto, que a morte da Tigrela, deflagrada possivelmente à meia-noite, revele o que ela sempre tentara esconder: a capacidade que o animal tem de se transformar em uma mulher.

O suicídio da tigresa e a possível revelação, entretanto, não se efetivam, embora a sugestão da metamorfose esteja clara. Pode-se ainda supor, pelas atitudes ciumentas da Tigrela e pela incomum submissão de Romana, uma mulher independente e bem definida financeiramente, que o texto coloca nas entrelinhas uma relação homossexual. Como Lygia escreve perenemente sob o signo da incerteza, o discurso só propicia suposições, tecendo, assim, a originalidade do seu estilo.

AS PERSONAGENS

Como já assinalamos, as narrativas de Lygia Fagundes Telles não são de ação, mas de personagens __ o que, na verdade, contraria os requisitos da narrativa fantástica tradicional, onde o sujeito aparece em segundo plano para privilegiar o acontecimento.

Por nos vermos diante de seres fictícios que reproduzem a espécie humana do século vigente, acabamos por nos deparar com seres solitários, muitas vezes atingidos por conflitos existenciais, permanentemente à procura do seu eu, seja nas reminiscências da infância ou no encontro com o seu duplo, ou melhor, com o que fora na vida anterior. Em sua maioria são seres comuns, retirados do cotidiano (as duas estudantes de “As formigas, Laura do “Noturno amarelo”), com as suas patologias (o jovem de “A presença”), seus desejos de fuga (Miguel de “O noivo”) e, sobretudo, sua ânsia de viver (Alice de “Emanuel”, o executivo de “A mão no Ombro”). Há, ainda, uma galeria de seres fictícios que aparecem imbuídos de traços inquietantes, seja pela aparência decrépita ou misteriosa (a dona da pensão de “A caçada”, o velho doador de “A estrela branca”, a protagonista de “Natal na barca”), seja pela personalidade obsessiva (Ricardo de “Venha ver o pôr-do-sol”).

As personagens e o resgate da infância

O período da infância é bastante requisitado nos contos de Lygia. Tal recorrência constitui um traço de relevância na sua obra, atribuindo-lhe um valor especial no tocante ao conhecimento do universo humano. A propósito, Alfredo Bosi, chega inclusive a comentar que “é na evocação de cenas e estados de alma da infância e da adolescência que (ela) tem alcançado os seus mais belos efeitos” (p. 474).

O resgate da infância, especificamente nos contos ora analisados, quando não remete à carência afetiva da personagem, faz uma metáfora do jogo da vida ou cumpre uma função no momento em que a morte se aproxima. Alice, protagonista do conto “Emanuel”, por exemplo, é uma quarentona solteira e virgem, sem nenhum atrativo. É a sua evidente carência afetiva que a faz resgatar a figura do pai super-protetor, morto prematuramente, como para suprir a necessidade de uma presença masculina.

Em “Negra jogada amarela”, Vera, através de reminiscências da sua infância, cria uma metáfora do jogo da vida. Lembra a amiga Kalina, incisiva no jogo da Amarelinha e o mel quente do engenho da mãe. Kalina é o tempo com a sua irreversibilidade; o caldeirão borbulhante, as emoções; os quadrados da amarelinha, a vida com o seu céu, seu inferno e seu purgatório. Ela usa a simbologia dos verbos jogar e brincar para mostrar como se lança na paixão e se atira na vida, certa de que precisa de coragem, como quando se atirava “na trilha dos quadrados”(p.116), desenhada com carvão pela mão segura da amiga.

Em “O muro” e “A mão no ombro” é a iminência da morte que leva os dois protagonistas a buscarem os momentos significativos da infância, como a tecer o retrospecto da existência.

O velho de “O muro” vive os seus últimos momentos, lúcido, a encontrar alento nas lembranças dos tempos de menino:

Cerrou os olhos e olhou para dentro de si mesmo, ah se pudesse ficar até o fim fazendo girar devagarinho o caleidoscópio com as imagens do antigo quintal da sua casa ... (p. 129).

Reencontra, como que filtradas pela lente de um caleidoscópio, a imagem da mãe, do pai, do irmão, do avô, dos bichos de estimação e do muro que separava o quintal da sua casa do do vizinho. Já quase morrendo, ele retorna à infância e o transpõe. À medida em que se extasia olhando para o outro quintal, entrega-se à morte com uma sensação de deslumbramento no rosto.

A personagem do “A mão no ombro”, ao decodificar a insalubridade do inusitado jardim como um aviso da morte, recorre a imagens da infância para confirmar a simbologia fúnebre das imagens com as quais se depara: o caçador do quebra-cabeça que jogava com o pai, que está intuído na mão que quer tocar o seu ombro; a procissão de Sexta-Feira Santa, com a imagem do Cristo crucificado tecendo a sua desilusão (“O medo atrofiando a marcha dos pés tímidos atrás do Filho de Deus, o que nos espera se até Ele?!...”); a queda do trapezista do circo, deflagrando a sua morte na imobilidade do corpo.

Em “O noivo”, o protagonista recorre a detalhes da sua infância apenas para atestar que não perdera a memória. Sem recordar o compromisso do casamento naquela manhã nem quem seja a noiva, ele é levado para a igreja e, misteriosamente, só a reconhece na hora da cerimônia. A sua amnésia, no entanto, restringe-se ao episódio do casamento; todos os pormenores da sua vida, inclusive dos tempos de menino, são repassados lucidamente.

A busca do eu

Entre os mistérios que circundam o cosmo está a existência humana. A busca da identidade tem sido um dos conflitos do homem, principalmente do homem dos anos 40 que sofreu as destruições provocadas pela II Guerra. Testemunha dessa geração desalentada, Lygia insere nos seus temas o fenômeno do encontro com o duplo, que nada mais é que o nosso outro eu, escondido pelos séculos que nos antecederam. Os Românticos, imbuídos dessa busca, embora em outra perspectiva, utilizaram o tema em abundância, e, na verdade, ele nunca se desvinculou da literatura universal.

Tomemos como exemplo o conto “A caçada”, em que o narrador-personagem, depois de viver toda a angústia de não identificar o significado da tapeçaria que o obsediava, descobre ter feito parte daquela cena e que fora a caça, encontrando, assim, a sua identidade. A personagem de “O encontro”, através do mesmo fenômeno, descobre quem fora na vida anterior e como se deu o seu trágico fim.

A solidão

Outro traço marcante das personagens de Lygia é o estado de solidão. Alice, do conto “Emanuel”, é o mais cabal exemplo da solteirona solitária, que volta a aparecer, numa situação menos dramática, é claro, com a personagem Pombinha de “O jardim selvagem”. Romana (de “Tigrela”), separada já do quinto marido, é o protótipo da mulher irrealizada que tenta, em última instância, uma relação supostamente homossexual, que também acaba por não satisfazê-la. A insatisfação é, em outra perspectiva, o impulso para o suicídio da jovem prostituta de “Um coração ardente”, como a mostrar que a solidão não é apenas física. A protagonista de “Natal na barca”, por sua vez, demonstra-se uma “pessoa” extremamente inquietante, ao revelar que se sente bem na solidão; estranhamente, ela passa a noite de Natal, transpondo um rio, entre desconhecidos, rumando a um destino interdito, como uma pessoa que é sozinha no mundo.

O velho de “O muro”, embora se resigne, lamenta a ausência dos filhos na hora da sua morte. Resta-lhe o conforto que só o dinheiro pode oferecer e a voz “profissionalmente atenciosa” do enfermeiro. Em “Lua crescente em Amsterdã”, o jovem casal nos mostra a dor da solidão a dois que, em “A “mão no ombro”, se estende ao mecanismo das relações familiares.

O ponto máximo da solidão está no conto “A presença”, em que os velhos, por sentirem-se marginalizados na sociedade, se isolam em um hotel afastado, longe de tudo o que possa lembrar a juventude. É essa a mais dramática solidão: a solidão em massa.

A propensão para o suicídio

Além da morte natural (ou provocada por terceiros), Lygia atribui a muitas das suas personagens a tendência ao suicídio, seja na coragem de cometer o ato, induzir alguém a fazê-lo ou suspeitar dessa capacidade.

No conto “O dedo”, por exemplo, entre as formas que a narradora deduz para a morte da “dama do mar”, dona do dedo encontrado na areia, ela coloca o suicídio:

podia ser ainda uma suicida, dessas que entram de roupa pelo mar adentro, que o desespero é impaciente” (p. 44).

Em “O jardim selvagem”, o suicídio é a interpretação que o discurso propicia a respeito da repentina morte de Ed, que, como já sublinhamos, pode perfeitamente ter-se dado por influência da sua estranha esposa: “__ Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se matou com um tiro” (p. 56).

Já em “Tigrela” a intenção de induzir a tigresa ao ato, por parte de Romana, é bastante clara:

Ao invés de leite, enchi sua tigela de uísque e apaguei as luzes, no desespero enxerga melhor no escuro e hoje estava desesperada porque ouviu minha conversa, pensa que estou com ele agora. A porta do terraço está aberta, também ficou aberta outras noites e não aconteceu mas nunca se sabe, é tão imprevisível. (p. 99)

No conto “O encontro” o suicídio faz parte de uma revelação. Ao encontrar a moça antiga e lembrar que é ela própria em outra vida, a personagem lembra a tragédia que lhe ocorreu e tenta, em vão, impedir o ato:

lembrei-me do que tinha acontecido. E do que ia acontecer [...] __ Não! __ gritei puxando de novo as rédeas. [...] por um brevíssimo segundo, consegui vislumbrar ao longe a pluma debatendo-se ainda. Então gritei [...] E tapei os ouvidos para não ouvir o eco do meu grito misturar-se ao ruído pedregoso de cavalo e cavaleira se despencando no abismo (p. 74-5).

Nas narrativas de “A estrela branca” e “Um coração ardente”, o atentado contra a própria vida constitui a forma de libertação que a personagem encontra. O protagonista do primeiro conto, inicialmente, tenta matar-se por estar cego. Após o transplante, decide fazê-lo, com uma frieza quase doentia, para vingar-se do médico, autor da cirurgia, e livrar-se do domínio do velho doador que se mantém vivo no seu corpo, através dos olhos. Em “Um coração ardente” é uma prostituta de apenas dezoito anos que, por não enxergar meios para deixar a vida mundana, toma formicida __ a única maneira que encontra para largar o ofício que abomina.

Como se observa, o suicídio é um tema constante na ficção de Lygia, especificamente na obra em análise, atestando, assim, a propensão que as personagens têm para o abismo, propensão essa induzida pela crescente insatisfação humana.

O ESPAÇO E O TEMPO

O espaço que predomina nos contos em referência se coaduna perfeitamente com a ação. O cenário de “As formigas”, por exemplo, é ideal para a irrupção do desconhecido, ou seja, para respaldar o acontecimento extranatural que se dá dentro dele. Note-se que a descrição feita pela personagem narradora já delineia a pensão como um lugar sinistro:

um velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada (p. 31).

A expressividade da comparação (janela / olhos) atribui ao espaço uma força capaz de interferir no desfecho da ação; ou seja, transparece uma conexão entre ele e o fenômeno. Analogamente, os olhos humanos revelam os sentimentos guardados no íntimo, como as janelas, no caso, parecem denunciar o mistério que resguardam.

O enredo de “A caçada” transcorre numa loja de antigüidades (“A caçada”), um lugar que, como se sabe, é um antro de mistérios. Lá, o velho e o decrépito tecem a convivência do passado com o presente, serv de ponte para as mais insólitas ocorrências. Um detalhe significativo desse conto é a superposição de dois planos espaciais no momento do desfecho: o espaço real (a loja) e o irreal (o bosque), que determinam a afirmação do efeito fantástico.

Em “O muro”, o espaço real (o leito do hospital) e o espaço onírico criado pelo estado de delírio do personagem (a casa e o quintal dos tempos da infância) parecem se fundir. Já em “A mão no ombro”, o espaço onírico se transfere para o espaço real com todas as minúcias que prenunciam a presença da morte. O jardim, além de carregado de uma atmosfera insalubre, não pode ser situado no tempo nem no espaço. Esse mesmo cenário reaparece em “Lua crescente em Amsterdã” e “Noturno Amarelo”, embora sem essa drástica contaminação pelo teor insólito do acontecimento a que serve de fundo.

O cemitério abandonado de “Venha ver o pôr-do-sol” constitui o local perfeito para a vingança planejada pelo obsessivo Ricardo. Em “O encontro”, o bosque também possui uma finalidade básica no desenrolar da trama. Igualmente ocorre com o prostíbulo de “Um coração ardente” e com a ponte de “A estrela branca”.

Mesmo o apartamento de Romana (“Tigrela”), um espaço aparentemente desprovido de sinais sinistros, apresenta, como assinala Vera Silva, “um ambiente irreal, mágico, pleno de exotismo”, o que lhe assegura uma conotação fantástica, se bem que longe de insólita: um apartamento num “edifício altíssimo, todo branco, estilo mediterrâneo” (p. 95), decorado com almofadões veludosos e tapetes persas e cercado por um jardim que parecia uma selva em miniatura.

O rio de “Natal na barca”, por sua vez, guarda os seus mistérios na temperatura e na cor de suas águas: ele é verde e quente de manhã e gelado, à noite. A inquietação final da personagem protagonista ante o fenômeno da ressurreição, inclusive, se estende à suspeita de que esse rio possui um poder inusitado, não discernido pela sua racionalidade.

Os demais espaços __ a mansão isolada (“Seminário dos ratos”), a casa de sítio (“O jardim selvagem”), a praia (“o dedo”), o bar (“Negra jogada amarela”), a igreja (“O noivo”) e o hotel (“A presença”) __ locais rotineiros e despidos, aparentemente, de qualquer caráter sombrio, passam a atuar como ambientes presentificadores de um acontecimento insólito (nem sempre fantástico), intensificando, cada um a seu modo, a verossimilhança do mistério posto em cena. Note-se, por oportuno, que a noção espacial é quase inexistente no conto “Emanuel”, o que ajuda a construir a sua atmosfera dramática e o seu final surpreendente.

Os contos da obra em análise não trazem uma noção rígida da configuração do tempo. A encenação do mistério, como do fenômeno fantástico perderia a sua essência enigmática se plasmada em um tempo retilíneo, reversível, com noções cronológicas. Só em “O muro” o tempo cronológico se afigura, o que faz parte da própria proposta do enredo. O tempo fantástico, principalmente, não tece fronteiras entre o passado, o presente e o futuro. Tome-se como exemplo o conto “Noturno amarelo”.

De modo geral, como assegura Kátia Oliveira no seu estudo sobre a técnica narrativa em Lygia Fagundes Telles, especificamente com relação ao romance, “o tempo não regula as ações, é apenas um tênue fio de ligação ao presente”. Nas narrativas breves da autora __ as fantásticas, por excelência __ essa característica é ainda mais nítida, pois toda ação é vinculada a um tempo oscilante, incapaz de se deixar prender a um só plano.

CONCLUSÃO

Como tivemos oportunidade de ver, Lygia Fagundes Telles é uma escritora comprometida com o seu tempo, empenhada em reproduzir fielmente o homem perdido, solitário, quase sempre à beira de um abismo. O seu estilo contundente investe na incerteza do discurso e na linguagem simples e acessível, embora nem sempre o sejam os seus mistérios. Ela consegue ser, ao mesmo tempo, uma escritora tradicional e moderna, talvez por investir numa escritura atemporal, que tem como cerne a humanidade, acima de todo o mistério do cosmo. Afinal, como proclama Osho, a vida não é um enigma para ser desvendado, é um mistério para ser vivido. Também essa obra de Lygia.



OBRAS DA AUTORA

Praia viva - contos - 1944

O cacto vermelho - contos - 1949

Ciranda de pedra - romance - 1954

Gaby - novela - (em Os sete pecados capitais - obra coletiva) - 1954

Histórias do desencontro - contos - 1958

Verão no aquário - romance - 1963

Histórias escolhidas - contos - 1964

O jardim selvagem - contos - 1965

Trilogia da confissão (em Os 18 melhores contos do Brasil) - 1968

Seleta - contos -1971 (Notas e estudo de Nellly Novaes Coelho)

Antes do baile verde - contos - 1972

As meninas - romance - 1973

Seminário dos ratos - contos - 1977

Filhos pródigos - contos - 1978

A disciplina do amor - fragmentos - 1980

Mistérios - contos - 1981

As horas nuas - romance - 1989

A noite escura e mais eu - contos - 1995

Invenção e Memória - contos - 2000

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 3 ed. São Paulo: Cultrix, 1992. 584 MEDINA, Cremilda de Araújo. “Lygia Fagundes Telles” in A posse da terra. Escritor brasileiro hoje. São Paulo: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo. 1983. 5 p.

OLIVEIRA, Kátia. A técnica narrativa em Lygia Fagundes Telles. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1972. 52 p.

SAMPAIO, Aíla M. L. “Tradição e modernidade nos contos fantásticos de Lygia Fagundes Telles” __ Dissertação do Mestrado em Letras da UFC. 1996. 200p.

SILVA, Vera M. T. A metamorfose nos contos de Lygia Fagundes Telles. Rio de Janeiro: Presença, 1985. 211 p.

TELLES Lygia Fagundes. Literatura Comentada. São Paulo: Abril Cultural, 1980. 108 p. (Coord. Marisa Lajolo e Samira Campedelli)

______ Mistérios. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. 224 p.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975. 191 p.



QUESTIONÁRIO

1.Lygia Fagundes Telles se afirmou como escritora no(s) gênero(s):

a) conto;

b) poesia e conto;

c) conto e romance;

d) poesia e romance;

e) romance.

2. São contemporâneos de Lygia Fagundes Telles os escritores:

a) Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Machado de Assis, Aluísio Azevedo;

b) Fernando Sabino, Clarice Lispector, Adolfo Caminha, Álvares de Azevedo;

c) Mário de Andrade, Otto Lara Resende, Clarice Lispector, José de Alencar;

d) Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos;

e) Paulo Mendes Campos, Raul Pompéia, Júlio Ribeiro, Aluísio Azevedo.

3. Sobre o gênero fantástico pode-se afirmar:

a) É um gênero recente.

b) Abrange as narrativas de suspense.

c) É um gênero de ficção que tomou consistência no Realismo.

d) É um gênero que se afirma nos enredos que contêm um mistério.

e) É um gênero que se define pela encenação de um fenômeno inexplicável pelas leis da razão.

4. Quanto às personagens dos contos da obra Mistérios, podemos afirmar:

a) Reproduzem o homem contemporâneo.

b) Possuem uma extrema necessidade de tecer um retorno à infância.

c) Formam uma galeria bastantes diversa de seres: a prostituta, a dama, o jovem, o velho, a mulher liberada, a mulher reprimida etc.

d) São seres solitários em busca do seu eu.

e) Todas as alternativas estão corretas.

5. Sobre o final do conto “A caçada”, pode-se chegar a seguinte conclusão:

a) O protagonista termina morto, estendido no chão da loja.

b) O protagonista termina ferido, no chão do bosque.

c) O discurso final não permite que se constate a morte ou a sobrevivência da personagem.

d) O protagonista finda definitivamente transformado em caça.

e) O protagonista passa a viver dentro do cenário do bosque.

6. Em “Noturno amarelo” a personagem Laura realiza uma viagem ao passado. Que dado pode comprovar tal fato se a hora em que ela esteve na casa da avó é a mesma em que se encontra de volta no carro e se o seu companheiro sequer percebeu a sua ausência?

7. Em que contos a escritora investe na interrupção do discurso para deixar prevalecer a incerteza dos fatos encenados?

8. O que você entendeu sobre o discurso da incerteza? Como essa opção de estilo contribui para incrementar os mistérios?

9. Que diferenças você assinalaria entre o fenômeno do conto “As formigas” e o acontecimento que tece o enredo do conto “A presença”?

10. O que os contos “Tigrela” e “Lua crescente em Amsterdã” têm em comum?

11. As narrativas evidenciam o tempo cronológico ou mantêm um tempo oscilante, irreversível, incapaz de se deter a um só plano?

12. Destaque os contos em que o espaço exerce uma função no desenrolar dos fatos insólitos.

13. Em que consiste o fenômeno fantástico do conto “Emanuel”?

14. Dois dos contos da obra analisada se aproximam do relato policial. Quais são eles?

15. No conto “Natal na barca” há um acontecimento inquietante: a ressurreição. Na sua opinião, o texto permite que se possa explicar o fenômeno, concebendo-o como um milagre?

16. Qual o desfecho do conto “A mão no ombro?”



RESPOSTAS

1. Opção c __ conto e romance.

2. Opção d __ Otto Lara Resende, Clarice Lispector, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos.

3. Opção e __ É um gênero que se define pela encenação de um fenômeno inexplicável pelas leis da razão.

4. Opção e __ Todas as alternativas estão corretas.

5. Opção c __ O discurso final não permite que se constate a morte ou a sobrevivência da personagem.

6. A permanência, no seu retorno ao presente, de um objeto __ a pulseira de Eduarda __ que lhe fora dado no plano do passado.

7. “Emanuel”, “A caçada”, e “A mão no ombro” são os contos mais representativos do uso dessa técnica..

8. O discurso da incerteza é pautado muitas vezes pela ambigüidade dos fatos encenados que não deixa entrever a exata efetivação dos acontecimentos. Também a interrupção da narrativa no momento culminante contribui para que os fatos não sejam mostrados com clareza. Essa opção de estilo incrementa os mistérios exatamente por não propiciar as certezas que levariam ao seu desvendamento.

9. No conto “As formigas” o discurso não fornece pistas que possam explicar o fenômeno da montagem do esqueleto do anão. Já em “A presença” temos índices de que o jovem possa ter sido assassinado pelos velhos. O primeiro conto é, portanto, fantástico e o segundo se aproxima do relato policial.

10. A incerteza de que a metamorfose se processou.

11. A maioria das narrativas omite qualquer notação cronológica do tempo, que permanece oscilante, incapaz de se deter a um só plano. Ou seja, inexistem as fronteiras entre o passado, o presente e o futuro.

12. Principalmente em “As formigas”, “A caçada”, “A mão no ombro”, “Venha ver o pôr-do-sol”.

13. Na materialização de um ser __ Emanuel __ que só existia no imaginário da personagem protagonista.

14. “O jardim selvagem” e “A presença”.

15. Não. O fenômeno permanece inexplicável, pois não há alusões explícitas a um possível milagre propiciado pela noite de Natal, embora o contexto da pobre mãe seja de muita fé em Deus.

16. O desfecho é completamente indefinido. Não se sabe se a personagem morre ao ter o seu ombro tocado pela inusitada mão ou se ela consegue vencer a morte ao dormir.

2 comentários:

everton disse...

Muito obrigado!exelente texto.uma das escritora preferidads

Pedro Henrique disse...

PARABÉNS, ADOREI AS ANÁLISES. MUITO BOM O SEU TEXTO.