segunda-feira, 7 de abril de 2014

A EXPERIÊNCIA DA FOME NO ROMANCE O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ






Eu perguntei-ei a Deus do céu, ai
Pru que tamanha judiação?!
(Asa Branca – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)


Aíla Sampaio – Mestra em Letras, Professora da Unifor, onde é editora da Revista de Humanidades. E-mail: ailasampaio@unifor.br

RESUMO

A seca é uma das maiores catástrofes vividas pelo povo nordestino, que se resigna a sair da sua terra natal para aventurar-se em outro espaço que lhe possibilite ter as mínimas condições de sobrevivência. Muitas vezes, essa busca resulta em tragédias que repercutem definitivamente na vida dos retirantes que encontram, em vez de solução para o problema da fome e da miséria, perdas irreparáveis. O romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, traz a cena a seca de 1915 e mostra, por meio dos personagens Chico Bento e Cordulina, o drama das famílias que imigram para as capitais, buscando uma forma digna de vida e experimentam, além da sensação de exílio, as dores advindas da perda de familiares, da dissolução involuntária de parte da família e, sobretudo, a perda da dignidade humana. A obra enfoca, ainda, a corrupção advinda da mentalidade de que a seca propicia uma forma de desvio de verbas e, em contrapartida, a honestidade, a fé e a esperança do povo sofrido que luta apenas por uma forma lícita de sobrevida. 

PALAVRAS-CHAVE: Fome. Miséria. Seca. Tragédia.

ABSTRACT

Drought is one of the biggest disasters experienced by the people of Northeastern, who resigned to leaving their homeland to embark on another space that allows it to have the minimum conditions for survival. Often, that search results in tragedies that definitely impact the lives of refugees who find, instead of resolving the problem of hunger and misery, irreparable losses. The novel O Quinze, Rachel de Queiroz, brings the scene of the drought in 1915 and shows through the characters and Cordulina Chico Bento, the plight of families who migrate to the capital, seeking a dignified way of life and experience, in addition to sense of exile, the pain coming from the loss of relatives, the involuntary dissolution of the family and especially the loss of human dignity. The work focuses also the corruption coming from the mentality of the drought provides a form of embezzlement and, conversely, honesty, faith and hope of suffering people who fight only for a lawful way of survival.

KEYWORDS: Hunger. Misery. Drought. Tragedy.


INTRUDUÇÃO

No ano de centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz, não se pode deixar passar a oportunidade de falar dela, quando o assunto é a fome. Não exatamente dela, que era criança quando ocorreu a seca de 1915, mas da obra que ela construiu em cima das reminiscências, da visitação ao arquivo da memória. Filha de fazendeiros, ela, menina, assistiu à procissão de retirantes passar à sua porta; viu-os esquálidos, famintos, mendigar um pedaço de pão em cada porta.

Antes de completar 20 anos, escreveu o romance O Quinze, cujo título já explicita que o enredo remete a acontecimentos do ano 15 do século XX, quando o nordeste viveu uma avassaladora seca. Lançando em 1930, em plena efusão do romance moderno nordestino, ela encontrou espaço e fixou seu nome no regionalismo brasileiro, colocando-se ao lado de José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, seus contemporâneos e autores de romances igualmente emblemáticos sobre a seca: A Bagaceira e Vidas Secas.

O romance O Quinze, considerado por Bosi (1997, p.447) como neo-realista, tem seu enredo estruturado em dois planos: o drama do vaqueiro Chico Bento e sua família retirante; e a relação afetiva de Conceição, professora culta, de família tradicional, e Vicente, que, embora seu primo, é um rude proprietário de terras e criador de gado. Embora haja essas duas linhas condutoras da história, com personagens relevantes, a protagonista é a própria seca, responsável por todo o desenrolar das ações. 

Evidentemente, como trataremos do tema da fome, faremos um recorte e enfocaremos apenas o percurso trágico do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus filhos, que, em função da seca e da consequente falta de trabalho, são obrigados a imigrar para a cidade grande em busca de sobrevivência.

A experiência da fome é, pois, o motivo desse trabalho que pretende mostrar como a tragédia humana se desencadeia quando o homem deixa seu espaço de origem e busca, em terras, na maioria das vezes adversas, a sua sobrevivência e a da sua família.

A FOME COMO TRAGÉDIA HUMANA


Em 1915, no sertão cearense, o vaqueiro Chico Bento, sem mais perspectivas de manter sua família na fazenda em que trabalha há muitos anos, decide aventurar-se até a capital, de onde pretende partir para o Norte, com o sonho de trabalho garantido e vida melhor. Em companhia da mulher, Cordulina, e dos cinco filhos, dispondo apenas de uma burra e um pequeno quinhão de mantimentos, se lança nas estradas empoeiradas movido pela fé numa sobrevida em lugar menos inóspito. A partir daí, se dá a tragicidade do destino: eles buscam sobrevivência, mas o que encontram é uma saga de dores e perdas, pois, as consequências da marcha são piores do que as já vivenciadas na região seca. De fato, ao deixarem a fazenda onde sempre viveram, deixam o habitat natural e suas raízes, com pouco dinheiro e muita esperança de chegar ao Norte, onde pensam conseguir emprego na extração da borracha.

Além da separação do espaço natural, verifica-se a perda da dignidade, que, para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas na sua conduta, no exemplo que transmite os valores morais aos filhos, por mais humilde que ele seja. Chico Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata uma cabra que encontra pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais alto, e ele esfacela o animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se apropriar do alheio. O dono da caba aparece e, além de tomar-lhe a carne, chama-o de ladrão, humilha-o, sem querer ouvir justificativas. Dá-lhes apenas as tripas para saciarem a fome, nivelando-os, pois, aos bichos que comem vísceras jogadas no lixo: “Chico Bento perto olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados. -  Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado! (...) - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com fome! - Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!... (QUEIROZ, 1930, p. 68-69).

Talvez a tragédia maior esteja no esfacelamento da família inicialmente composta de sete membros. O menino Josias, de 10 anos, num momento de fome, comeu mandioca crua, envenenando-se. Agonizou em morte lenta, sem que nada se pudesse fazer para aliviá-lo:  "Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai.  Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz." (QUEIROZ, 1930, p. 42).
Pedro, o mais velho, de 12 anos, à revelia dos pais, foge com comboeiros de cachaça, quando estão entrando na cidade de Acarape: "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"
 Chico Bento chega ao Campo de Concentração, em Fortaleza, apenas em companhia de Cordulina, sua mulher, e dos outros três filhos. O objetivo é vencer os obstáculos para conseguir uma passagem para o norte. Conceição, neta da fazendeira que era patroa do casal, os encontra em meio à multidão de famintos; depois de ajudá-los, arranjando uma passagem de navio para que eles viajem para São Paulo, a moça fica com o menino mais novo, Duquinha, de 2 anos, que está doente e é seu afilhado. Os dois – Chico e Cordulina - viajam em companhia dos dois filhos restantes, cuja identidade sequer é mencionada.

A fome está, pois, ligada ao trágico, às perdas: A pobre Cordulina fica sem três dos seus filhos, chora durante dias, mas ainda tem ânimo para tentar a vida em São Paulo, eldorado dos retirantes nordestinos. Ela personifica a mulher submissa, sem instrução, que sofre, mas mantém a vida atrelada à do marido. Alienada, vive as dores calada, entregando à sorte o seu fado. Chico Bento é o tradicional vaqueiro pobre que vive a cuidar do que pertence a outros. Nada tem de seu para oferecer à família, senão a miséria do próprio destino. Para ele, a perda dos filhos não constitui tragédia, mas uma contingência. Vejamos a fala dele: “- Minha comadre, quando eu saí do meu canto era determinado a me embarcar para o norte. Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desanimou e pegou numa choradeira todo dia, com medo de perder o resto... Eu queria primeiro que a senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me arranjasse umas passagenzinhas pro vapor. Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o dia, ou quando Deus Nosso Senhor é servido de tirar... (QUEIROZ, 1930, p. 107).

A experiência da fome, embora coloque o homem em condição animalesca, não retira de Chico Bento os princípios arraigados. Leia-se a passagem em que ele encontra companheiros retirantes em situação de total miséria: “Um dos homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus” (QUEIROZ: 1930, p.42-43). Chico encarna a figura do homem nordestino, que pode se conformar com as dores da perda de entes queridos – cuja designação atibui a Deus -, mas nunca com a perda da dignidade. Ele não perde sua  generosidade, a sua capacidade de ver o outro como um ser humano. Diante da cena, ele reparte os alimentos que leva para matar a fome da família, e não recua ante as indagações de sua mulher: “- Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e Florência no altruísmo singelo do vaqueiro se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haveria de deixar esses desgraçados roerem osso podre...” (QUEIROZ, 1930, p. 43). 

Embora não haja, na história, a divisão clichê de "pessoas pobres e boas" e de "pessoas ricas e más", há a denúncia da corrupção, mostrando que existem os que se aproveitam da desgraça dos outros para levar vantagem: “- Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O propósito é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais... (QUEIROZ, 1930, p. 33). Chico, entretanto, mesmo se revoltando, não permite que a miséria abale sua generosidade nem sua fé. As adversidades não retiram dele a esperança de dias melhores: parte num vapor sem pensar no passado, mas vislumbrando tão somente o futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa de O Quinze investe na oralidade, demonstrando que o ciclo ficcional é brasileiro na base das fundações (ADONIAS apud COUTINHO, 1996, p. 277). É, também, psicológica, pois, na medida em que informa as ações dos personagens, expõe interrogações e dúvidas sobre o que poderia ter passado pela cabeça deles. Assim, o leitor convive com os fatos e com a repercussão deles nos seres que os vivenciam.

É por meio dessa técnica que Rachel de Queiroz, no seu romance regionalista, O Quinze, trata de um tema universal: a miséria. Chico Bento e Cordulina personificam os retirantes nordestinos que deixam sua terra, em busca de uma vida melhor, e se deparam com diversas tragédias: o exílio, a perda de entes queridos, o convívio com realidades cruéis, a perda da dignidade que lhe é tão cara, pois, com fome, o ser humano se nivela aos animais irracionais.

Embora nos dê o retrato da marcha trágica dessa família, o narrador mostra que, apesar da forme, apesar do desrespeito que a miséria evoca, o nordestino é bravo e não se rende facilmente: sua fé o move e sua esperança o mantém vivo e sempre pronto para recomeçar.


REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil.
São Paulo: Global Editora, 1996.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1930.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

Aquele que veste ideias com palavras








Totonho Laprovítera  representa bem o arquétipo do artista contemporâneo: é inquieto, múltiplo, visionário. Se ecletismo é palavra de ordem nesse tempo de depuração de fórmulas e dogmas, ele é exemplo de uma personalidade forte, cunhada em linhas claras, que se movem como um calidoscópio. Isso mesmo, Totonho enxerga a vida pela cor dos seus ideais; nada lhe é estanque, e nenhuma possibilidade de criação é descartada. Ele aprendeu cedo que a gente vem ao mundo pra ser feliz, não importa como, todos os desvios são válidos se forem do bem.

Sua arte, legado de sua sensibilidade e experiência, reflete seu prazer de estar no mundo para transformar traços em imagens, palavras em formas que se delineiam, ante nossos olhos, e se multiplicam em ondas sonoras. Arquiteto formado pela UFC, artista plástico com currículo internacional, Totonho é, sobretudo, esse sorriso que nos encanta, essa pessoa capaz de, com leveza, vestir ideias com palavras, transformar uma bola amarela no sol, como sugeriu Picasso. A poesia e a música, como as artes visuais, são o seu lugar no mundo; é o espaço em que ele se move para transfigurar a abstrata matéria do sensível em algo concreto: um projeto arquitetônico realizado, um quadro pintado, um poema escrito, uma música composta.
            É da argamassa do sonho que ele faz seu caminho. Pisa firme em qualquer chão, mas seu território é a arte. Capaz de transformar beirais em largos chapéus, ou de cobrir de sedas os substantivos, ele desencanta verbos e traça analogias inusitadas.  Costura o tecido do tempo com pincéis e telas, e se assume nordestino, com a sinceridade dos que são, antes de tudo, autênticos, donos de um estilo singular, mesmo sendo um ser plural. Suas múltiplas faces são desdobramentos de um talento que transborda, de um espírito inventivo que não cabe em si, precisa extravasar, como um rio em cheia.

            Essa merecida homenagem da Elite só acrescenta cores à sua caleidoscópica atuação no cenário artístico. É bem possível que ele, o arquiteto, trace passarelas preciosas; que o poeta encontre rimas no passo marcado da moça que pisa; que o pintor desenhe estampas nos olhares que cruzarem o seu; que o compositor enrede a tarde em  canções que acordarão a felicidade de ter amigos para partilhar a alegria de viver. 
        
Pinta o mundo, Totonho, com as cores dos teus sonhos, e nos envolve na música que canta o teu coração. Tece a tarde, costurando as horas, sem esquecer o sorriso moleque de menino levado que rouba as cores do arco-íris para vestir as palavras e transformá-las em poesia!

Aíla Sampaio - Escritora e professora da Universidade de Fortaleza


Apresentação do Totonho Laprovítera no Livro DIÁLOGOS, de Fernando França.



A poética da inquietude







A poesia de João Soares Lobo não se aliena a um estilo, a uma temática ou a uma forma. Embora seja ele conhecedor das regras de versificação, não se prende a formas, escreve de acordo com a inquietação do seu próprio espírito, ora obedecendo a impulsos iconoclastas e irreverentes, exercitando versos livres e críticos; ora metrificando-os e mostrando-se afeito a sentimentos mais amenos.

        Herdeiro incontestável da lírica camoniana e leitor da melhor literatura em línguas portuguesa, espanhola, francesa e italiana, ele é conhecedor das letras mais do que das linhas da própria mão. Daí tanto pudor em mostra-se, tanto ‘titubeio’ em revelar-nos essas suas andanças pelo território das palavras.
Sua poética se constrói de modo antitético, traduzindo as oscilações comuns de todo espírito irrequieto: por vezes prepondera a visão irônica da realidade, quando se ouve a voz de um eu lírico rebelde e até sacrílego: “Peço a Deus que Ele me esqueça / E não me cobre mais nada /Também que me favoreça / E libere a minha estrada. / Não vou seguir mandamentos / Nem sagradas escrituras / Prefiro meus sentimentos / Das alegrias mais puras” (Poema sacrílego). Noutros momentos, o flagramos resignado: “ Para que a tua prece / Suba ao céu como oração, / Olha o coração de Deus / No peito de cada irmão. / Depois, faz o bem, e esquece, / Assim a ninguém parece / Que tens segunda intenção. / E, se fores verdadeiro, / De cabeça, braço e mão, / Vai chover o ano inteiro / Na roça do teu sertão. / Sabe que a melhor palavra / Que tu podes pronunciar / É a de quem planta e lavra / A verdade em seu olhar” (Pregação). Ou ainda: “Consola-te com a cruz que Deus te deu / E verás que ela nem é tão pesada / Lembrar-te-ás de quanto Jesus sofreu / Por salvar a tua alma amargurada” (Compensação).

           Há sopros fortes das leituras assimiladas ao longo do tempo, sobretudo há a influência do pensamento shaupenhaureano de Augusto dos Anjos, da poesia filosófica e metafísica de Fernando Pessoa e da antifilosófica de Alberto Caeiro. Lendo os versos do poema Filosofias: “ Não. Hoje não estou / Para vãs filosofias /   Nem quaisquer abstrações. / Hoje, só questões pragmáticas, / Coisas tipo beira-chão. / Meu pai era homem assim, / Crente, mas sem discussão. Quem discute, / O cão que escute, / Eu é que não”,  lembramos imediatamente os versos de Alberto Caeiro, em Poemas Inconjuntos: “Não basta abrir a janela / Para ver os campos e o rio. / Não é bastante não ser cego / Para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma. / Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. / Há só cada um de nós, como uma cave. / Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora; / E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse, / Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.” A filosofia é desnecessária para olhar o mundo. É do olhar nu que o poeta necessita, apenas das sensações não intelectualizadas, já que o real é a exterioridade e não devemos acrescentar-lhe as impressões subjetivas desnecessárias.

         O amor é outro tema bastante visitado na poética de João Soares Lobo. O amor-amante, amor-irmão, amor-filial, amor-amigo, amor-saudade, amor-gratidão, amor-infância, amor-sonho, o amor em todas as suas formas, longe da rima indigesta com o substantivo dor. Mesmo que o eu lírico fale de desencontro e despedida, há a celebração da esperança: “ Para mim, hoje não amanheceu; / Eu estou ontem, que inda está por vir. / Só sei, depois que tudo aconteceu, / E amanhã nascerá para sorrir” (Tu e eu). Há uma espécie de decisão pela felicidade: No poema Geometria, isso fica claro: “Eu tracei a bissetriz / Do meu desejo risonho / De querer viver feliz”. De fato,  sua poesia, mesmo quando versa sobre medos, vida, morte, eleva o pensamento e redescobre a ternura, porque ‘a  tristeza é doença’.

Seja pela riqueza dos intertextos  com Olavo Bilac - “Lembrei, então, do que diz outro autor: / Só os que amam podem ter o ouvido / Capaz de ouvir e de entender as rosas”; com Petrarca/Pessoa “Navegar é Preciso”, seja riqueza estética das paisagens poéticas que aqui encontramos, pela seriedade com que o poeta brinca com as palavras e o pensamento, vale a pena seguir por essas andanças, respirar seus ares, conhecer o poeta
que assim se traduz no poema Dueto:
 
 Eu já fui louco e até que me aplaudiram,
Já fui sensato e poucos me entenderam;
Aí, quis ser santo e me crucificaram.
Quando te amei, disseste-me: - É loucura.
Quando amaste, te disse: - É insensatez.
Abençoamos o amor e o amor se fez.
Crucificado, - é a divina tortura.

Viva a poesia e a insensatez! Que essa seja a primeira de muitas irrequietas andanças, João Soares Lobo!

Fortaleza, 10 de fevereiro de 2014

Aíla Sampaio


Hermínia Lima: a pele das palavras





A leitura crítica de um texto deve, antes de tudo, concentra-se nas trilhas da própria escritura
Pulsante, vigorosa, sensorial: é assim que se afigura a poesia de Hermínia Lima. Em Sangria Azul, seu primeiro livro de poemas, já celebrava a sensualidade do corpo, o amor vivido, saciado, de modo que essa poesia amorosa, sensual, retomada nos versos de Sendas do sacrário, já constitui uma marca de sua poética e, nesse novo livro de poesia, confirma sua capacidade de desnudar-se sem ser piegas, de decantar o erotismo sem ser vulgar.

Hermínia Lima é professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), doutoranda em Línguística na Universidade Federal do Ceará (UFC). No campo da produção literária, dedica-se ao ensaio e à poesia, com proficiência, imaginação e sensibilidade

O erotismo

Praticada, pode-se dizer, desde sempre, a poesia erótica tem belos registros em obras de poetas gregos e latinos da Antiguidade Clássica; posteriormente a exercitaram poetas da lírica medieval e provençal, do Barroco e do Arcadismo, seguidos pelos românticos e, mais tarde, pelos modernos e pós-modernos.

Embora exercitada em quase todas as épocas, a poesia do amor carnal é mais um estilo próprio de cada autor do que uma característica marcante dos movimentos literários. No Brasil, José Alcides Pinto, Hilda Hilst e Pedro Lyra são representantes do que há de melhor nesta seara.

Para Hermínia Lima , são as ‘ardências do corpo’, os desejos, fontes de inspiração. O sexo – “sentido de ser” – não é apenas leitmotiv de versos, mas a própria poesia: (Texto I)Seus versos são extremamente sensoriais, inspirados no(s) amor(es) vivido(s), degustado(s) e eternizado(s) na pele das palavras, onde ele(s) não perecem. Sim, é pela palavra que ela (re) constrói as imagens de carícias, toques, olhares e explosões de prazer que sutilmente se desenham.

Outro livro

Sendas do sacrário é incontestavelmente um livro de amor. Divididos em três partes, os poemas ilustram a mulher ativa, dona do seu corpo e do seu prazer, em busca do amor. Seu eu lírico, notadamente feminino, não reduz sua poesia a meros devaneios românticos de uma mulher. Como Hilda Hilst, ela ora celebra a posse, a carícia concreta, ora projeta, idealiza e sonha com a chegada daquele que abrirá as portas de seu santuário, como se lê em “Busca”:(Texto II)

Leitura do poema

A promessa de futuro, seguramente anunciada, mostra o poder da busca e a capacidade de transpor céus e terra pelo abraço desejado. Embora o eu lírico não seja declaradamente uma mulher, vê-se nas entrelinhas, a voz das Penélopes, claro, do nosso tempo, pois, em vez de fazer e desfazer mantas, ela “cruza fronteiras” e “cumpre a saga” enquanto aguarda seu “Odisseu”.

Sabe a hora do encontro, simbólico, nas chamas, nas águas ou entre-palavras. Esse último reserva já a possibilidade de o amor realizar-se apenas em forma de versos, como disse, na pele das palavras.

Singularidades

Pelo elemento fogo, ela é corpo em brasa, bacante vestal nos braços do seu homem, consoante os versos: (Aquecidos, a princípio, pela mistura insólita / de vinho e chocolate, ferviam agora, / na chama dos próprios corpos / que incendiava a cama, o quarto / e ameaçava incinerar o mundo inteiro (“Joinville” p.41).
Nas águas, é sereia ardilosa, tomando posse do seu Boto (Enquanto canto / encanto. / O canto, à cata / acha, em um canto, / estrelas / e as cata / para o ato (“Sereia” p.57)) . Entre-palavras, é a mulher que seduz pelo verbo encarnado, lúcida e visionária, segura do que tem e/ou pode ter (Ah, santa e profana habilidade de tocar com as palavras! (“Divindade” p. 70).

Professora da Unifor

AÍLA SAMPAIO
Especial para o Ler

Trechos

TEXTO I

Sobre um altar de linho, / Derramam-se os perfumes da carne /// (Poemas pulam entre pernas / e pousam cansados / na cintilante espera / do recomeço) (“Altar” p. 24)

TEXTO II

Abrirei estradas para o norte, / rasgarei a mata catando loas, /e levarei o sol para secar florestas. /// Espreitarei os vizinhos peruanos, /aprenderei os ritos dos povos bolivianos, / E cruzarei fronteiras navegando o rio Acre. /// Decifrarei dialetos de todas as tribos, / mergulharei no rito de pajelança da nação Kaxinawa, / e seguirei as águas, morada de Cobra Norato. /// Boiúna será meu guia, / pirarucus e castanhas meu alimento / pelas terras dos seringais. /// Enfim, cumprida a saga, / suspenderei a chuva, / e nua caminharei pela mata, / sorvendo a taça do Santo Daime, / enquanto espero a hora do teu abraço.

 

Publicado no Jornal Diário do Nordeste em 24/01/2014

http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/suplementos/ler/herminia-lima-a-pele-das-palavras-1.798346