domingo, 22 de maio de 2011

Malindrânia: relatos urbanos entre o surrealismo e o fantástico.




Malindrânia (Topbooks, 2010), livro de relatos do escritor cearense Adriano Espínola, traz 18 narrativas a que o poeta denomina de relatos, fugindo da rotulação dos seus textos como contos. Com livros de poemas publicados e bem recebidos pela crítica, como Fala, favela (1981), Em trânsito (1996) e Beira-Sol (1997), entre outros títulos de igual relevo, Adriano Espínola envereda pela narrativa curta com proposta estética muito própria, transitando entre o surrealismo e o fantástico, formas simbólicas de retratar a cidade contemporânea sem descrições clichês.

Malindrânia está para Adriano como Panaplo está para Jorge Pieiro; como Pasárgada está para Manoel Bandeira ou Maracangalha para Dorival Caymmi. É o lugar ideal, desprovido de localização geográfica e pleno da satisfação não encontrada nos lugares reais.

Palavra não conhecida no Brasil, senão pelos leitores de Cervantes, Malindrânia é a ilha imaginária, onde o gigante Caraculiambro é vencido pelo pensamento prodigioso de Dom Quixote, personagem emblemático do romance renascentista espanhol homônimo, de autoria de Miguel de Cervantes. Se o fidalgo Dom Quixote, na província da Mancha, de tanto ler histórias de cavaleiros medievais confundiu fantasia e realidade, Adriano, seduzido pelo arcabouço simbólico da obra, que anunciou os impasses da cultura moderna nascente e denunciou o esvaziamento da fantasia e do idealismo num mundo racional, vê-se impelido a também refletir o conflito entre o idealismo e o realismo, a ficção e a realidade num tempo de liquidez de todas as coisas e de valores marcadamente aparenciais.

Nos enredos de Adriano, pois, a palavra Malindrânia dá nome a um lugar alegórico, espaço de reflexão metalinguística sobre o real e o irreal na ficção, ou, como assinala Ildásio Tavares, em resenha publicada no Jornal do Brasil, “um lugar de lutas verbais, duelos e encantamentos”, termos retirados do conto que dá título à obra. É a cidade contemporânea, representada pelo Rio de Janeiro, o cenário dessas lutas, bem como dos delírios que descrevem o tumulto citadino sem as tintas grotescas do real.

No primeiro relato, As cordas do mar, o caos se instala em Ipanema quando o mar invade as ruas, cerca os prédios e submerge o lixo, arrastando seres, bichos e coisas, nivelando-os como produtos de um meio em que a beleza é apenas aparente. O personagem, como num delírio quixotesco, ao sair do seu apartamento para caminhar no calçadão e comprar mantimentos na feira, vê-se levado pelas águas do mar e a tudo assiste do alto de uma árvore onde se abriga e de onde sai agarrado a uma tábua. Para o personagem, representante do homem massacrado pela rotina conturbada das grandes cidades, o momento do tsunami foi positivo: “Sob as águas, tudo era um silêncio só. Vasto, infinito. Não mais sentia o peso do mundo nas costas, tampouco o peso do olhar do outro”.

Embora traga toda essa representação do mundo referencial, o conto é fantástico, pois a ‘ordem’ é restabelecida quando o mar recua, e os carros, como os transeuntes, podem retomar seus lugares. Tudo acontece inexplicavelmente, por um período de tempo descontínuo. Poder-se-ia racionalizar o evento, tomando-o como um sonho, mas o personagem diz ter sido sonhado pelas águas, não foi ele quem sonhou o acontecimento. Além disso, quando retorna à sua casa, coloca em cima da pia o saco de peixes e crustáceos que pegou durante a enchente, o que se apresenta como uma prova material, na lógica interna do texto, de que a subversão do real ocorreu.

Em A onda, o narrador metaforiza a mulher em onda do mar e divaga numa posse delirante da mulher amada que pula de sua memória, na emoção de uma noite de passagem de ano. O leitor vive uma aventura inusitada, e se encanta com o trabalho de linguagem do autor-artesão que, com domínio sobre a palavra, além de inventivo, mostra-se conhecedor das possibilidades expressivas da língua. Assim, quebra o paralelismo semântico com expressividade poética (“entre dois chopes e uma lembrança, abri o peito. Ela saltou, por entre mágoas e espumas do passado” (p.21)) reiteradas vezes e utiliza o recurso da intertextualidade com obras como a Odisseia, a Bíblia Sagrada, Dom Quixote e, em três relatos, com o romance Iracema, do seu conterrâneo José de Alencar. No desfecho de A onda, lê-se: “Exausta, pediu-me para levá-la de volta à praia, matá-la e enterrá-la sob um coqueiro”, um diálogo claro com o destino da índia Iracema.

No relato seguinte, O pintor da tribo, a água está outra vez presente, bem como a intertextualidade formal com o início do romance indianista de Alencar: “Além, muito além daquele tempo...” (p.23). A proposta é a antropofagia como forma de seleção das espécies, a começar pelos fracos que devem ser exterminados para que a tribo consiga o retorno das chuvas e a consequente salvação de todos. O pintor que mora na caverna é o escolhido para ser sacrificado e, embora a tribo consiga o mérito desejado, perdeu a capacidade de sonhar. Trata-se de uma reflexão crítica sobre a situação do artista na cidade pós-moderna, praticamente expulso dela como da cidade de Platão, por conta da sua falta de aptidão para lidar com o mundo material.

Outra vez o romance Iracema é revisitado, no relato surreal de A flecha, que funde presente e passado para colocar Martin Soares Moreno, colonizador do Ceará e personagem histórico de Iracema, no calçadão da Avenida Beira-Mar. A atmosfera fantástica é também retomada em O xamã, que conta a história de um velho de Tocantins que queria ver o mar e conhecer o Rio.

Tendo o mar e a cidade como elementos recorrentes, bem como personagens em busca constante de algo que lhes satisfaça ou dê sentido à vida, as narrativas se desenrolam sempre no sentido de confrontar o real e o imaginário e colocar os seres fictícios (e o leitor) ante o inusitado, para que atravessem ‘a rua e a realidade’ (p.36).

O domínio do autor quanto ao uso da língua e as escolhas estilísticas, seu conhecimento da literatura e do mundo, permitem que o discurso flua naturalmente, mesmo eivado de recursos expressivos como, as surpreendentes quebras de paralelismo, figuras de linguagem e referências mitológicas. No conto Malindrânia, percebe-se uma homenagem à escrita e à literatura. O narrador se reporta ao universo acadêmico, para lembrar o dia em que recebeu de volta exemplar de Dom Quixote, outrora emprestado a um amigo, que compara o gigante de Cervantes à torre da biblioteca da universidade. A consciência da oscilação entre verdade e ficção que perturba o narrador perturba também o leitor do conto: o narrador é o próprio autor, em viagem a Salamanca? Teria mesmo vivido a experiência ou apenas sonhara como o personagem? Pouco importa... a chave da inspiração de Malindrânia, a obra, aí se revela.

Adriano Espínola se afirma como narrador criativo, sensível à urdidura do conto, à técnica da contação de histórias curtas, consegue unir concisão e complexidade, enredando o leitor em labirintos estranhos, fantásticos e até surreais, sem permitir, porém, que ele se perca. O poeta se coloca sem parcimônia e sem prejuízo ao relato, como no início do conto Domingo: “No domingo há sempre uma viagem que não fazemos. Há sempre uma fresta entre as coisas, por onde irrompe o inesperado. Há sempre um agora que busca no passado o seu futuro” (p.67), que não possui características de conto; acerca-se mais notadamente das características da prosa poética.

No último relato, Os círculos, a evocação a Ulisses, na epígrafe retirada da Odisseia, parece evocar heroísmo para o cidadão comum que acorda todos os dias para cumprir a sempre mesma rotina adversa à sua vontade. O homem e a cidade se digladiam simbolicamente ante a solidão povoada de Baudelaire e o desejo de conquistar uma respiração que não seja artificial. Assim, os relatos contam, com belas descrições, a saga do homem em busca de si mesmo, como o escritor em busca da palavra que traduza o pensamento que ‘range e ringe, renitente’ ((p.71), tomando forma para sobreviver à vida que se enreda como um círculo que se fecha e só encontra saída na tessitura do texto.