sexta-feira, 29 de julho de 2011

Heterogeneidade enunciativa e ousadia em 96 dias embaixo da cama




96 dias embaixo da cama, romance de Jeff Peixoto, traz a história de Eliakim, estudante de Letras que, após a partida da mãe para Portugal, habita o apartamento da família e, para dar conta das despesas, divide-o com Bismark, colega de faculdade e, posteriormente, cede um dos quartos a outro colega que não se adapta à residência universitária.

Certo dia, ao retornar mais cedo da faculdade, encontra a namorada na sua cama com o colega a quem prestou ajuda, dando-lhe moradia gratuita. A mágoa da traição dupla o desnorteia e ele sai de bar em bar, afinal, tirara o rapaz de uma situação miserável e não esperava dele um ato tão vil; amava a namorada a ponto de enfrentar a mãe e não seguir para Portugal com ela. Toma um porre, bate o carro e retorna, já à noite, arrasado. Dorme no chão do banheiro, depois é encontrado pelo amigo Bismark que procura entender o ocorrido, revolta-se e trama vingança aos dois traidores, o que é rebatido pelo amigo.

Como autopunição pela ingenuidade em ter acreditado no amor e na amizade dos traidores, decide esconder-se embaixo da cama, isolar-se do mundo, não pronunciar mais o nome deles, e a eles se refere apenas como Ele e Ela. A decisão inusitada é interpretada, inicialmente, como uma brincadeira. Quando percebe que Eliakim fala sério, Bismark tem a ideia de transformar a reclusão num reality show. Vende a ideia à TV em que trabalha e logo começam a executá-la. O quarto enche-se de gente e de câmeras, são criadas estratégias publicitárias, Eliakim recebe um computador, onde deverá contar a sua história que, posteriormente, se transformará num livro. O livro logo é adaptado para filme, e o drama do rapaz é encenado nas telas, estrategicamente dividido em três planos: os bastidores das gravações; a reclusão embaixo da cama; e o relacionamento novo com Alícia, moça que conhece após sair da reclusão, e com quem retoma a vida amorosa.

No dia da estreia do filme, Ela, a namorada que o traiu, aparece e faz um escândalo em público, dizendo como sua vida foi afetada por todo aquele aparato da mídia e o quanto Eliakim foi um péssimo namorado. A história se fecha com essa prestação de contas e a retomada da vida.

O enredo, na verdade, é um exercício metalinguístico; fala dele mesmo, da sua construção. O romance 96 dias embaixo da cama é a história de como ele próprio aconteceu e se transformou em filme. Essa forma de envolver o leitor é bem típica do romance contemporâneo, com sua narrativa fragmentada, com o foco mais no ‘como se conta’ do que n’o que se conta’. O ponto de vista da narrativa é constantemente alternado, bem como a ordem dos fatos, num projeto estético completamente transgressor do modelo de enredo tradicional, com apresentação, complicação, clímax e desfecho.

Com predominância do discurso indireto livre, a história se dá pela intercalação de vozes, ora na primeira pessoa verbal, ora na terceira, de modo a criar uma heterogeneidade enunciativa. Ora se está diante do quarto como cenário da TV, com as discussões sobre o reality show e sua exibição ao público; ora se escuta a voz de Eliakim contando a forma inusitada como conheceu Bismark e sua rotina embaixo da cama, inclusive seus pesadelos; ora se tem a discussão sobre o roteiro do filme; ora se acompanha o início do romance de Eliakim e Alícia, que se torna sua interlocutora.

Num tempo completamente fragmentado, o enredo vai se construindo aos poucos. A narrativa começa do meio da história e, intercalando vozes, vai inserindo flash backs e tecendo a teia da escritura. Eliakim narra fatos já transcorridos e tem domínio sobre todos os acontecimentos dos quais já parece estar distanciado.

Após juntar as peças-capítulos, pode-se esboçar o painel de um recorte com ordem cronológica no tempo de vida do personagem: desde o período em que a mãe viajou e ele foi traído até a estreia do filme e a reconstrução de sua vida. Até chegar a essa conclusão, entretanto, o leitor precisa ser hábil e montar o quebra-cabeça para, só então, ver a figura.

Aíla Sampaio