terça-feira, 26 de julho de 2011

O HIPER-REALISMO NOS CONTOS FARPADOS



Os dezesseis contos que compõem o livro Contos Farpados (Secretaria de Cultura do Ceará, 2011), de autoria de Jesus Irajacy Costa, têm o enredo articulado num fato misterioso ou desagregador. Seus personagens são seres dilacerados pelo sofrimento, pela rusticidade da vida e das relações, pela solidão, e parecem sempre andar ao encontro do inusitado.

A linguagem simples dá um fluxo leve ao discurso, que toma densidade pelas cenas descritas, pela perplexidade que provoca o destino dos seres fictícios fadados, todos, a vivenciar situações de risco. Os desfechos inesperados ora surpreendem pela novidade que inserem, ora pela interrupção da narrativa, deixando no vazio a conclusão dos fatos.

Na verdade, os contos são lances de histórias não concluídas, vidas alucinadas, um recorte de tempo que bem pode ser arrancado de lembranças atormentadoras, como é o caso de “Herança” e “A casa do cacimbão”, ambos com enredos relatados por um narrador-personagem já cronologicamente distanciado dos fatos.

A tragédia parece espreitar inevitavelmente os seres, e o aparentemente absurdo ocorre naturalmente, como o acidente de “Porta Aberta”, cujo protagonista sai da rotina incomodado com um corpo que está sendo arrastado por um carro e acaba envolvido no atropelamento; a queda em “A casa do cacimbão”, quando uma brincadeira de jovens termina num acidente fatal e o mais peralta deles cai no cacimbão ao redor do qual estão brincando; e a revira-volta de “Herança”, em que uma armação do destino faz o sobrinho matar o tio que o maltratava. A sutileza desse último conto, bem como dos demais, não permite a conjectura de maldade ou vingança, mas tão-somente coloca o leitor diante da fatalidade e, assim, naturaliza-se o insólito.

Como analisa Carlos Vazconcelos, em artigo sobre a obra de Jesus, “são relatos de mar e terra, urbe e sertão, mas o principal [...] é o território ignoto das perplexidades humanas”.Independente do espaço que serve de cenário aos enredos, percebe-se o desencontro dos seres com eles mesmos, a permanente insatisfação, uma irmandade de vozes atônitas amordaçadas por acontecimentos fora do comum que os colocam em igual condição. A solidão de Mariano Salgado (“O colecionador de búzios”) é a mesma do Seu Zé da Bodega (“O troco”); o personagem de “A porta aberta”, o advogado-professor Jorge Vargas, é o mesmo de “Encurralado” e “Avenida treze”. Não despretenciosamente, Jorge Vargas metaforiza, em sua via-crucis urbana, o caos diário, o beco sem saída que é a vida nas grandes cidades. O destino incerto, mas sugestivamente trágico, ocorre inevitavelmente, como também com o protagonista de “As ondas”, que se dilacera ante uma paixão platônica.


Todos parecem experimentar o mal-estar característico da civilização pós-moderna, tão bem metaforizado no relato de “O ovo quebrado”, que ressuscita a náusea sartreana. Isso ocorre também numa crítica velada ao consumismo, à valorização da matéria, cujo excesso sufoca o protagonista de “Fire & Freedom”, o qual decide queimar tudo e fugir, já que o espaço para ser, em seu apartamento, foi tomado pelo ter.

O tio grosseiro de “Herança” traz de volta o pai selvagem de “Castigo”, o pai monstro de “O torturador” e os pais individualistas de “Atrás da porta”. Assim, na própria família se coloca, muitas vezes, o cerne da aflição, já que a resistência ao destino implacável de maus tratos, seja por atos ou por silêncios, nunca é bem sucedida. O velho pescador de “As dunas”, pelo desesperado assassinato da criança que o xingava, se torna um algoz, distancia-se do “Colecionador de Búzios” e a ele só se assemelha nas agruras da profissão de pescador e na procura do mar como último refúgio.

As descrições pormenorizadas, a crueza com que a morte é narrada (“Herança”, “As dunas”), a presença do disforme e das imagens grotescas, filiam os contos de Jesus a uma tendência pós-moderna chamada hiper-realismo, um modo de caracterizar a realidade de forma crua, possibilitando, inclusive, a perda da habilidade de distinguir a realidade da fantasia, que, não obstante, passa a ser um modo de deslocação do hiper-real.

Há também a presença do gênero fantástico, ainda que se perceba, subjacente, uma alegoria da realidade, como ocorre em “O alfaiate”, cujo protagonista, transformado em gênio da costura, quando veste o paletó enviado por um tio que mora no exterior, não aguenta a pressão dos clientes e se transforma num vampiro. Já em “Avenida treze”, Jorge Vargas, preso num engarrafamento e pressionado todo o tempo via celular, não suporta o excesso de compromissos e a situação opressora, e se transforma num gorila. Quando a fuga da situação insustentável não se dá pela morte, dá-se pela inusitada metamorfose.

O suicida Seu Zé da Bodega (“O troco”) e Bitonho (“A casa do cacimbão”) permanecem no lugar da morte como assombrações. Assim, a transgressão do real se configura num universo em que o insólito é perfeitamente natural. Quase todos os atormentados seres de papel criados por Jesus vivem no limite, atravessando as cercas existenciais ou enredados nos fios de arames farpados da vida, perfurados pelas dores dos desencontros e das tragédias diárias. Disso não escapa nem o Dr. Schmitt, cujas férias em paradisíaca praia acaba tendo um preço alto.

Transitando entre o hiper-realismo e o fantástico, sem dispensar, por vezes, o lirismo (“O colecionador de búzios” e “As ondas”), o autor de Contos Farpados cria relatos de mistérios que intrigam o leitor e transgridem o real, para metaforizar a dura vida do homem contemporâneo atormentado pelo excesso de problemas, pelos engarrafamentos, pela solidão, pela falta de tempo e calor humano. Com proposta estética bem definida e unidade nos procedimentos conteudísticos e formais, Jesus torna a leitura prazerosa, mesmo com a densidade temática, as cenas por vezes grotescas e impiedosamente duras, como a vida que transfiguram.

Aíla Sampaio