quarta-feira, 23 de março de 2016

Interações entre espaço e personagens femininas nas narrativas literária e fílmica de O Viajante



http://revista.uft.edu.br/index.php/interface/article/view/1953/8608

Sem a arte, a realidade nos mataria!

A Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – SOBRAMES traz a público mais uma Antologia, com a compilação de textos considerados significativos, de algum ponto de vista, como é característico de obras coletivas. O número de profissionais da área que enveredam pela literatura faz-me de imediato lançar a pergunta: Por que os médicos procuram a arte da palavra? Não há uma resposta exata. Talvez porque, além de conviverem com a vida das pessoas – seus sofrimentos, medos e esperanças, tomem parte com a fragilidade delas, com a finitude iminente, e sintam necessidade de evadirem-se do peso emocional. Essa impressão minha remete à declaração do filósofo alemão Friederich Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos: “Temos a arte para que a verdade não nos mate”. De fato, os médicos trabalham no limite entre a vida e a morte; se têm o conhecimento científico para a cura de muitos males, têm também a humana impotência diante do imprevisível. Convivem, diariamente, com o tangível da ciência, com a crua força vital, com a terrível certeza do sábio Sileno, que diz ser o sofrimento inerente à condição humana.

Escrever é, desde sempre, uma arte imprescindível para eles e para todos nós; sobretudo nesses tempos líquidos em que tudo escorre pelas nossas mãos. A palavra é a nossa arma, nessa guerra travada com a vida todos os dias; é ela que nos preenche o vazio em que nos jogam as incertezas; é ela que nos defende do silêncio ensurdecedor da mediocridade. 
 
Tantos médicos se destacaram na literatura mundial, que eu não ousaria citar todos, mas gostaria de destacar alguns: Arthur Conan Doyle, escritor britânico que estudou medicina na Universidade de Edimburgo, criador do célebre Sherlock Holmes; o contista memorável Anton Tchekhov, que cursou medicina na Universidade de Moscou; Joaquim Manuel de Macedo, autor do romance A moreninha no Brasil do século XIX; Guimarães Rosa, autor de obras canônicas como Sagarana e Grande Sertão: Veredas; e o português António Lobo Antunes, médico psiquiatra, que utiliza materiais psíquicos, enredos de crises conjugais e contradições revolucionárias em suas obras; especificamente no romance Hei de amar uma pedra, o enredo parte de uma história verídica colhida num hospital em Coimbra, quando um colega seu, também psiquiatra, o chamou para ouvir o relato da história de amor de uma mulher, descrita no livro como "Doente de 82 anos, sexo feminino, idade aparente coincidindo com a real”. Ficção e verdade se fundem num só amálgama.

Como amar a imprescindível dureza hipocrática e a ela sobreviver com um coração que não é de pedra? Somente pela arte, pela transfiguração da realidade; pela criação de uma vida paralela na pintura, na música, na fotografia, na literatura. Há os que seguem alguma(s) dessas veredas sem pretensões, para esgotar a ansiedade e a dor de existir; outros para darem vazão ao pendor artístico, às aptidões antes encobertas pelas densas páginas dos compêndios médicos. Todos, certamente, o fazem pela necessidade de sobreviver aos próprios enigmas.

A diversidade de textos publicados nessa coletânea da SOBRAMES bem atesta a liberdade criadora de cada um. Há os que têm o conhecimento da literatura como um trabalho de linguagem; os que utilizam a escrita com finalidades determinadas; e ainda os que apenas se permitem exercícios catárticos. Seja num discurso de posse, num ensaio sobre um assunto médico, num relato de experiências, numa carta ou numa homenagem a um ente querido morto, rememorações e textos confessionais, se interpõe a capacidade criativa da palavra, que é o que verdadeiramente importa. As narrativas breves atestam a preferência da maioria. Destaco, nessa seara, as artimanhas do humor em narrativas de Celina Corte Pinheiro, Flávio Leitão, José Murilo Martins, Francisco Sérgio de Paula Pessoa, José Fonteles, José Luciano Sidney Marques; os 'causos' bem contados de Dalgimar Beserra de Manezes, José Brayner C. de Andrade, Sebastião Diógenes e Marcelo Gurgel, a maturidade dos contos de Larissa Barros Leal, Fernando Siqueira e José Alves.

A matéria literária vai de casos médicos ao futebol; elocubrações sobre a utopia, reflexões sobre saúde pública, as benesses da maturidade, os “respingos de lembranças” que abrem clareiras de saudade, temas polêmicos como a maioridade e a descriminalização das drogas, uma apresentação de tese de livre docência. Há os que contam e os que se contam, como uma forma de confirmar as experiências vividas ou a própria existência.

Se a prosa envereda por motivos vários, sem necessidade de classificação em gêneros, os versos se espraiam livres ou metrificados em sonetos, ora saudosistas, românticos, memorialistas; ora filosóficos, existencialistas, catárticos, mas sempre cotejando o ritmo e a musicalidade a que fazem jus. Assim são os poemas de Chico Passeata, Alana Maia, Dione Mota, Eduardo Jucá, Emanuel de Carvalho, Eurípedes Chaves Jr., Francisco Andrade Pessoa, Luiz Porto, José Wilson de Souza, Vicente Alencar, Luciano de Arruda, Walter Miranda, Manuel Dias Neto, Sérgio Macedo e Martinho Fernando, cujo lirismo resgata a poesia da vida, celebra amores, faz digressões sobre a passagem do tempo ou lança as efusões da alma.

Se “Beleza é contar a sua história, / de repente ou de memória, em rima branca sem pudor”. Se “Beleza é fugaz prosa ligeira...” como dizem os versos de Isaac Furtado, os textos que aqui estão, em prosa ou em verso, longe de um julgamento estético e subjetivo da minha parte, confluem para o belo, na medida em que proporcionam prazer ou satisfação nos que escrevem. Nascem, todos, de uma percepção súbita, de um encontro com o que os altera, de um estranhamento do comum e trivial. Esse trânsito entre o referencial e o poético, o objetivo e o subjetivo já faz valer cada texto aqui compartilhado com os leitores. Parabéns a todos os escritores, aos citados ou apenas referenciados por seus temas! Pouco importa o compromisso com estilos ou padrões ou a falta dele. Importa entendermos que, pela arte da mentira – a literatura –, transcendemos a montanha rochosa das verdades; nada como uma boa ilusão para não cairmos nas garras da íngreme realidade, com seus riscos de infarto e tédio!

Aíla Sampaio
Professora da Unifor – Doutoranda em Letras pela UFC
Membro da Academia Cearense de Língua Portuguesa e da Academia de Letras e Artes do Norte e Nordeste.
Prefácio da Antologia da SOBRAMES - 2015