domingo, 19 de junho de 2011

A Serenata de Raquel





Raquel de Queiroz, conhecida como romancista e cronista, teve, em 2010, ano do seu centenário, alguns dos seus poemas recolhidos pela editora Armazém da Cultura e reunidos no volume intitulado Serenata. São 35 peças literárias em versos, prefaciadas por Ana Miranda, que vê, nelas, ‘a chama da adolescência, o sentimento puro, e a inteligência crítica que sempre fez parte da personalidade da escritora’.

É realmente o universo cotidiano da menina-moça Raquel que constitui o estro da criação: o violão, a casa, a fazenda, o livro, a costureira, o teatro de bonecas e polichinelos, a avó, o primo, São Francisco de Canindé, motivos singulares dos versos que ela publicava em jornais e revistas literárias, no início do século XX, antes do lançamento de O Quinze.

Todas as suas publicações, até então, eram assinadas com um pseudônimo, entre os quais figuram o já conhecido Rita de Queluz, Maria Rosalinda e, na série Bonecas e Polichinelos, Zé de Guignol, o que ela utilizava quando dirigiu uma seção do Jornal O Ceará, na qual retratava personalidades da sociedade cearense. Raramente ela usava o próprio nome, até que veio à lume, com grande repercussão, o romance que conta o drama dos retirantes Chico Bento e Cordulina.

Ingenuidade e desejo de ousadia. Telurismo e inquietude. Despretensão estética. Serenata traz poemas leves e familiares, pilares de uma personalidade sensível e dada à palavra. Parece que podemos ver a Raquel menina se pôr moça a cada página.

Lendo os poemas do antológico livro, nos transportamos para o universo da menina-poeta que fez da literatura sua vida e, com ela, rompeu paradigmas e se afirmou como escritora. A sensibilidade aguçada e a ousadia das leituras precoces fizeram o seu caminho definitivamente ligado à letras. Uma pequena amostra dos escritos da menina-moça que reverdeceu e amadureceu diante dos olhos dos leitores:

Ao canto escuro de uma gaveta,
Num velho móvel sempre fechado,
Guardo com um leque de gaze preta,
Um retratinho meio apagado.

Não tem um palmo de comprimento...
É de um tom baço de cousa morta,
Por sobre o fundo quase cinzento
A figurinha mal se recorta.

É uma senhora do tempo antigo
De grande saia, decote, anquinha...
- não se parece nada comigo...
Que pena! É minha linda avozinha!...

Uma chuvarada de pedraria
O colo, os braços, toda a recama,
E dá-lhe um cunho de fidalguia
Uns ares ricos de grande dama...

Leve sorriso lhe enflora o rosto
Iluminando todo o semblante...
Sob o penteado do velho gosto
O olhar profundo se ergue radiante...

É tão alegre o seu retrato,
Minha avozinha! Mas, entretanto,
Deu-lhe a fortuna tão duro trato!
Por muitas vezes correu-lhe o pranto...

Contam-lhe um romance de amor tristonho,
Uma linda história doce e dorida,
De um noivo morto... ao fim de um sonho,
De um luto negro por toda a vida...

E a ouvir a história de sua mágoa
Olho-lhe o riso tão desbotado,
Cai-me dos cílios uma gota d’água
Sobre seu colo, tão decotado.

(“Versos à Avozinha”, publicado na Revista A Farpa, em 29/10/27)