quinta-feira, 26 de março de 2009

Desajuste familiar nos romances de Lya Luft

Introdução

Lya Luft publicou seu primeiro romance, “As parceiras”, em 1980, após três livros de poemas. Seguiram-se os outros romances “A asa esquerda do anjo” (1981), “Reunião de família” (1982), “A sentinela” (1994), “O quarto fechado” (1984), Exílio (1987) e “O ponto cego” (1999), com três obras poéticas intercaladas. Produziu também o memorial “Mar de dentro” (2000) e os livros de ensaios “O rio do meio” (1996) e “Histórias do tempo” (2000), que dão grande contribuição ao leitor quanto ao seu processo criativo. Foram lançadas outras obras até 2008, que não citamos nem analisamos aqui, pois nada acrescentariam à viagem que empreendemos pela sua produção estritamentente ficcional, sem dúvida, a melhor fatia do conjunto de sua obra.

É característica marcante em seus romances a recorrência a cenas, situações ou temas que já apareceram em outras obras suas. Seja através de referência a personagens anteriores ou pelo delineamento de posturas idênticas; seja pelas patologias comuns ou pela força de determinismos, a verdade é que os personagens se irmanam na fragilidade, no desajuste emocional, na carência afetiva, na sexualidade ambígua, mal resolvida, na dor de perdas insubstituíveis, na orfandade, no instinto de autoritarismo ou violência, enfim, se unem por um laço único que enreda toda sua ficção. Sobre o tema central de suas narrativas, ela diz: “A família – da qual incansavelmente escrevo, por conhecer a sua importância e saborear o seu encanto – nos apresenta ternas armadilhas. É lá, sobretudo, que ainda, neste novo século, se cultiva a árvore da culpa e da indecisão”. (HT p.83). A escolha consciente da instituição familiar como centro de sua criação leva-a a um mundo de desajustes, incompreensões, dramas e fatalidades que acaba por traçar um retrato desolador da família contemporânea, motivo desse ensaio.


1. Estrutura familiar desajustada


Nas narrativas de Lya Luft, a família aparece sempre inserida em uma estrutura desajustada, pela impotência diante dos problemas, que leva a personagem a fugir de suas responsabilidades; pela morte dos pais; pela loucura de um ente familiar ou por traumas ocorridos na infância. Tal fato se dá como gerado por um determinismo: filhos de famílias desajustadas formarão famílias também desajustadas, vivenciarão relações fadadas ao fracasso e não se realizarão afetivamente.

Assim, mães morrem cedo ou são indiferentes às suas crias, pais se eximem de seu papel ou o desempenham de forma repressiva, de modo que se percebe a necessidade de um ser estranho ou agregado à estrutura familiar, que estará presente para desempenhar o papel que caberia aos pais. É o caso da Governanta Fäulen, de “As parceiras”, que cuida das três filhas de Catarina Von Sassen, assumindo o papel de pai e mãe, já que Catarina, isolada no sótão por não se ajustar às responsabilidades impostas pelo casamento, decide criar o seu próprio mundo e dele exclui suas quatro filhas: Beatriz (Beata), Dora, Norma e Sibila. Ela [Fäulen] “Deu às meninas uma ilusão de família, apesar do pai ausente e da mãe enferma”. (AP. p.20) O Pai (avô da narradora), um homem bruto e rude que violentara a inocente Catarina na noite de núpcias, e em visitas esporádicas à sua “torre”, levou-a à loucura Ele aparece apenas como protagonista do ato que traumatizaria a jovem alemã, casada conveniente pela mãe aos 14 anos. Anelise e Vânia (filhas de Norma, neta de Catarina), como atendendo a um determinismo, perdem os pais muito cedo e são criadas pela tia Beata.

“A asa esquerda do anjo” se baseia no cotidiano dos descendentes de alemães de Santa Cruz do Sul. Gisela, ou Guisela, como a chama a avó, é quem conta a história de sua família, seus segredos (escondidos metaforicamente em uma portinha no porão), as mortes dolorosas e fala sobre o anjo que guarda o mausoléu dos Wolf, sobre os anseios e as culpa que a impedem de viver uma relação amorosa. A avó alemã, Frau Wolf, mantém filhos e netos sob seu comando e não perdoa a neta Anemarie, a sua predileta, quando foge com o marido da tia. Gisela sente-se excluída e não sabe conviver com o autoritarismo da matriarca da família, que, inclusive, vê a nora, mãe de Gisela, como uma intrusa na família. Depois de adulta, Gisela refaz sua trajetória em busca de sua identidade. É uma mulher sozinha, incapaz de conduzir um relacionamento amoroso.

Em “Reunião de família”, os filhos pouco sabem sobre a mãe, a não ser que morreu bem jovem e que recomendou à empregada Berta para que nunca os abandonasse. O Pai, também sem nome, é um velho professor autoritário e retrógrado, indiferente ao crescimento dos filhos e às suas carências; pelo contrário, sua autoridade repressora é razão da maioria dos traumas de todos eles: Alice, Renato e Evelyn, numa relação que se alicerça na simples obrigação, sem qualquer liame afetivo. Berta, a empregada que sequer recebe salário, dedica sua vida àquele lar e desenvolve um ódio macerado do patrão. É ela quem detém o mistério da morte precoce da patroa.

Em “O quarto fechado”, Renata é uma mãe impotente diante dos problemas dos filhos, sobretudo porque os gêmeos Camilo e Carolina são crianças totalmente diferentes das outras. É Mamãe, a madrasta de seu ex-marido, avó postiça, portanto, das crianças, quem realmente se preocupa e cuida delas.

Já “A sentinela” traz uma família formada pelo pai, Mateus; a mãe, Elsa; a filha mais velha, Lilith; a filha mais nova, Nora, e Olga, que é filha de Mateus antes do casamento. Como Elsa rejeita completamente Nora, é Olga quem a orienta, quem a socorre nos momentos difíceis, já que Mateus, embora lhe tenha afeto, fica sempre do lado da esposa. Nora, quando adulta, sufoca o filho Henrique, pecando por excesso de amor, tentando dar a ele o que não teve. É que, para ela, a família não deveria ser a raiz de todos os problemas, mas “o lugar onde a gente devia se sentir bem, entendido e amado até naquilo que os outros não aceitam, nem entendem”. (p. 109)

“O ponto cego” (1999) constrói toda a problemática familiar pela ótica de um menino de sete anos que se recusa a crescer, com medo de ficar igual aos adultos, perdendo evidentemente a própria perspectiva. A infância é ainda a sua única proteção. O Menino sem nome é também uma criança diferente, curiosa, perscrutadora e adulta, com uma percepção demais aguçada. É rejeitado pelo pai e superprotegido pela mãe, até o momento em que ela, uma mulher anulada pelo autoritarismo do marido, decide dizer “sim” à própria vida e vai embora sem explicação. O menino passa, então, a ser cuidado pelas Tias do pai, já que a irmã é indiferente à sua fragilidade: “As tias vinham todo dia cuidar de mim, me enchiam de agrados, me consolavam – me fazia bem chorar escutando seus passinhos ao redor da cama: alguém se importava, alguém cuidava de mim outra vez. Mas não era a mesma coisa, não era o mesmo colo, não eram o perfume e a bondade dela”. (PC p. 149) O modelo de família é praticamente o mesmo em todos os romances. Como comenta Batista (2007), todos “mostram o casamento e o contexto familiar como motivadores dos traumas, da loucura, morte e perdas das mulheres. O patriarcado, mesmo fragilizado, ainda dita as regras, e a única opção que se oferece a essas personagens em crise é a aceitação do jogo, a acomodação aos papéis impostos. Ou, na maioria dos casos, resta-lhes a morte ou a loucura.


1.2 Mãe indiferente/ausente

Os filhos raramente aparecem como a realização de um desejo maternal nas narrativas de Luft. São, na maioria das vezes, como um fardo que se tem de carregar. Em algumas, há a nítida preferência dos pais por um dos filhos, o que leva o outro a um forte sentimento de rejeição. Em outras, a indiferença ou a falta de laços se estende a toda a prole.

No romance “As parceiras”, o determinismo é implacável. Catarina, mãe de Beata, Dora, Norma e Sibila, mostra-se inapta à criação das filhas e, ensandecida, refugia-se no sótão, deixando a educação delas por conta da empregada. Beata, a viúva virgem, cuida da irmã Sibila, anã, anormal. Norma se casa com um médico e vive em função dos cuidados dele, completamente desligada da criação das filhas Vânia e Anelise, que acabam ficando órfãs precocemente e sendo cuidadas também pela tia Beata, uma mulher seca, que só pode dar o que recebeu da vida. Norma jamais dedicou atenção as duas, mostrava-se sempre frágil e incapaz de assumir responsabilidades: “Hoje, sei o quanto minha mãe era frágil, dependendo, para sobreviver, de todo o cuidado que meu pai pudesse lhe dar. Por isso, mais do que meu pai, ele foi sempre o marido de Norma” (AP p. 31)

Em “Reunião de família”, a figura da mãe é um espectro e paira envolta no mistério de sua morte precoce, mas é significativa a sua ausência, visivelmente assinalada pelos filhos, como uma ‘falta que habita’. A memória dos filhos, ao tentar resgatar lances de vida, não raro falha, obscurecendo a imagem. Alice tinha quatro anos quando ela morreu e confessa não se lembrar dela:“Não conheci minha mãe; pelo menos não me lembro dela. Morreu quando eu era pequena. Só tenho umas fotografias inexpressivas, aquela mocinha era minha mãe? Meu pai não quis guardar nem uma recordação dela, nem roupa nem cacho de cabelo nem anel. (p.19)... Mesmo Berta, a empregada não sabe grande coisa sobre a patroa morta há tantos anos. Chegou em nossa casa pouco antes dela morrer, minha mãe vivia doente no quarto. Vinha um médico tirar água da barriga dela com uma agulha... Estranho esse obscurecimento na memória” (RF p. 19.)Alice, não tendo vivenciado a rejeição materna, mas a ausência da figura, forma uma família tradicional, mostra-se submissa ao marido e compenetrada na educação dos filhos, que nunca lhe deram trabalho. Anula-se como mulher para revelar-se uma mãe dedicada.

Renata, de “O quarto fechado”, é incapaz de lidar com os gêmeos Camila e Carolina, crianças diferentes das demais, a quem ela se vê impossibilitada de compreender e até de amar. Gabriel, o filho que despertou a possibilidade do amor materno, morreu misteriosamente, ainda bebê. É no velório de Camilo que ela revela toda sua impotência diante da vida, sobretudo no que se refere à criação dos filhos que ela delegou à Mamãe.

Já “Exílio” é uma obra em que a figura da mãe, inicialmente idealizada como um bela rainha, se transforma na efígie quase grotesca da alcoólatra exilada que se suicida. Totalmente dependente da atenção do marido, ela sempre se mostra incapaz de dar qualquer afeto às crianças. Sua morte desencadeia a loucura de Gabriel, cujo trauma de ter presenciado seu suicídio, mesmo bebê, é demonstrado na sua mania de defecar, espalhar merda pelas paredes, grafando o nome “mãe”. A médica, filha mais velha, também será vítima do determinismo e, por outras razões, acabará por não ser uma mãe dedicada, o que levará seu filho Lucas a optar pelo pai no momento da separação.

Em “A sentinela”, Elsa exclui ostensivamente Norma de seu círculo de afeto, totalmente voltado para Lilith, a filha tida como perfeita. Não raro, se mostrava insatisfeita com a preterida e dava um jeito de livrar-se da presença dela: “Quando minha mãe se cansava de mim, eu sabia: seria desterrada um fim de semana ou mais no sítio onde nossas roupas ficavam...” (p.13) A mãe, inclusive, colocava o pai contra a própria filha: “Mateus me protegia , talvez de medos, ladrões, fantasmas. Mas não me protegia de Elsa. E, quando cresci um pouco, começou a me castigar por coisas que eu não tinha feito; que Elsa inventava ou exagerava, para me ver punida” (p.67). Por rebelar-se, Nora passa a ser a ‘culpada’ pelas reações da mãe: “- Pai, por que a mamãe está sempre zangada comigo? – Porque é uma mãe maravilhosa /.../ Mas você é rebelde demais, Patinha, precisa ser mais obediente, mais doce” (p.67)

Após a morte de Lilith, quando Norma imaginava ocupar, então, um lugar na vida dos pais, é, aos 12 anos, mandada para um internato, o que representa uma forma de total rejeição à sua presença em casa. Observe-se a consciência da total ausência de afeto: “Se ao menos eu tivesse morrido no lugar de minha irmã, estariam chorando por mim agora” (p.47) Mesmo quando a mãe já está velha e solitária, demonstra ainda hostilidade à filha que, apenas por obrigação, não a abandona. No dia do seu aniversário, Nora visita Elsa, tenta fazê-la lembrar a data, querendo arrancar dela o parto que não teve, a maternidade que lhe foi negada, mas, ao interrogar sobre o dia 16 de março, recebe como resposta: “- Nessa noite entrou em minha vida uma intrusa”... E pensa, tentando consolar-se: “Estará realmente caduca ou só quer me ferir?” (p.27)

A Mãe de “O ponto cego”, embora seja a única a dar atenção ao filho e preocupar-se em protegê-lo do autoritarismo do pai, por vezes volta sua atenção para outros interesses, deixando o filho por último em sua escala de prioridades: “Tem dias em que nem consigo chegar perto dela, não quer que eu me encoste em seu braço, seu corpo. Percebo que ela não agüenta nem carinho, é como se lhe tivessem arrancado a pele e até a brisa a fizesse gritar. /.../ É sempre hora de ela ir ao escritório, hora de viajar, hora de atender minha irmã, hora de ser boa com meu pai, sempre irritado, sempre reclamando de tudo” (PC p. 83)

A mãe vai embora de casa, sem qualquer explicação, e o Menino vive a esperança da volta dela. Pouco a pouco ele se dá conta de que aquela ausência não será temporária e se ressente pela falta de contato, o que o faz sentir-se sem importância na vida dela: “Mas os meses se arrastam e sei que ela não vai voltar. Nunca me deu um telefonema, nunca escreveu, ou meu pai não me deixou saber de nada disso, e minha irmã vive como se nunca tivesse tido mãe. Nem retratos dela existem mais pela casa, alguém recolheu tudo. Só eu tenho alguns escondidos no quarto, mas sei que um dia não vou mais lembrar direito do cheiro dela, da voz, das mãos, do jeito de andar, nada”. (PC p.148)

Badinter (1985) esclarece que “ao se percorrer a história das atitudes maternas, nasce a convicção de que o instinto materno é um mito. Não encontramos nenhuma conduta universal e necessária da mãe. Ao contrário, constatamos a extrema variabilidade de seus sentimentos, segundo sua cultura, ambições ou frustrações. Como, então, não chegar à conclusão, mesmo que ela pareça cruel, de que o amor materno é apenas um sentimento e, como tal, essencialmente contigente? Esse sentimento pode existir ou não existir; ser e desaparecer. Mostrar-se forte ou frágil. Preferir um filho ou entregar-se a todos. Tudo depende da mãe, de sua história e da História. Não, não há uma lei universal nessa matéria, que escapa ao determinismo natural. O amor materno não é inerente às mulheres. É adicional”. Essa visão polêmica da maternidade isenta a figura da mãe de qualquer responsabilidade sobre os problemas dos filhos ditos oriundos da ausência, indiferença ou rejeição dela, pois, se o instinto maternal não é inerente à natureza feminina, não teria, a mulher, nenhuma ‘culpa’ por ser desprovida dele.

A despeito dessa isenção de culpa, Salazar (2002), adverte que é importante pensarmos na ética da responsabilidade, que se esforça na conciliação entre os princípios dos direitos individuais e as obrigações sociais, econômicas, científicas. Ética que se afasta dos códigos de uma moral rígida por uma parte e de uma ausência de códigos por outra”.

As personagens maternas dos romances de Lya Luft, ao rejeitarem os filhos ou sucumbirem às próprias limitações, na visão de Badinter, não estão sendo cruéis, mas apenas humanas. De qualquer modo, é por conta da ausência delas que as famílias se desagregam e reproduzem os desajustes emocionais e relacionais nos descendentes, criando gerações de seres desajustados, solitários e infelizes.


1.2 A insegura autoridade masculina

Embora as narrativas de Lya Luft centralizem a figura da mulher, o homem não aparece como mero coadjuvante; desempenha papéis de relevo, seja como marido submisso, que para resguardar a infantilidade da mulher, negligencia e até fica contra os próprios filhos (“Exílio”, “As parceiras”, “A sentinela”), seja pelo autoritarismo (“Reunião de família”, “O ponto cego”). A própria autora, tecendo comentários sobre os seus personagens em “Rio do meio”, confessa sua opinião sobre o sexo masculino, mas não se isenta de identificar esses seus seres fictícios como pessoas solitárias: “... todos os homens que inventei, paridos da minha fantasia, sólidos ou frágeis, grosseiros ou machucados, vitoriosos ou traídos... sempre os achei solitários, embora não me fossem apresentados como espécimes muito confiáveis. Desde criança ouço falar pouco confiáveis. Desde criança ouço falar pouco bem deles. (RM p.71) /.../ escrevo muito sobre a solidão dos homens – que é também a solidão de suas mulheres”. (RM p. 73)

Na primeira obra (“As parceiras”), se sobressai a figura do Avô da narradora, inicialmente, um viril trintão, compulsivo por sexo, que se casa com uma moça de 14 anos. Mesmo após sair de casa, visto que a esposa, com aversão aos seus assédios se recolhera louca no sótão, ele a visita e a violenta quando tem vontade: “O marido desistiu de lhe ensinar a arte dos bordéis, preferindo teúdas e manteúdas àquela adolescente que já lhe provocava mais arrepios de medo do que de desejo. Mudou-se para uma de suas fazendas, no casarão aparecia apenas como visitante temido. Minha avó ficou meio esquecida com as empregadas e uma governanta. Quando o marido irrompia naquela falsa tranqüilidade, não deixava de procurar a mulher. Dava um jeito de abrirem o sótão, e, entre gritos e escândalo, emprenhava Catarina outra vez”. (AP p. 15)

O pai de Anelise, a narradora, é um médico que vive em função de Norma, sua frágil e ameninada esposa, de quem ele nada cobra em relação às filhas: “As três filhas de Catarina casariam cedo. /.../ minha mãe, com um homem que a protegia da fragilidade numa existência quase tão irreal quanto aquela do sótão”. (AP p.20). “Nossa família era isso: os pais, felizes e alheados, falavam conosco, nos levavam para a praia nos verões. Papai indagava da escola, mas não éramos nós sua verdadeira preocupação: era mamãe. Pensei que se amavam demais, o resto do mundo não interessava...” (AP p.28). Já o marido de Vânia, irmã da narradora, impõe como condição para o casamento a renúncia da então noiva à maternidade, haja vista que não deseja fazer perdurar a “raiz podre” daquela família. Vânia aceita a imposição e se submete às vontades do marido.

Em “Reunião de família” é o Professor a figura preponderante. Autoritário e violento, ele, além de não dar amor aos filhos órfãos, maltrata-os: “No banheiro Renato foi obrigado a se ajoelhar; achei grotesco alguém pedir perdão de joelhos por urinar fora do vaso... Sujou? Agora limpe com a língua... o pai então pressionou-o com a mão poderosa e ossuda até esfregar o seu rosto no chão. (p.36) /.../ Nunca deixei de ter medo do meu pai. Acho que todos temos. A um gesto seu, mais brusco, afastamos instintivamente a cabeça, como para fugir daqueles tapas de antigamente. Pois apanhávamos até na frente de nossos amigos... sentíamos vergonha. ... Nossos castigos eram constantes e cruéis: tapas, surras, horas sentados quietos sem licença de levantar nem para beber água”. (p.35)

O velho é odiado, inclusive, pela empregada, que até o responsabiliza pela morte precoce da patroa: “Lembra o dia quando o senhor esfregou minha cara nomijo do chão, lembra? ... Naquela ocasião Berta me contou que minha mãe morreu de desgosto, de solidão. Muitas pessoas comentavam isso, para ela o senhor também foi um carrasco. p.84... Berta me disse também que logo antes de morrer nossa mãe pediu que ela tomasse sempre conta de nós, porque o senhor não tinha coração. Foi o que ela falou: “O pai deles não tem coração”. (p.85.Já Renato aceita passivamente o temperamento de Aretusa, e Bruno alimenta a quase-demência de Evelyn, após a perda do filho.

Martin, de “O quarto fechado”, é um marido impotente diante da inadaptação de Renata à vida matrimonial e aceita a separação, sem questionamentos. É o personagem masculino mais solitário da ficção de Lya. Não houve possibilidade de ele realizar-se com sua quase-irmã Ella e, com Renata, jamais teve uma estrutura familiar normal: os gêmeos eram crianças diferentes, a mulher não sabia ser esposa nem mãe, o filho Gabriel morreu bebê ainda.

O pai, de “Exílio”, remete ao pai da narradora de “As parceiras”. Vive em função da mulher alcóolatra e, além de deixar os dois filhos em segundo plano, pede que eles compreendam a fragilidade da mãe, que acaba por suicidar-se e desestruturar toda a família. Na mesma obra, temos a figura de um homem forte corporificada no amante da médica, um viúvo que cuida pessoalmente do filho excepcional. Esse é, talvez, o mais forte personagem masculino de Lya, sobre o qual ela mesma comenta em “Rio do meio”: “Há um personagem masculino que abordei com especial reverência. Aquele que chamei pater dolorosus, cumprindo uma paternidade pouco conhecida: segurando nos braços seu filho adolescente pouco mais que um vegetal, alimentava-o pacientemente com uma colher, limpando-lhe do queixo o mingau que escorria, enquanto os pobres olhos desarticulados o contemplavam em muda – e terrível – devoção. /.../ Não sei se voltarei a sentir a pungência que me varava cada vez que eu via com meu olhar interior, e descrevia, esse homem de uma tal grandeza. Não digam que em meus livros os homens são uns fracos”. (RM p.97)

Em “A Sentinela”, Mateus retoma o estilo submisso à esposa e vive em função de Elsa, inclusive compactuando de sua rejeição à filha Nora. João, amante de Nora, é insubmisso, mas se fragiliza diante dos problemas vividos pela filha, consumidora de drogas.

O Pai de “O ponto cego” é extremamente dominador. Embora administre os bens da esposa, é ele quem dita as regras e a mantém submissa aos seus caprichos e a sua infidelidade: ‘A vida não é fácil ao lado de meu Pai, aquele olho azul sempre avaliando e despachando. /.../ Meu pai é controlador. Sabe e vê tudo, pesa, corta e divide. Mas o meu pensamento ele não consegue regular. Ele decide a existência de minha Mãe, mas não poderá impedir sua mirada. Prevê as vitórias de minha irmã, mas não escreverá todo o destino dela” (PC p. 47)

Embora o pai constitua um contra-modelo para o filho, que, em função disso, se recusa a crescer, e se apresente no decorrer da narrativa como um homem temido, quando sua esposa vai embora, ele mostra suas fraquezas, rapidamente percebidas pelo menino: “Só depois que tudo aconteceu e que essa história foi desenrolada até quase o final, compreendi que sua insegurança o fazia agir assim; por medo queria conformar as coisas todas segundo sua vontade. /.../ (Meu pai também carregava a sua dor)” (PC p. 23)

Na obra “Histórias do tempo”, no capítulo ‘Histórias de Perdas & Ganhos’, a narradora fala de uma reunião com um grupo de homens “de quarenta a sessenta anos, bem sucedidos na profissão”, a fim de debater maturidade, perdas e ganhos. Ela diz se surpreender com os medos, os desejos e as inseguranças, dores e aflições também vivenciados por eles. Lya toca na fragilidade masculina do homem que se sente isolado dentro da família, cujos maiores espaços são da mãe e dos filhos na ótica deles.

1.3 Submissão/Insubmissão nas relações

As relações familiares estão sempre pautadas em relações de submissão ou insubmissão, como se a forma de convivência dependesse de um elemento dominador e de outro dominado, numa total ausência de equilíbrio. Isso se evidencia tanto no ângulo feminino como no masculino, quando a submissão aparece representada dentro de um contexto de “aceitação”. A personagem feminina submissa aceita sua condição, na maioria das vezes, por não ter opção ou por prender-se a algum valor, embora demonstre, em sua aparente postura acomodada, indícios de insatisfação. Já o homem submisso o é naturalmente, por devoção, sem qualquer necessidade de libertar-se. O certo é que, na obra de Lya, “Numa relação há sempre um que se curva e outro que comanda”, como diz, ainda lúcida, a Avó de “O ponto cego” (p.75) à sua filha.

“A asa esquerda do anjo” mostra na avó o desenho do autoritarismo. Todos vivem à sua sombra, embora morando no Brasil, seguindo seus preceitos alemães. Gisela, sua neta, não se acostuma à postura submissa da mãe, e vive dividida entre a obrigação de seguir as rígidas normas da educação alemã e a vontade de ser como as outras crianças. Sua mãe não tem força para optar pela educação da filha. Assim, a menina cresce sob a censura da avó e à sombra da prima, a ‘preferida e perfeita’ Anemarie, a única a romper o cerco opressivo.

Alice, a narradora de “Reunião de família” (1982), ao afastar-se da casa em que vive com o marido e os filhos, para reunir-se com os irmãos e o pai, demonstra explicitamente sentir falta de seus afazeres domésticos e não se desliga da rotina de sua casa. Admite sua dependência emocional do marido autoritário e sucumbe a suas vontades próprias para não contrariá-lo. Seu marido representa uma espécie de “salvador da pátria”, que a libertou da rudeza do pai. Ela até os compara para mostrar que o marido, embora com todos os defeitos, é bem melhor que seu genitor: “Aos dezoito anos casei e fui construir a minha vida com aquele que fora meu primeiro namorado. Um rapaz quieto e bondoso, muito menos severo e exigente do que meu pai. Desisti dos planos de estudar, resolvi ser uma boa dona de casa” (p.35) /.../ Por sorte, casei-me com um homem menos exigente,que não é severo; apenas um pouco distante. Fico feliz quando noto que está contente comigo”. (p.20).

Ela deixa escapar que tem consciência da relação de domínio que circunda sua vida ao desabafar que, com o casamento, apenas ‘trocou de dono’: “Quis morrer dezenas de vezes, lidando na cozinha, carregando a sacola de compras, lendo sozinha na sala, vagando pela casa de madrugada quando tinha insônia, escutando meu marido roncar, ouvindo o ruído de sua mastigação, agüentando as brigas dos meus filhos e disfarçando a dor quando me chamavam de velha. 109... Eu tinha outros planos para minha vida, mas acabei sendo Alice, a coitada; a de mãos ásperas e coração agoniado. Troquei de dono quando me casei, fui para um proprietário menos exigente, menos violento – mas meu dono. p.110... Todos são meus donos, até meus filhos; até Aretusa, que sabe meus segredos e me destruirá através deles”. Como não é feliz, vive a fantasia de ‘Alice no país das maravilhas’, numa demonstração de total falta de domínio sobre a própria vida.

A Mãe, de “O ponto cego” (1999), embora seja a dona da fortuna da família, administrada por seu marido por sua opção, se submete ao autoritarismo dele, aceitando, inclusive suas traições. Analisada pelo olho do filho-narrador, sua resignação é pura representação; ela dá autonomia total ao marido e fecha os olhos para os seus defeitos como uma forma de autopunição: “... dizendo não ela diria sim. /.../ Mas talvez ela não tivesse força. Talvez fosse acomodada. Ou estava aceitando um castigo? /.../ Prefiro não saber a resposta. A vida não é fácil ao lado de meu Pai, aquele olho azul sempre avaliando e despachando. (PC p. 46-7) /.../ Minha Mãe não parece ter uma vida sua: vive a dos filhos e a de meu Pai. Que dívida terá com ele, que a faz girar nessa perpétua dança das mulheres em torno dos homens a quem precisam servir?” (PC p. 37)

O filho fica a espreita do momento em que ela findará a purgação de seu(s) suposto(s) pecado(s) e se libertará. Ele torce imensamente por isso, mesmo sabendo que vai perdê-la. Afinal, ela se transforma, torna-se cada vez mais alheia, e foge sem explicações. A narrativa sugere que seu momento epifânico dá-se pela paixão avassaladora, à primeira vista, que ela vivencia com o Moço, namorado de sua filha.
Em “As parceiras” (1980), Vânia aceita a condição imposta pelo noivo e se casa certa de que sufocará definitivamente seu instinto maternal. Ela deixa transparecer que é essa a sua vontade, para não perpetuar na espécie a loucura de sua família, mas acaba admitindo que a decisão ‘foi imposição do marido’. Sublima sua submissão e sua aceitação da infidelidade dele arranjando amantes e comportando-se futilmente, numa vida de aparências, já que não quer se separar, porque o ama.

Renata, de “O quarto fechado” (1984), abre mão de sua vida profissional para casar-se, mas, ao contrário de Alice e da ‘Mãe (de “O ponto cego”), não se ajusta ao papel de mãe e esposa, embora não possa reassumir sua independência. A submissão imposta pelos papéis que lhe são imputados a violenta, matando inclusive seus dons artísticos.

Catarina Von Sasen, de “As parceiras” (1981), submerge num mundo imaginário e evade por não conseguir ajustar-se à convivência com o marido rude. Repudia o sexo e concebe o ato como uma cena de terror, o que se traduz na figura monstruosa de sua última filha, Sibila, anã e anormal, concretização do horror que fora o momento de sua concepção para a mãe. Catarina só se torna insubmissa através da loucura, mas também já nada lhe resta de seu.

Aretusa, de “Reunião de família” (1982), não se submete ao marido, ao contrário, exerce domínio sobre ele. O fato de Renato aceitar o passado ‘permissivo’ dela, as suas grosserias e indiferenças, torna-a o elemento dominador na relação. Na mesma obra, temos Bruno, marido apaixonado que sufoca a dor da perda do filho na tentativa de recuperar a sanidade da esposa Evelyn, causadora do acidente que promoveu a tragédia. Em vez de trazê-la à realidade ou culpá-la, ele alimenta a semiloucura da mulher, sendo conivente com todas as atitudes insanas dela, a despeito da opinião da família.

É o mesmo que ocorre com o marido de Norma, a frágil mãe de Anelise, narradora de “As parceiras” e com o esposo da Rainha Exilada, mãe da narradora de “Exílio”. Ambos negam atenção aos filhos para se dedicarem às suas frágeis esposas e ainda exigem deles (dos filhos) compreensão para o fato de terem uma mãe “especial”. Em “A sentinela”, Mateus só fazia o que Elsa determinava, aplicava castigo à filha Nora quando a mulher determinava, mandou-a impiedosamente para o internato quando a mãe assim decidiu; é, inclusive, visto pela filha como “cego e burro” em relação à esposa.

1.3 Carência afetiva dos filhos

É praticamente regra geral na obra de Lya a referência dos filhos aos pais, como negligentes, distantes, desapegados ou violentos. Todos, invariavelmente, apresentam sequelas dessa ausência, sejam ocasionadas pela fragilidade, pelo descaso ou pela morte da mãe; sejam provocadas pelo excesso de apego do pai à esposa, sejam pelo autoritarismo ou pelo desprezo. Leiamos as palavras de Anelise, filha de Norma, a frágil filha de Catarina (“As parceiras”): “Caminho nesta solidão prateada, e penso em minha mãe, que conheci tão pouco. Quando ela casou todos acharam que lhe convinha muito aquele homem já maduro, bondoso. Ainda por cima um médico, que poderia entender e tratar melhor certas singularidades de Norma. Pois ela era um pouco infantil, desinteressada pelas coisas práticas, aparentemente incapaz de assumir uma família sua. Pareceu feliz com meu pai, viviam bastante isolados /.../ Depois do jantar tocava piano para ele na sala: era para ele que tocava, cantava, vivia /.../ (AP p.25) /.../ “Meus pais eram bondosos e tranqüilos, mas distraídos. Talvez sentissem a brevidade do se prazo, a felicidade precária precisava ser tão protegida quanto minha mãe, que sobrevivia apenas assim, pairando pela casa, quase ausente, acompanhando um pouco a distância a vida dos filhos e os acontecimentos domésticos. Nunca podíamos correr, gritar, discutir na frente dela, tudo a perturbava, começava a chorar, recolhia-se ao quarto, me deixava louca de remorsos”. (AP p. 26)

Gisela, de “A asa esquerda do anjo” tem a infância marcada pela rigidez da avó, que lhe impõe uma educação alemã, quando sua alma brasileira clama pela liberdade de ser criança. Sua mãe não é capaz de se rebelar e mantém a situação para não contrariar a sogra. Na fase adulta, Gisela revela-se uma pessoa extremamente mal resolvida.

Alice, a narradora de “Reunião de Família”, registra a falta que fez a mãe morta tão cedo e mostra a indiferença e o desapego da pai: “Cresci sem mãe; sem avós; sem tias nem primas; nosso pai não era ligado à família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de dormir, ou contar histórias; para me dar conselhos. Nem para cuidar de Evelyn, que era um bebê quando nossa mãe morreu, e foi criada por Berta; ou para ajudar meu irmão Renato, que só levava surras de nosso pai”. (20) /.../ “O Professor não era um pai de verdade; desses que chegam em casa no fim do dia e a gente se alegra com sua presença; desses que pegam o filho no colo; ou os levam para passear. ... Todos chamavam meu pai de Professor. às vezes também o tratávamos assim, e ele nunca reclamou. Nossa casa era a continuação da escola: deveres e castigos; medo de errar”. (p.20) /.../ “Naquele tempo carregava comigo uma fotografia de minha mãe; dormia com ela debaixo do travesseiro; beijava-a; chorava seguidamente sem maior razão, e me sentia muito infeliz”.(RF p.35)

Em “A sentinela”, a carência da personagem Nora é tanta que ela chega a pensar que seria melhor ter morrido no lugar da irmã, só para chamar atenção. A extrema atenção dada ao seu filho, Henrique, é um processo de transferência fruto da ausência da figura materna ‘como mãe enquanto matriz, enquanto ser que gera e acolhe o filho’. A forma como Nora recebe o único bolo de chocolate mandado pela mãe, enquanto estava no internato, denuncia a necessidade do afeto materno: “Comia e chorava, engolia enormes bocados daquele doce como se quisesse enfiar minha mãe dentro de mim, para que fosse minha, para que me amasse, e me conhecesse. (AS, p. 62)
Após ouvir da mãe que sempre foi uma intrusa em sua vida, ela conversa com Olga, a irmã por parte de pai e tem a seguinte avaliação: “- Isso não é normal na sua idade /.../ Esse amor de criança carente na sua idade é coisa de psiquiatra. Vá se tratar, eu já disse (p.28). Nora fala que sempre se sentia desprotegida, já que o pai sempre dizia que “Elsa era uma grande mãe e [ela] a filha ingrata”. Olga conclui que o pai era “firme e lúcido, mas, quando se tratava de Elsa, ficava burro”. (p.29)

O Menino de “O ponto cego”, que se sentia rejeitado pelo pai, mas superprotegido pela mãe, na ausência desta, desabafa sua carência: “Tudo isso é muito triste sim. Choro sozinho no escuro de noite e não tenho por quem chamar, pois minha mãe, que hoje sonha com outro, já não virá me confortar. (PC p. 127) /.../ “O que vai ser de mim? Quem vai me dar colo de Mãe, quem vai me confortar e manter afastados os horrores todos? /.../ As Tias cacarejam ao meu redor, excitadas com a importância que de repente assumiram cuidando de mim, raro caso de dasarrumação do tempo”. (PC p. 151)

A maioria dos ‘filhos’, nos romances em foco, tiveram uma infância privada de amor; as mães, sempre ausentes por não terem ‘condições’ de assumir a maternidade, são, na maioria dos casos, incapazes de carinho ou atitudes mais afetivas. O pai, em vez de suprir a lacuna, geralmente se ausenta ou se comporta de forma muito rígida, propiciando o desenvolvimento da insegurança dos filhos que não sentem apoio na família. A consequência desse tipo de educação é a carência afetiva e a tendência natural a atrair relacionamentos igualmente confusos e insatisfatórios.


Conclusão

Em todos os romances de Lya Luft, a família aparece como propulsora dos desajustes dos filhos, que tendem a viver situações idênticas, quando têm um lar. A mulher aparece, na sua ficção, sempre inserida num contexto familiar patriarcal, vivendo “exilada, marginalizada à procura de formas de sobrevivência mediante satisfações substitutivas, ou então pela sublimação de suas perdas através da arte”, como Assinala Osana (2003 p.13). Em “As parceiras”, a própria narradora, Anelise, se considera de uma “família de perdedoras”. Sua irmã, Vânia, aceita, inclusive, como condição para casar-se, a opção de não ter filhos, para não “transmitir o legado da sua miséria”, como disse Brás Cubas um século antes.

Nas outros romances, “A asa esquerda do anjo” e “Reunião de família”, a personagem feminina continua submissa e insatisfeita; quando alguém rompe o cerco e se rebela, paga sempre um preço muito alto. Nos seguintes, “A sentinela”, “O quarto fechado”, “Exílio” e “O ponto cego”, as personagens femininas, além de não serem capazes de manter os relacionamentos afetivos com o parceiro, falham como mães, seja pela incapacidade de lidar com os problemas, seja pelo peso se um passado de opressão. Acabam, inevitavelmente, reproduzindo os desajustes de que foram vítimas na infância.

Os homens aparecem como figuras secundárias, mas não desvinculadas dos dramas familiares: Em “As parceiras”, “Reunião de família” e “O ponto cego” é o autoritarismo deles que gera toda a desarmonia. Já em “A sentinela” e “Exílio”, é passividade do homem/pai que intensifica o vazio do amor familiar, já que as mães, nesses dois romances, nada têm a dar aos filhos, tal como a Renata de “O ponto cego”.

Em todos os casos, a carência afetiva dos filhos é imensa e se reflete nos adultos em que se transformam, incapazes de amar inteiramente ou de serem generosos com o outro. A família é, pois, celeiro de autoritarismo, desarmonia e desafeto, quando não de rejeição, revelando a fragilidade do ser humano diante da vida e de si próprio.



Bibliografia

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BATISTA, Donizete A. Espaço e identidade em Lya Luft: Exílio. Dissertação de Metrado. UFPa, 2007. Disponível em: http://dspace.c3sl.ufpr.br:8080/dspace/bitstream/1884/13603/1/dissert_pdf.pdf. Acesso em 21/02/2009
COSTA, M. Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. Rio de Janeiro: Anablume, 2003
LUFT, Lya. Exílio. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987.
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LUFT, Lya. Reunião de família. São Paulo: Siciliano, 1991.
LUFT, Lya. A sentinela. São Paulo: Siciliano, 1994.
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LUFT, Lya. O ponto cego. São Paulo: Mandarim, 1999.
LUFT, Lya. As parceiras. Rio de Janeiro: Record, 2003.
LUFT, Lya. Mar de dentro. Rio de Janeiro: Record, 2004.
SALAZAR In: ABECHE, Regina Peres Christofoll e RODRIGUES, Alexandra Arnold. Família contemporânea: reflexo de um individualismo exacerbado? Disponível em: http://www.estadosgerais.org/encontro/IV/PT/trabalhos/Alexandra_Rodrigues_e_Regina_Abeche.pdf.Acesso em 21/03/2009
XAVIER, Elódia. Declínio do patriarcado: a família no imaginário feminino. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Ventos, 1998.

Cora Coralina: sua alma sua palma




Fontes constantes de inspiração de Cora Coralina, o cotidiano, as pessoas simples e as paisagens antigas, quase sempre marcadas pelo tempo, se afiguram como elementos-chave de sua produção literária. Percorrer a atmosfera dessa poética é o motivo central dessa edição.

O poema ´Cantoria´ é iniciado com os versos: ´Meti o peito em Goiás / e canto como ninguém. / Canto as pedras, / canto as águas, / e as lavadeiras, também´, uma afirmação de amor às coisas mais corriqueiras da terra, em que o eu lírico parece movido por um sentimento de posse que só os amantes nativos experimentam. A partir daí, tudo se faz motivo de louvação: a cidade com suas ´pedras´ e ´águas´, seus elementos atemporais; a paisagem que se delineia diante dos seus olhos, embora envelhecida. Nada foge ao apuro de sua sensibilidade: ´um velho quintal com murada de pedra´, ´um portão alto com escada caída´, ´a casinha velha´, os lagedos forrados de roupa quarando. Percebe-se, nessas imagens, a valorização do Goiás antigo, cuja simplicidade se apropria da emoção da poetisa. A colcha que cobre o lagedo está ´furada´, a casinha esta ´velha´, a escada ´caída´, criando uma ambiência cuja singeleza constitui a fonte de sua criação. Seu canto se dirige a pessoas simples, como as lavadeiras; ou socialmente excluídas como as mulheres da vida: ´canto /.../ as lavadeiras, também. / Cantei mulher da vida / conformando a vida dela´.

A restauração pelo poético
Ultrapassando o mero louvor, o eu lírico cria a promessa de solucionar possíveis males através da poesia: é o remendo para a colcha furada; é a conformidade com o destino para a mulher da vida. Canta, declaradamente, a cidade ´largada´, o ´burro de cangalha com lenha despejada´, ou seja, que já cumpriu sua função; ´as vacas que pastam no largo tombado´, em vão, certamente, porque, se tombado, o largo não tem pasto a oferecer. É pelo ´desvalido´ que ele se interessa: o velho, o largado, o pobre, o excluído (sejam coisas ou pessoas). Há, ainda, uma referência a ´ouro enterrado´, retomando a história das botijas perdidas, talvez da época dos cangaceiros, que o seu canto também promete desenterrar: ´Cantei ouro enterrado / querendo desenterrá´.

O ritmo é de cantoria, como o próprio título já anuncia; a linguagem está no nível coloquial (desenterrará) e o discurso flui como uma ´versejada´ despretensiosa, o que se estende até o final, que se dá com a despedida tradicional dos cantadores e versejadores populares: ´Por aqui vou ficando´, na expressão espontânea das pessoas simples.

No poema ´Todas as vidas´, em que o sujeito-poético revela as faces que coexistem em sua vida, a poeta se mostra, mais uma vez, irmanada às pessoas comuns com as quais se identifica: é a ´cabocla velha´ que benze quebranto; ´a lavadeira´ que cheira a sabão; a cozinheira que pisa o tempero; a mulher do povo que é ´casca grossa´ e tem muitos filhos, a ´roceira´, de pé no chão, boa parideira, a mulher da vida, a quem chama de irmã: ´Vive dentro de mim / a mulher da vida./ Minha irmãzinha.../ Tão desprezada.../ tão murmurada.../ Fingindo alegre / Seu triste fado´.

De acordo com Moisés (1996, p. 41): ´A poesia se identifica com a expressão do ´eu´ por meio de uma linguagem conotativa ou de metáforas polivalentes´. Esta afirmação nos remete imediatamente à palavra pedra, cuja significação múltipla evoca a idéia de permanência, atemporalidade, obstáculo ou rudimentarismo.

Quando, no poema Cantoria, o eu lírico celebra a ´murada de pedra´, sugere a pedra em sua idéia de resistência, permanência; um muro de pedra atravessa o tempo e se mantém, inexoravelmente, imutável.

A polivalência metafórica
Já a idéia da pedra como obstáculo, imortalizada por Carlos Drummond de Andrade (1977, p.12) no poema No meio do caminho (´No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho´) parece coadunar-se com as sugestões semânticas presentes nos versos de ´Das pedras´ : ´Ajuntei todas as pedras / que vieram sobre mim´, o que mostra a capacidade de Coralina para lidar com a polissemia do nosso léxico. Leiamos o poema na íntegra: (Texto I)

O eu lírico, ao dizer que ´ajuntou´ as pedras que se puseram sobre ele, parece confessar que foram muitas e duras as dificuldades encontradas na vida. Não obstante, ao acumulá-las, converteu-as numa ´escada´. Note-se a simbologia: os obstáculos promoveram o crescimento, a maturidade que permitiu a confecção de um ´tapete floreado´ e a possibilidade do sonho. Essa imagem vem reiterada nos versos: ´Minha vida.../ Quebrando pedras / e plantando flores´. Na confissão, não há lamento, só constatação de que os momentos ruins se alternam com os bons e, nessa dualidade, a vida se justifica. E se justifica, sobretudo, através da poesia que nasce e cresce ´entre pedras´, qual a flor de Drummond (1977, p. 78) que fura o asfalto (´A flor e a náusea´). O fenômeno da descoberta da poesia, a partir do inimaginável, confirma a idéia de uma vida de dificuldades (quebrando pedras) compensadas pelas grandes alegrias da simples existência (plantando flores).

A reflexão metalinguística do poema é bastante elucidativa do processo de criação da poeta, cuja poesia diz-se erigida ´entre pedras´. Outra vez destacamos a polivalência metafórica aludida no início dessa análise: ´crescer entre pedras´ tanto pode sugerir o objeto de inspiração: as casas, os muros, as pedras goianas; como pode conotar a idéia de que a poesia nasce da dor, do sofrimento diante das dificuldades e limitações: ´Entre pedras que me esmagavam / Levantei a pedra rude / dos meus versos´. A expressão ´a pedra rude dos meus versos´ parece definir sua poética como resistente, concreta, simples, desprovida de requintes. Esta acepção está presente igualmente no poema ´A educação pela pedra´, em que João Cabral de Melo Neto (1994 p.338) diz: ´Outra educação pela pedra: no Sertão / (de dentro para fora, é pré-didática) /.../ lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ uma pedra de nascença, entranha a alma´.

A idéia de permanência aparece quando, perdido no sonho, o eu lírico constrói tudo que precisa com a matéria da pedra, ou seja, com uma matéria imperecível, que durará para sempre: ´Uma estrada,/ um leito,/ uma casa, / um companheiro./ Tudo de pedra´.

Observe-se que, embora a multiplicidade semântica da palavra pedra seja evidente, no contexto da poesia de Cora Coralina ela jamais aparece com a significação de frieza, ausência de sentimentos. Conota, simultaneamente, a idéia de permanência, também de obstáculo e até mesmo de rudimentarismo, de primitivismo.

TRECHO

Texto I
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude.

FIQUE POR DENTRO

Um breve perfil da poetisa goiana
Cora Coralina é pseudônimo da dona-de-casa goiana Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, que, aos 76 anos, estreou na literatura, com o livro, " Poemas dos Becos de Goiás" (1965), retornando, assim, os pendores literários iniciados nos seus dois únicos anos de escola, que lhe valeram, aos 14 anos, a publicação do conto "Tragédia na Roça" no "Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás". Aos 20 anos, mudou-se para São Paulo, onde casou, criou os filhos; só retornou a Goiás já viúva, 45 anos depois, quando passou a viver da profissão de doceira. Após uma década de seu retorno, começou a publicar, finalmente os seus livros. Além de "Poemas de Becos", lançou:"Meu Livro de Cordel", "Vintém de Cobre", "Poema de Becos de Goiás" e "Estórias da Casa Velha da Polha", "Villa Boa de Goyaz".Edições Infantis: "A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu', "O Prato Azul Pombinho", "O s Meninos Verdes".


A reflexão metalinguística

O texto literário não constitui interesse exclusivo da crítica. Ele próprio tem-se debruçado sobre o fenômeno que o gera, como se cada escritor tivesse a premente necessidade de, através de sua obra, buscar uma definição para a poesia, ou revelar a plataforma estética da escola a que se filia ou, ainda, refletir, o seu processo criativo. Até os nossos dias, perdura essa necessidade de explicar a criação do texto dentro do próprio texto. Tal acontece também com Cora Coralina, mais enfaticamente ainda no poema ´Cora Coralina, quem é você?´. Nele, o eu lírico é assumido pela poeta que se coloca como sujeito da sua própria história. Após expor as suas origens, a forma como foi escolarizada, ela revela o processo criador de seus versos: ´Não escrevo jamais de forma / consciente e raciocinada, e sim / impelida por um impulso incontrolável´.

Pensando a poesia
Para a escritora goiana, a poesia é ´um impulso incontrolável´, é uma necessidade vital. A plataforma estética parnasiana, que impõe a criação como um trabalho artesanal, reproduzida pela geração modernista de 45, está fora de seu processo criativo, já que sua obra é confessadamente intuitiva. Ela tem consciência dessa necessidade como uma característica inata, embora o meio e as circunstâncias de sua vida não tenham sido favoráveis: ´Nasci para escrever, mas o meio, / o tempo, as criaturas e fatores outros, / contramarcaram minha vida´. As obrigações, a família e a sociedade sufocaram sua vocação: ´Nunca recebi estímulos familiares para ser literata. / Sempre houve na família, senão uma / hostilidade, pelo menos uma reserva determinada / a essa minha tendência inata´.

Mas tais adversidades não impediram que a poesia aflorasse em sua maturidade, desta feita, como um ´impulso incontrolável´, cuja fonte não foi capaz mais de estancar. Com todos os impedimentos e preconceitos difíceis de superar, ela, sofrida com as tentativas de aplacar o dom, chegou a desejar nunca tê-lo possuído: ´Talvez, por tudo isso e muito mais, / sinta dentro de mim, no fundo dos meus / reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo./ Sobrevivi, me recompondo aos / bocados, à dura compreensão dos / rígidos preconceitos do passado´.

O preconceito, marca indelével de sua geração, agrava-se pelo fato de ser ela uma mulher, de classe média baixa, interiorana. Escolada pela vida, ela mostra como transpôs as barreiras: ´A escola me suplementou / as deficiências da escola primária / que outras o destino não me deu./.../ Foi assim que cheguei a esse livro / sem referências a mencionar´.

Como se vê, ela nada ambicionava (´Nenhum primeiro prêmio/nenhum segundo lugar/Nem Menção Honrosa/Nenhuma Láurea´), senão a libertação do seu dom. Sem conhecimento das técnicas da produção literária, sua criação flui de uma expansão existencial indispensável à sua sobrevivência, espontânea e sem quaisquer ornamentos.

As pedras do caminho
Quando falamos, há pouco, sobre a polivalência das metáforas, enfocamos a multiplicidade semântica da palavra ´pedra´, que aqui retomamos ao explorar a função metapoética do texto ´Das pedras´, em que se percebe a afirmação de que sua poesia cresceu ´entre pedras´. Mais uma vez ela revela os obstáculos encontrados para realizar sua arte, já que os preconceitos ´de classe, de cor e de família, econômicos e sociais´ se estabeleceram como barreiras, cuja transposição só foi possível de se dar pela experiência (escola da vida) e pela maturidade.

Assim, sua poesia nasce ´entre pedras que (a) esmagavam´ como uma forma de evasão às intempéries de uma vida de limitações impostas a um espírito que ansiava o vôo. Ela, já dona de sua vontade e senhora de seu dom, diz: ´Entre pedras que me esmagavam / Levantei a pedra rude / dos meus versos´.

Vencendo as incômodas dificuldades, ´levanta´, ou seja, cria, como num ato triunfal, o seu verso, ao qual é atribuída a qualificação de ´pedra rude´. Nesse qualificativo, percebe-se a clara consciência de que sua poesia é simples como sua criadora; rudimentar e primitiva, sem aparatos estéticos e sem técnica de elaboração, esculpida apenas da alma. Pode-se, ainda, inferir a idéia de permanência: sua poesia perdurará por gerações e gerações (como a pedra), como já se leu no poema anterior.

O tom prosaico
Embora desvinculada de qualquer corrente estética, Cora Coralina produziu suas obras durante a transição entre os estilos moderno e pós-moderno. Mesmo sem seguir tendências, ela aprimora características presentes na primeira geração modernista, continuadas pelos poetas pós-modernos: o estreitamento entre as fronteiras que separam os gêneros, sobretudo a prosa e a poesia. Ela constrói seus poemas, como já dissemos, em versos livres, assimétricos, com estrofes heterogêneas, e assume um tom prosaico, notadamente no poema ´A casa do berço azul´.

O eu lírico assume a condição de narrador e conta a história de Dona Marcionilha e Seu Chico Fiscal, um típico casal interiorano, de vida farta e pacata, que nunca se negava ´a fecundidade modesta, tranquila e consciente´. Vejamos como os versos se constroem em ritmo de prosa: (Texto II)

O eu lírico verseja como se conversasse com o leitor, como se contasse uma história, sem qualquer preocupação formal de harmonizar os versos ou construir rimas. De acordo com ele, tratava-se de gente sua, boa de coração, a quem no passado visitava em casa (na casa do berço azul) que, no presente, em seu retorno à cidade, já não reencontra.

Leitura do poema
Depois de tanto perguntar onde fica a casa e só ouvir respostas evasivas de que não a conhecem, o sujeito poético recebe, finalmente, a declaração de que a casa não existe mais. A voz indica, assim, um caminho inusitado - ´lá bem no alto, de onde se avista a cidade /.../ um portão largo, sempre aberto´ - como a indicar o cemitério, onde devem repousar seus velhos amigos (os donos da tal casa).

Observe-se que, embora o poema se inicie com o verbo no pretérito imperfeito (era/gostavam), termina no tempo presente - imperativo (olha), como a dar notação temporal ao discurso poético: ´Era a casa deles. / Gostavam de flores, de vasos e de roseiras. /.../ Olha, sobe, vai caminhando, cruza ruas e avenidas´.

Moisés (1996, p. 43), entretanto, assinala que ´a poesia não se prende a dimensões de tempo, não se apresenta numa ordem temporal /.../ as emoções, os sentimentos e os conceitos /.../ ignoram qualquer sucessividade análoga ao tempo no relógio .../ apenas se arquitetam conforme um nexo psicológico ou inerente à própria poesia /.../ um nexo emotivo-sentimental-conceptual´.

De fato, o sujeito poético, num lapso temporal, depois de anos distante, volta à sua terra e, como se nada tivesse mudado, procura a casa de seus amigos - A casa do berço azul - assim conhecida porque durante longos períodos, nascia um menino quase todos os anos (Só três vezes o berço mudou para a cor rosa quando nasceram as três meninas). Praticamente ninguém conhece a casa por essa referência. Só uma senhora com os ´cabelos grisalhando´, ou seja, envelhecida, testemunha, portanto, da passagem do tempo, entende a indagação e sugere estarem mortos ao indicar o caminho do cemitério. Antes, porém, ela aconselha: ´Não procures jamais o passado no presente´.

Embora narrativo, o poema não traz nominado o espaço físico, dispensando o elemento como essencial. São a ´inespacialidade´, a ´intemporalidade´ e a ´a-histoticidade´ que se configuram e caracterizam, segundo Moisés (1996, p.45) a verdadeira poesia.

O Memorialismo
Por ter sido uma escritora que iniciou sua produção literária na idade madura, após a possibilidade de transpor as tantas barreiras e os tantos preconceitos, quando os afluentes da emoção estavam já todos descobertos, Cora Coralina abre veredas para o seu passado, sempre numa tentativa de revelação e desnudamento de sua alma: ´Sou mulher como outra qualquer. / Venho do século passado / e trago comigo todas as idades´.

Na sua simplicidade, embora admita sua veia poética, ela se veste com o eu lírico para dizer que é uma pessoa comum, como qualquer outra. A maturidade, confessada no nascimento no século XIX, traz consigo todas as idades. É a senhora-mulher-menina que jamais abandonou as fases de sua vida; acumulou-as e as fez coexistirem na idade madura. A origem modesta, ´numa rebaixa de serra /.../ longe do todos os lugares´, justifica as dificuldades sociais e mesmo geográficas para desenvolver seu dom. Segundo Campos (1992, p. 83), ´Todo texto autobiográfico é o resultado de algum tipo de necessidade ou demanda interior do escritor´. De fato, quem escreve as suas próprias memórias, seja narrativa ou poesia, o faz por uma necessidade de expressar-se ou, ainda, perpetuar a própria história. Assim, a sua poesia decorre de um anseio por uma comunicação com um mundo que não a viu, mas poderá vê-la por meio de suas palavras. Mesmo ´fechada dentro da imensa serrania´, sua prisão geográfica, mesmo presa aos preconceitos que a cercavam ela: ´ uma ânsia de vida /.../ abria / o vôo nas asas impossíveis / do sonho´.

Ela recupera, também, a memória do seu tempo, assim: ´Venho do século passado [entenda-se século XIX] / Pertenço a uma geração / ponte entre a libertação / dos escravos e o trabalhador livre./ Entre a monarquia / caída e a república / que se instalava´

TRECHO

Texto II
Era a casa deles.
Gostavam de flores, de vasos e de roseiras.
de fruteiras fartas e escolhidas

[...]
De dois em dois anos descia do alto da parede da despensa,
onde ficava ancorado,
o barquinho de uma nova vida,
prestes a chegar.

[...]
Pela casa, panos macios, flanelas,claros agasalhos, camisinhas, bordados delicados...
(p. 33)

Por entre as veredas da memória

Eu lírico confessa ter vivido o momento limite entre a libertação dos escravos e o advento da classe operária, final do século XIX, já que a extinção do tráfico negreiro deu-se em 1850, antecedida pelo Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels, cujas idéias propiciaram o surgimento de uma nova classe: o operário que trabalhava em troca de um salário. A Lei Áurea, entretanto, só seria assinada em 1888. Ele também afirma ter vivido a transição entre a Monarquia e a República, que remonta, basicamente, ao mesmo período. Assinalando seu grau de maturidade, ela repudia o passado histórico escravista e estende a ´escravidão´ para outros âmbitos da sociedade, como a escola, os quartéis e a família, onde as crianças não tinham direito a voz: ´A criança não tinha vez, / os adultos eram sádicos / aplicavam castigos humilhantes´.

Segundo diz, vem de um passado ´rançoso´, herança certa da escravatura, que se realizou com ´a brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo´ em todos os segmentos sociais, como falamos. Repudiando o passado histórico, repudia todo tipo de opressão.

O sujeito poético, após comentar a educação rígida que recebeu, fala de sua pouca e ultrapassada escolaridade, já que estudou por métodos antiquados e livros superados: ´Tive uma velha mestra que já / havia ensinado uma geração / antes da minha. / Os métodos de ensino eram / antiquados e aprendi as letras / em livros superados de que / ninguém mais fala´.

Os corredores da memória
No mesmo esteio memorialístico, fala de sua preferência pelas palavras (em detrimento dos números), inclusive tentando justificar: ´Nunca os algarismos me / entraram no entendimento. / De certo pela pobreza que marcaria / para sempre minha vida. / Precisei pouco de números´. Como se constata, o passado pobre e pleno de limitações, a distância entre o ´seu´ tempo e o tempo em que aflorou sua poesia parecem marcas profundas, cujas cicatrizares precisaram emergir em forma de versos.

Também no poema ´Minha vida´, o eu poético tece o fio da própria história, desde o nascimento ´Num ano longínquo, numa cidade distante, num dia incerto de um mês aziago´ até a ´chama viva´ e a ´cinza morta´, marcas do seu Destino, que faz questão de grafar com letra inicial maiúscula, numa tentativa de personificação e ênfase, como faziam, do mesmo modo, os poetas Simbolistas.

É incontestável a presença do passado, de sua origem humilhe e desprovida até de certezas, sem dia certo, num mês de mau agouro, como um sinal definitivo cravado em sua vida, cunhado no sangue e na alma. É de tal forma que, no ato de seu nascimento, diz, portanto, que ´O Destino /.../ moveu-se invisível e depôs sua dádiva na cabeça da criança, simbolizada numa chama viva e num punhado de cinza´.

Pode-se perfeitamente inferir que a criança é a própria Cora, já que o título da poesia traz toda a elucidação: ´minha vida´, seu memorial. A ´chama´ e a ´cinza´, ungidas em sua testa no batismo feito pelo Destino, acompanharam-na em todo o seu percurso: ´chama´, símbolo de vida, ardência; ´cinza´: sobra, resíduo, fim.

A sinceridade do eu poético vislumbra a construção da imagem do criador como um ser tão simples e verdadeiro como o poema que cria. E aí está o caráter memorialista, autobiográfico que, segundo Campos (1992 p.37), deve ´expressar a boa-fé de seu autor em dizer a verdade, ou seja, em ser sincero´. Claro que essa verdade vem com a interferência de um tempo decorrido, atualizada pelas vivências da voz que rememora, como já dissemos acima. Independente da relatividade do conceito de verdade, a poesia de Cora não tem máscaras nem subterfúgios, nenhum ardil, nenhuma esquivança. Nem na forma, nem no conteúdo.

A domesticidade da Mulher
No poema ´Cora Coralina, quem é você?´, o eu poético revela-se claramente como uma mulher ´mais doméstica do que intelectual´e, sem qualquer travo de mágoa, revela: ´Sou mais doceira e cozinheira / do que escritora, sendo a culinária / a mais nobre de todas as Artes; / objetiva, concreta, jamais abstrata / a que está ligada à vida e / à saúde humana´. Mesmo com toda o vigor da Revolução Feminista, fermentada sobretudo nos anos 60, algumas mulheres, inclusive intelectuais, demonstraram que poderiam ser felizes como donas-de-casa, utilizando suas vivências nesse espaço como inspiração para seus textos literários.

Vejamos como Adélia Prado, poeta mineira de geração posterior à Cora, tem visão de mundo idêntica no que se refere à domesticidade da mulher, especialmente no poema ´Casamento´: ´Há mulheres que dizem: / Meu marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes. / Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, / ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar´.

Adélia, como Cora, trabalha como uma tendência nova no lirismo contemporâneo: a transfiguração do prosaico, do cotidiano, em poético. A recusa da mulher, que aparece esporadicamente na obra das duas poetas, não é às atividades do lar, mas a qualquer tipo de opressão. Cora, como viveu numa época em que a mulher era um ser ´inferior´, nascida para cuidar da casa, dos filhos e servir ao marido, traz a marca de um tempo em que não poderia ter vez nem voz. Daí a memória de tantos preconceitos e limitações. Daí uma poesia tão confessional, expressão de sua necessidade de gritar ao mundo sua existência sufocada.

Teia de conflitos
De acordo com Xavier (1988, p.116), é constante a tematização dos conflitos familiares na literatura brasileira, a partir do Modernismo. Tal se dá, segundo a estudiosa, por ´motivos óbvios: sofrendo a mulher, de forma mais aguda, os efeitos repressivos do processo de socialização, processo este primordialmente familiar, o texto produzido por mulheres traz a marca dessa repressão. A família de origem, muitas vezes, é a responsável pelos dramas vividos na fase adulta e a liberação feminina esbarra na tirania familiar´.

O eu poético de Cora fala dessa repressão ao dar testemunho de seu tempo, bem próximo ao da escravidão. Diz, inclusive, no poema Cora Coralina, quem é você? que a família tinha ´uma reserva determinada a essa minha tendência inata /.../ Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado´ , os quais cita tacitamente: ´Preconceitos de classe / Preconceitos de cor e de família. / Preconceitos econômicos. / Férreos preconceitos sociais´.

Embora esteja evidente essa denúncia dos ´fatores que contramarcaram sua vida´, impedindo-a de deixar aflorar seu dom, ela, através do eu lírico, não demonstra nenhuma reserva às tarefas de dona-de-casa. Como Adélia Prado, até se mostra afeita a tais atividades: ´Vive dentro de mim / a mulher cozinheira. / Pimenta e cebola. / Quitute bem feito. / Panela de barro / Taipa de lenha. / Cozinha antiga / toda pretinha´.

Essa aceitação de suas obrigações domésticas não a impediu, entretanto, de ter uma vida interior muito rica, não permitiu que ela sucumbisse à superficialidade que seria natural para uma mulher criada e educada nas condições em que ela foi. No poema ´Todas as vidas´, o eu lírico assume várias feições, revelando, assim, a multiplicidade de seres e universos que povoavam as suas vivências e mexiam com a sua sensibilidade: (Texto III)

O eu e o outro
O sujeito poético parece se multiplicar em várias mulheres, todas criaturas de vida simples e sacrificadas. No seu dia-a-dia, todas essas vidas são suas e têm o seu mesmo rosto, já que se desdobra para cumprir seus deveres, sem lamentação. Afinal, como se lê no poema ´Cora Coralina, quem é você?´, ela, Cora, ´é mais doméstica do que intelectual´, sem ranço ou mágoa; ambas as faces coexistem e cada uma desenvolve sua arte: a Culinária (a mais nobre de todas as Artes´) e a Poesia (sua forma de sobrevivência existencial).

Observe-se a presença do paralelismo sintático na repetição constante do verso ´Vive dentro de mim´, como a reforçar que todo esse universo múltiplo de mulheres não lhe é exterior, é ela própria em todas as suas formas inesgotáveis de vida. Isso, por si, já justifica, assim, toda a sua poesia.

É nesse revelar-se que a poeta fala de sua terra, de sua gente e de si mesma, em versos de catarse, eivados na simplicidade de sua condição intelectual e na sua grandeza com ser humano, como mulher que transcendeu barreiras geográficas, sociais e existenciais, sem medo de mostrar, a flor dos olhos e das palavras, sua alma.

TRECHO

Texto III

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado

[...]

Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho

[...]

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.

[...]

Vive dentro de mim
a mulher do povo
bem proletária

[...]

Vive dentro de mim
a mulher roceira

[...]
Vive dentro de mim
a mulher da vida

SAIBA MAIS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977

CAMPOS, Marta. O desejo e a morte nas Memórias de Pedro Nava. Fortaleza: UFC, 1992

CORALINA, Cora. Poemas do becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global editora, 1983

MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1996


AÍLA SAMPAIO*
Colaboradora
* Professora da Unifor

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