quinta-feira, 26 de março de 2009

Cora Coralina: sua alma sua palma




Fontes constantes de inspiração de Cora Coralina, o cotidiano, as pessoas simples e as paisagens antigas, quase sempre marcadas pelo tempo, se afiguram como elementos-chave de sua produção literária. Percorrer a atmosfera dessa poética é o motivo central dessa edição.

O poema ´Cantoria´ é iniciado com os versos: ´Meti o peito em Goiás / e canto como ninguém. / Canto as pedras, / canto as águas, / e as lavadeiras, também´, uma afirmação de amor às coisas mais corriqueiras da terra, em que o eu lírico parece movido por um sentimento de posse que só os amantes nativos experimentam. A partir daí, tudo se faz motivo de louvação: a cidade com suas ´pedras´ e ´águas´, seus elementos atemporais; a paisagem que se delineia diante dos seus olhos, embora envelhecida. Nada foge ao apuro de sua sensibilidade: ´um velho quintal com murada de pedra´, ´um portão alto com escada caída´, ´a casinha velha´, os lagedos forrados de roupa quarando. Percebe-se, nessas imagens, a valorização do Goiás antigo, cuja simplicidade se apropria da emoção da poetisa. A colcha que cobre o lagedo está ´furada´, a casinha esta ´velha´, a escada ´caída´, criando uma ambiência cuja singeleza constitui a fonte de sua criação. Seu canto se dirige a pessoas simples, como as lavadeiras; ou socialmente excluídas como as mulheres da vida: ´canto /.../ as lavadeiras, também. / Cantei mulher da vida / conformando a vida dela´.

A restauração pelo poético
Ultrapassando o mero louvor, o eu lírico cria a promessa de solucionar possíveis males através da poesia: é o remendo para a colcha furada; é a conformidade com o destino para a mulher da vida. Canta, declaradamente, a cidade ´largada´, o ´burro de cangalha com lenha despejada´, ou seja, que já cumpriu sua função; ´as vacas que pastam no largo tombado´, em vão, certamente, porque, se tombado, o largo não tem pasto a oferecer. É pelo ´desvalido´ que ele se interessa: o velho, o largado, o pobre, o excluído (sejam coisas ou pessoas). Há, ainda, uma referência a ´ouro enterrado´, retomando a história das botijas perdidas, talvez da época dos cangaceiros, que o seu canto também promete desenterrar: ´Cantei ouro enterrado / querendo desenterrá´.

O ritmo é de cantoria, como o próprio título já anuncia; a linguagem está no nível coloquial (desenterrará) e o discurso flui como uma ´versejada´ despretensiosa, o que se estende até o final, que se dá com a despedida tradicional dos cantadores e versejadores populares: ´Por aqui vou ficando´, na expressão espontânea das pessoas simples.

No poema ´Todas as vidas´, em que o sujeito-poético revela as faces que coexistem em sua vida, a poeta se mostra, mais uma vez, irmanada às pessoas comuns com as quais se identifica: é a ´cabocla velha´ que benze quebranto; ´a lavadeira´ que cheira a sabão; a cozinheira que pisa o tempero; a mulher do povo que é ´casca grossa´ e tem muitos filhos, a ´roceira´, de pé no chão, boa parideira, a mulher da vida, a quem chama de irmã: ´Vive dentro de mim / a mulher da vida./ Minha irmãzinha.../ Tão desprezada.../ tão murmurada.../ Fingindo alegre / Seu triste fado´.

De acordo com Moisés (1996, p. 41): ´A poesia se identifica com a expressão do ´eu´ por meio de uma linguagem conotativa ou de metáforas polivalentes´. Esta afirmação nos remete imediatamente à palavra pedra, cuja significação múltipla evoca a idéia de permanência, atemporalidade, obstáculo ou rudimentarismo.

Quando, no poema Cantoria, o eu lírico celebra a ´murada de pedra´, sugere a pedra em sua idéia de resistência, permanência; um muro de pedra atravessa o tempo e se mantém, inexoravelmente, imutável.

A polivalência metafórica
Já a idéia da pedra como obstáculo, imortalizada por Carlos Drummond de Andrade (1977, p.12) no poema No meio do caminho (´No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho´) parece coadunar-se com as sugestões semânticas presentes nos versos de ´Das pedras´ : ´Ajuntei todas as pedras / que vieram sobre mim´, o que mostra a capacidade de Coralina para lidar com a polissemia do nosso léxico. Leiamos o poema na íntegra: (Texto I)

O eu lírico, ao dizer que ´ajuntou´ as pedras que se puseram sobre ele, parece confessar que foram muitas e duras as dificuldades encontradas na vida. Não obstante, ao acumulá-las, converteu-as numa ´escada´. Note-se a simbologia: os obstáculos promoveram o crescimento, a maturidade que permitiu a confecção de um ´tapete floreado´ e a possibilidade do sonho. Essa imagem vem reiterada nos versos: ´Minha vida.../ Quebrando pedras / e plantando flores´. Na confissão, não há lamento, só constatação de que os momentos ruins se alternam com os bons e, nessa dualidade, a vida se justifica. E se justifica, sobretudo, através da poesia que nasce e cresce ´entre pedras´, qual a flor de Drummond (1977, p. 78) que fura o asfalto (´A flor e a náusea´). O fenômeno da descoberta da poesia, a partir do inimaginável, confirma a idéia de uma vida de dificuldades (quebrando pedras) compensadas pelas grandes alegrias da simples existência (plantando flores).

A reflexão metalinguística do poema é bastante elucidativa do processo de criação da poeta, cuja poesia diz-se erigida ´entre pedras´. Outra vez destacamos a polivalência metafórica aludida no início dessa análise: ´crescer entre pedras´ tanto pode sugerir o objeto de inspiração: as casas, os muros, as pedras goianas; como pode conotar a idéia de que a poesia nasce da dor, do sofrimento diante das dificuldades e limitações: ´Entre pedras que me esmagavam / Levantei a pedra rude / dos meus versos´. A expressão ´a pedra rude dos meus versos´ parece definir sua poética como resistente, concreta, simples, desprovida de requintes. Esta acepção está presente igualmente no poema ´A educação pela pedra´, em que João Cabral de Melo Neto (1994 p.338) diz: ´Outra educação pela pedra: no Sertão / (de dentro para fora, é pré-didática) /.../ lá não se aprende a pedra: lá a pedra,/ uma pedra de nascença, entranha a alma´.

A idéia de permanência aparece quando, perdido no sonho, o eu lírico constrói tudo que precisa com a matéria da pedra, ou seja, com uma matéria imperecível, que durará para sempre: ´Uma estrada,/ um leito,/ uma casa, / um companheiro./ Tudo de pedra´.

Observe-se que, embora a multiplicidade semântica da palavra pedra seja evidente, no contexto da poesia de Cora Coralina ela jamais aparece com a significação de frieza, ausência de sentimentos. Conota, simultaneamente, a idéia de permanência, também de obstáculo e até mesmo de rudimentarismo, de primitivismo.

TRECHO

Texto I
Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.
Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.
Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.
Entre pedras que me esmagavam
Levantei a pedra rude.

FIQUE POR DENTRO

Um breve perfil da poetisa goiana
Cora Coralina é pseudônimo da dona-de-casa goiana Anna Lins dos Guimarães Peixoto Brêtas, que, aos 76 anos, estreou na literatura, com o livro, " Poemas dos Becos de Goiás" (1965), retornando, assim, os pendores literários iniciados nos seus dois únicos anos de escola, que lhe valeram, aos 14 anos, a publicação do conto "Tragédia na Roça" no "Anuário Histórico e Geográfico do Estado de Goiás". Aos 20 anos, mudou-se para São Paulo, onde casou, criou os filhos; só retornou a Goiás já viúva, 45 anos depois, quando passou a viver da profissão de doceira. Após uma década de seu retorno, começou a publicar, finalmente os seus livros. Além de "Poemas de Becos", lançou:"Meu Livro de Cordel", "Vintém de Cobre", "Poema de Becos de Goiás" e "Estórias da Casa Velha da Polha", "Villa Boa de Goyaz".Edições Infantis: "A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu', "O Prato Azul Pombinho", "O s Meninos Verdes".


A reflexão metalinguística

O texto literário não constitui interesse exclusivo da crítica. Ele próprio tem-se debruçado sobre o fenômeno que o gera, como se cada escritor tivesse a premente necessidade de, através de sua obra, buscar uma definição para a poesia, ou revelar a plataforma estética da escola a que se filia ou, ainda, refletir, o seu processo criativo. Até os nossos dias, perdura essa necessidade de explicar a criação do texto dentro do próprio texto. Tal acontece também com Cora Coralina, mais enfaticamente ainda no poema ´Cora Coralina, quem é você?´. Nele, o eu lírico é assumido pela poeta que se coloca como sujeito da sua própria história. Após expor as suas origens, a forma como foi escolarizada, ela revela o processo criador de seus versos: ´Não escrevo jamais de forma / consciente e raciocinada, e sim / impelida por um impulso incontrolável´.

Pensando a poesia
Para a escritora goiana, a poesia é ´um impulso incontrolável´, é uma necessidade vital. A plataforma estética parnasiana, que impõe a criação como um trabalho artesanal, reproduzida pela geração modernista de 45, está fora de seu processo criativo, já que sua obra é confessadamente intuitiva. Ela tem consciência dessa necessidade como uma característica inata, embora o meio e as circunstâncias de sua vida não tenham sido favoráveis: ´Nasci para escrever, mas o meio, / o tempo, as criaturas e fatores outros, / contramarcaram minha vida´. As obrigações, a família e a sociedade sufocaram sua vocação: ´Nunca recebi estímulos familiares para ser literata. / Sempre houve na família, senão uma / hostilidade, pelo menos uma reserva determinada / a essa minha tendência inata´.

Mas tais adversidades não impediram que a poesia aflorasse em sua maturidade, desta feita, como um ´impulso incontrolável´, cuja fonte não foi capaz mais de estancar. Com todos os impedimentos e preconceitos difíceis de superar, ela, sofrida com as tentativas de aplacar o dom, chegou a desejar nunca tê-lo possuído: ´Talvez, por tudo isso e muito mais, / sinta dentro de mim, no fundo dos meus / reservatórios secretos, um vago desejo de analfabetismo./ Sobrevivi, me recompondo aos / bocados, à dura compreensão dos / rígidos preconceitos do passado´.

O preconceito, marca indelével de sua geração, agrava-se pelo fato de ser ela uma mulher, de classe média baixa, interiorana. Escolada pela vida, ela mostra como transpôs as barreiras: ´A escola me suplementou / as deficiências da escola primária / que outras o destino não me deu./.../ Foi assim que cheguei a esse livro / sem referências a mencionar´.

Como se vê, ela nada ambicionava (´Nenhum primeiro prêmio/nenhum segundo lugar/Nem Menção Honrosa/Nenhuma Láurea´), senão a libertação do seu dom. Sem conhecimento das técnicas da produção literária, sua criação flui de uma expansão existencial indispensável à sua sobrevivência, espontânea e sem quaisquer ornamentos.

As pedras do caminho
Quando falamos, há pouco, sobre a polivalência das metáforas, enfocamos a multiplicidade semântica da palavra ´pedra´, que aqui retomamos ao explorar a função metapoética do texto ´Das pedras´, em que se percebe a afirmação de que sua poesia cresceu ´entre pedras´. Mais uma vez ela revela os obstáculos encontrados para realizar sua arte, já que os preconceitos ´de classe, de cor e de família, econômicos e sociais´ se estabeleceram como barreiras, cuja transposição só foi possível de se dar pela experiência (escola da vida) e pela maturidade.

Assim, sua poesia nasce ´entre pedras que (a) esmagavam´ como uma forma de evasão às intempéries de uma vida de limitações impostas a um espírito que ansiava o vôo. Ela, já dona de sua vontade e senhora de seu dom, diz: ´Entre pedras que me esmagavam / Levantei a pedra rude / dos meus versos´.

Vencendo as incômodas dificuldades, ´levanta´, ou seja, cria, como num ato triunfal, o seu verso, ao qual é atribuída a qualificação de ´pedra rude´. Nesse qualificativo, percebe-se a clara consciência de que sua poesia é simples como sua criadora; rudimentar e primitiva, sem aparatos estéticos e sem técnica de elaboração, esculpida apenas da alma. Pode-se, ainda, inferir a idéia de permanência: sua poesia perdurará por gerações e gerações (como a pedra), como já se leu no poema anterior.

O tom prosaico
Embora desvinculada de qualquer corrente estética, Cora Coralina produziu suas obras durante a transição entre os estilos moderno e pós-moderno. Mesmo sem seguir tendências, ela aprimora características presentes na primeira geração modernista, continuadas pelos poetas pós-modernos: o estreitamento entre as fronteiras que separam os gêneros, sobretudo a prosa e a poesia. Ela constrói seus poemas, como já dissemos, em versos livres, assimétricos, com estrofes heterogêneas, e assume um tom prosaico, notadamente no poema ´A casa do berço azul´.

O eu lírico assume a condição de narrador e conta a história de Dona Marcionilha e Seu Chico Fiscal, um típico casal interiorano, de vida farta e pacata, que nunca se negava ´a fecundidade modesta, tranquila e consciente´. Vejamos como os versos se constroem em ritmo de prosa: (Texto II)

O eu lírico verseja como se conversasse com o leitor, como se contasse uma história, sem qualquer preocupação formal de harmonizar os versos ou construir rimas. De acordo com ele, tratava-se de gente sua, boa de coração, a quem no passado visitava em casa (na casa do berço azul) que, no presente, em seu retorno à cidade, já não reencontra.

Leitura do poema
Depois de tanto perguntar onde fica a casa e só ouvir respostas evasivas de que não a conhecem, o sujeito poético recebe, finalmente, a declaração de que a casa não existe mais. A voz indica, assim, um caminho inusitado - ´lá bem no alto, de onde se avista a cidade /.../ um portão largo, sempre aberto´ - como a indicar o cemitério, onde devem repousar seus velhos amigos (os donos da tal casa).

Observe-se que, embora o poema se inicie com o verbo no pretérito imperfeito (era/gostavam), termina no tempo presente - imperativo (olha), como a dar notação temporal ao discurso poético: ´Era a casa deles. / Gostavam de flores, de vasos e de roseiras. /.../ Olha, sobe, vai caminhando, cruza ruas e avenidas´.

Moisés (1996, p. 43), entretanto, assinala que ´a poesia não se prende a dimensões de tempo, não se apresenta numa ordem temporal /.../ as emoções, os sentimentos e os conceitos /.../ ignoram qualquer sucessividade análoga ao tempo no relógio .../ apenas se arquitetam conforme um nexo psicológico ou inerente à própria poesia /.../ um nexo emotivo-sentimental-conceptual´.

De fato, o sujeito poético, num lapso temporal, depois de anos distante, volta à sua terra e, como se nada tivesse mudado, procura a casa de seus amigos - A casa do berço azul - assim conhecida porque durante longos períodos, nascia um menino quase todos os anos (Só três vezes o berço mudou para a cor rosa quando nasceram as três meninas). Praticamente ninguém conhece a casa por essa referência. Só uma senhora com os ´cabelos grisalhando´, ou seja, envelhecida, testemunha, portanto, da passagem do tempo, entende a indagação e sugere estarem mortos ao indicar o caminho do cemitério. Antes, porém, ela aconselha: ´Não procures jamais o passado no presente´.

Embora narrativo, o poema não traz nominado o espaço físico, dispensando o elemento como essencial. São a ´inespacialidade´, a ´intemporalidade´ e a ´a-histoticidade´ que se configuram e caracterizam, segundo Moisés (1996, p.45) a verdadeira poesia.

O Memorialismo
Por ter sido uma escritora que iniciou sua produção literária na idade madura, após a possibilidade de transpor as tantas barreiras e os tantos preconceitos, quando os afluentes da emoção estavam já todos descobertos, Cora Coralina abre veredas para o seu passado, sempre numa tentativa de revelação e desnudamento de sua alma: ´Sou mulher como outra qualquer. / Venho do século passado / e trago comigo todas as idades´.

Na sua simplicidade, embora admita sua veia poética, ela se veste com o eu lírico para dizer que é uma pessoa comum, como qualquer outra. A maturidade, confessada no nascimento no século XIX, traz consigo todas as idades. É a senhora-mulher-menina que jamais abandonou as fases de sua vida; acumulou-as e as fez coexistirem na idade madura. A origem modesta, ´numa rebaixa de serra /.../ longe do todos os lugares´, justifica as dificuldades sociais e mesmo geográficas para desenvolver seu dom. Segundo Campos (1992, p. 83), ´Todo texto autobiográfico é o resultado de algum tipo de necessidade ou demanda interior do escritor´. De fato, quem escreve as suas próprias memórias, seja narrativa ou poesia, o faz por uma necessidade de expressar-se ou, ainda, perpetuar a própria história. Assim, a sua poesia decorre de um anseio por uma comunicação com um mundo que não a viu, mas poderá vê-la por meio de suas palavras. Mesmo ´fechada dentro da imensa serrania´, sua prisão geográfica, mesmo presa aos preconceitos que a cercavam ela: ´ uma ânsia de vida /.../ abria / o vôo nas asas impossíveis / do sonho´.

Ela recupera, também, a memória do seu tempo, assim: ´Venho do século passado [entenda-se século XIX] / Pertenço a uma geração / ponte entre a libertação / dos escravos e o trabalhador livre./ Entre a monarquia / caída e a república / que se instalava´

TRECHO

Texto II
Era a casa deles.
Gostavam de flores, de vasos e de roseiras.
de fruteiras fartas e escolhidas

[...]
De dois em dois anos descia do alto da parede da despensa,
onde ficava ancorado,
o barquinho de uma nova vida,
prestes a chegar.

[...]
Pela casa, panos macios, flanelas,claros agasalhos, camisinhas, bordados delicados...
(p. 33)

Por entre as veredas da memória

Eu lírico confessa ter vivido o momento limite entre a libertação dos escravos e o advento da classe operária, final do século XIX, já que a extinção do tráfico negreiro deu-se em 1850, antecedida pelo Manifesto Comunista (1848) de Marx e Engels, cujas idéias propiciaram o surgimento de uma nova classe: o operário que trabalhava em troca de um salário. A Lei Áurea, entretanto, só seria assinada em 1888. Ele também afirma ter vivido a transição entre a Monarquia e a República, que remonta, basicamente, ao mesmo período. Assinalando seu grau de maturidade, ela repudia o passado histórico escravista e estende a ´escravidão´ para outros âmbitos da sociedade, como a escola, os quartéis e a família, onde as crianças não tinham direito a voz: ´A criança não tinha vez, / os adultos eram sádicos / aplicavam castigos humilhantes´.

Segundo diz, vem de um passado ´rançoso´, herança certa da escravatura, que se realizou com ´a brutalidade, a incompreensão, a ignorância, o carrancismo´ em todos os segmentos sociais, como falamos. Repudiando o passado histórico, repudia todo tipo de opressão.

O sujeito poético, após comentar a educação rígida que recebeu, fala de sua pouca e ultrapassada escolaridade, já que estudou por métodos antiquados e livros superados: ´Tive uma velha mestra que já / havia ensinado uma geração / antes da minha. / Os métodos de ensino eram / antiquados e aprendi as letras / em livros superados de que / ninguém mais fala´.

Os corredores da memória
No mesmo esteio memorialístico, fala de sua preferência pelas palavras (em detrimento dos números), inclusive tentando justificar: ´Nunca os algarismos me / entraram no entendimento. / De certo pela pobreza que marcaria / para sempre minha vida. / Precisei pouco de números´. Como se constata, o passado pobre e pleno de limitações, a distância entre o ´seu´ tempo e o tempo em que aflorou sua poesia parecem marcas profundas, cujas cicatrizares precisaram emergir em forma de versos.

Também no poema ´Minha vida´, o eu poético tece o fio da própria história, desde o nascimento ´Num ano longínquo, numa cidade distante, num dia incerto de um mês aziago´ até a ´chama viva´ e a ´cinza morta´, marcas do seu Destino, que faz questão de grafar com letra inicial maiúscula, numa tentativa de personificação e ênfase, como faziam, do mesmo modo, os poetas Simbolistas.

É incontestável a presença do passado, de sua origem humilhe e desprovida até de certezas, sem dia certo, num mês de mau agouro, como um sinal definitivo cravado em sua vida, cunhado no sangue e na alma. É de tal forma que, no ato de seu nascimento, diz, portanto, que ´O Destino /.../ moveu-se invisível e depôs sua dádiva na cabeça da criança, simbolizada numa chama viva e num punhado de cinza´.

Pode-se perfeitamente inferir que a criança é a própria Cora, já que o título da poesia traz toda a elucidação: ´minha vida´, seu memorial. A ´chama´ e a ´cinza´, ungidas em sua testa no batismo feito pelo Destino, acompanharam-na em todo o seu percurso: ´chama´, símbolo de vida, ardência; ´cinza´: sobra, resíduo, fim.

A sinceridade do eu poético vislumbra a construção da imagem do criador como um ser tão simples e verdadeiro como o poema que cria. E aí está o caráter memorialista, autobiográfico que, segundo Campos (1992 p.37), deve ´expressar a boa-fé de seu autor em dizer a verdade, ou seja, em ser sincero´. Claro que essa verdade vem com a interferência de um tempo decorrido, atualizada pelas vivências da voz que rememora, como já dissemos acima. Independente da relatividade do conceito de verdade, a poesia de Cora não tem máscaras nem subterfúgios, nenhum ardil, nenhuma esquivança. Nem na forma, nem no conteúdo.

A domesticidade da Mulher
No poema ´Cora Coralina, quem é você?´, o eu poético revela-se claramente como uma mulher ´mais doméstica do que intelectual´e, sem qualquer travo de mágoa, revela: ´Sou mais doceira e cozinheira / do que escritora, sendo a culinária / a mais nobre de todas as Artes; / objetiva, concreta, jamais abstrata / a que está ligada à vida e / à saúde humana´. Mesmo com toda o vigor da Revolução Feminista, fermentada sobretudo nos anos 60, algumas mulheres, inclusive intelectuais, demonstraram que poderiam ser felizes como donas-de-casa, utilizando suas vivências nesse espaço como inspiração para seus textos literários.

Vejamos como Adélia Prado, poeta mineira de geração posterior à Cora, tem visão de mundo idêntica no que se refere à domesticidade da mulher, especialmente no poema ´Casamento´: ´Há mulheres que dizem: / Meu marido, se quiser pescar, pesque, / mas que limpe os peixes. / Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, / ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar´.

Adélia, como Cora, trabalha como uma tendência nova no lirismo contemporâneo: a transfiguração do prosaico, do cotidiano, em poético. A recusa da mulher, que aparece esporadicamente na obra das duas poetas, não é às atividades do lar, mas a qualquer tipo de opressão. Cora, como viveu numa época em que a mulher era um ser ´inferior´, nascida para cuidar da casa, dos filhos e servir ao marido, traz a marca de um tempo em que não poderia ter vez nem voz. Daí a memória de tantos preconceitos e limitações. Daí uma poesia tão confessional, expressão de sua necessidade de gritar ao mundo sua existência sufocada.

Teia de conflitos
De acordo com Xavier (1988, p.116), é constante a tematização dos conflitos familiares na literatura brasileira, a partir do Modernismo. Tal se dá, segundo a estudiosa, por ´motivos óbvios: sofrendo a mulher, de forma mais aguda, os efeitos repressivos do processo de socialização, processo este primordialmente familiar, o texto produzido por mulheres traz a marca dessa repressão. A família de origem, muitas vezes, é a responsável pelos dramas vividos na fase adulta e a liberação feminina esbarra na tirania familiar´.

O eu poético de Cora fala dessa repressão ao dar testemunho de seu tempo, bem próximo ao da escravidão. Diz, inclusive, no poema Cora Coralina, quem é você? que a família tinha ´uma reserva determinada a essa minha tendência inata /.../ Sobrevivi, me recompondo aos bocados, à dura compreensão dos rígidos preconceitos do passado´ , os quais cita tacitamente: ´Preconceitos de classe / Preconceitos de cor e de família. / Preconceitos econômicos. / Férreos preconceitos sociais´.

Embora esteja evidente essa denúncia dos ´fatores que contramarcaram sua vida´, impedindo-a de deixar aflorar seu dom, ela, através do eu lírico, não demonstra nenhuma reserva às tarefas de dona-de-casa. Como Adélia Prado, até se mostra afeita a tais atividades: ´Vive dentro de mim / a mulher cozinheira. / Pimenta e cebola. / Quitute bem feito. / Panela de barro / Taipa de lenha. / Cozinha antiga / toda pretinha´.

Essa aceitação de suas obrigações domésticas não a impediu, entretanto, de ter uma vida interior muito rica, não permitiu que ela sucumbisse à superficialidade que seria natural para uma mulher criada e educada nas condições em que ela foi. No poema ´Todas as vidas´, o eu lírico assume várias feições, revelando, assim, a multiplicidade de seres e universos que povoavam as suas vivências e mexiam com a sua sensibilidade: (Texto III)

O eu e o outro
O sujeito poético parece se multiplicar em várias mulheres, todas criaturas de vida simples e sacrificadas. No seu dia-a-dia, todas essas vidas são suas e têm o seu mesmo rosto, já que se desdobra para cumprir seus deveres, sem lamentação. Afinal, como se lê no poema ´Cora Coralina, quem é você?´, ela, Cora, ´é mais doméstica do que intelectual´, sem ranço ou mágoa; ambas as faces coexistem e cada uma desenvolve sua arte: a Culinária (a mais nobre de todas as Artes´) e a Poesia (sua forma de sobrevivência existencial).

Observe-se a presença do paralelismo sintático na repetição constante do verso ´Vive dentro de mim´, como a reforçar que todo esse universo múltiplo de mulheres não lhe é exterior, é ela própria em todas as suas formas inesgotáveis de vida. Isso, por si, já justifica, assim, toda a sua poesia.

É nesse revelar-se que a poeta fala de sua terra, de sua gente e de si mesma, em versos de catarse, eivados na simplicidade de sua condição intelectual e na sua grandeza com ser humano, como mulher que transcendeu barreiras geográficas, sociais e existenciais, sem medo de mostrar, a flor dos olhos e das palavras, sua alma.

TRECHO

Texto III

Vive dentro de mim
uma cabocla velha
de mau-olhado

[...]

Vive dentro de mim
a lavadeira
do Rio Vermelho

[...]

Vive dentro de mim
a mulher cozinheira.

[...]

Vive dentro de mim
a mulher do povo
bem proletária

[...]

Vive dentro de mim
a mulher roceira

[...]
Vive dentro de mim
a mulher da vida

SAIBA MAIS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 8 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977

CAMPOS, Marta. O desejo e a morte nas Memórias de Pedro Nava. Fortaleza: UFC, 1992

CORALINA, Cora. Poemas do becos de Goiás e estórias mais. São Paulo: Global editora, 1983

MELO NETO, João Cabral. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994

MOISÉS, Massaud. A Análise Literária. São Paulo: Cultrix, 1996


AÍLA SAMPAIO*
Colaboradora
* Professora da Unifor

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=618271

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=618280

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=618277

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