quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Troca de autorias de textos na internet – ignorância ou desonestidade intelectual?


Dois males têm afetado muitos dos internautas que ‘gostam’ de divulgar textos em blogs e sites de relacionamento: o desconhecimento da literatura em função da falta de leitura, e a desonestidade intelectual, muitas vezes decorrente de atitudes inconsequentes ou mesmo de ignorância. Por uma razão ou outra, o mundo virtual tem se tornado uma ferramenta de disseminação de falsas autorias e adulteração de textos literários, tanto no conteúdo quanto na forma. São essas práticas nada lícitas o assunto do artigo de hoje.


CLARICE POETA?

Clarice Lispector é uma escritora conhecida pela propensão psicológica de seus enredos, pela densidade dos seus personagens. Escreveu romances, crônicas e literatura infanto-juvenil. Não satisfeitos com o legado literário que ela deixou, alguns internautas resolveram transformá-la em poeta, atribuindo-a autoria de poemas ou colocando seus escritos em forma de versos. É incontestável que são poéticas muitas passagens de seus textos, mas isso não dá o direito a ninguém de mudar a estética de suas criações ou atribuir-lhe textos que ela não criou. Vejamos o poema “Nunca mais”, e a inusitada característica de transmitir mensagens diferentes, de acordo com o modo como é lido. Se de cima para baixo, a mensagem é de despedida; se de baixo para cima, tem-se uma declaração de amor:

Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
Já te esqueci!
E jamais usarei a frase
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade
É tarde demais...

O texto é criativo, mas não é de Clarice. Como assinala Betty Vidigal, em seu artigo sobre a escritora, “Apesar dos erros de sintaxe, o texto tem o mérito de ser surpreendente”, mas não é da autora de Perto do coração selvagem. Outro texto atribuído a ela é o poema “Há momentos”, que circula livremente pela internet com o seu nome:

Há momentos na vida em que sentimos tanto
a falta de alguém, que o que mais queremos
é tirar esta pessoa de nossos sonhos
e abraçá-la.
Sonhe com aquilo que você quiser.
/.../
A vida não é de se brincar,
porque um belo dia se morre.

Embora alguns versos lembrem o estilo clariceano, esse texto não consta em livros da escritora. Como não consta o poema “Mude”, que é divulgado na internet ora em prosa, ora em verso, mas sempre com os créditos dados a ela. Leiamos um trecho:

Mude
Mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
Sente-se em outra cadeira,
no outro lado da mesa.
Mais tarde, mude de mesa.

Vanessa Lampert, do blog Autores desconhecidos, desvendou a verdadeira autoria desse texto ao receber um e-mail do autor – Edson Marques -, que vale a pena ser reproduzido: “Por um erro da Agência Leo Burnett, meu poema MUDE foi utilizado num comercial da Fiat, e teve sua autoria atribuída, erradamente, a Clarice Lispector. Os herdeiros de Clarice receberam quarenta mil dólares, ilicitamente, pelo "licenciamento" de uma obra alheia (no caso, minha). Sentença transitada em julgado deu ganho de causa a mim, em Ação Cautelar. Os herdeiros recusam-se a devolver o dinheiro, e sequer se pronunciam em público sobre o caso. Detalhes em http://desafiat.weblogger.com.br . Abraços, flores, estrelas. Edson Marques”.

Outro equívoco que envolve o nome da Clarice diz respeito ao poema “Alta tensão”, que aparece com o título “Gosto dos venenos mais lentos”:

eu gosto dos venenos mais lentos
dos cafés mais amargos
das bebidas mais fortes
e tenho
apetites vorazes
uns rapazes
que vejo passar
eu sonho
os delírios mais soltos
e os gestos mais loucos
que há
e sinto
uns desejos vulgares
navegar por uns mares
de lá
você pode me empurrar pro precipício
não me importo com isso
eu adoro voar.

O poema é da Bruna Lombardi e está em seu primeiro livro, O perigo do dragão, publicado em 1984.
A frase “Não tenho mais tempo algum,/ser feliz me consome...” também não é da Clarice, mas da poeta mineira Adélia Prado. Tal é a situação do texto que se inicia com “Não me dêem fórmulas certas, porque eu não espero acertar sempre”, que não consta em livros dela; é, pelo menos até agora, mais um apócrifo. Não bastassem essas atribuições equivocadas, Clarice também tem sido vítima de adulterações na forma de seus textos.

Há, no Jornal da Poesia, uma página dedicada a poemas dela, com um adendo do editor, Soares Feitosa: “Os poemas desta página são resultado do arranjo em versos, feito pelo padre Antônio Damázio [...], de textos em prosa da extraordinária escritora Clarice Lispector. Nesta saudável mania de todo-mundo-copiar-todo-mundo-sem-citar-a-fonte, tem umas "pages" por aí publicando estes textos sem lhes indicar a parceria do padre e como se fossem poesia originariamente feita por Clarice. É bom que se diga que Clarice, apesar de escrever de forma não versificada, era poeta verdadeira, pois como diz Benedicto Ferri de Barros não basta ao texto estar quebrado em linhas para ser poesia. Clarice fazia poesia sem quebrar as linhas”.

Concordo com o poeta Feitosa quanto à beleza poética dos textos clariceanos, mas acho que, mesmo numa época em que as fronteiras entre os gêneros se estreitam, mesmo que Clarice tenha escrito prosa poética, é inadmissível modificar a forma de textos alheios. Por que não transcrevê-los em prosa, tal como o texto foi criado?

Créditos incorretos: Aristóteles Onassis, Audrey Hepburn, Rita Lee, Florbela Espanca, Victor Hugo, Henfil, Maiákovski, Aristóteles, Chico Buarque, Machado de Assis, Albert Einstein, Bob Marley, Cora Coralina


Uma das maiores surpresas que ocorreram em minhas viagens pelo mundo virtual foi ler um poema de Aristóteles Onassis, texto considerado perfeito em alguns blogs. Jamais o imaginei dono de versos como os de “Talvez”, que recebi em forma de slides com belas imagens da Grécia:

Talvez eu venha a envelhecer rápido demais. Mas lutarei para que cada dia tenha valido a pena.
Talvez eu sofra inúmeras desilusões no decorrer da minha vida. Mas farei com que elas percam a importância diante dos gestos de amor que encontrei.
Talvez eu não tenha forças para realizar todos os meus ideais. Mas jamais irei me considerar um derrotado.
Talvez em algum instante eu sofra uma terrível queda. Mas não ficarei por muito tempo olhando para o chão.
Talvez um dia eu sofra alguma injustiça. Mas jamais irei assumir o papel de vítima.

O inusitado presente me colocou em busca de informações que tivessem credibilidade e não demorei a descobrir que o poema, citado aqui apenas em parte, é da poeta e publicitária paulista Sônia Carvalho, não é legado do magnata grego.

Outra atribuição enganosa foi feita em um texto muito difundido por e-mail: “O poder armado”, publicado no Jornal do Brasil em 6 de fevereiro de 2001, pela jornalista cearense Heloneida Studart. O relato sobre a situação das mulheres no Brasil não é, pois, da Rita Lee, como aparece em muitos sites.

A confusão pode ter-se dado em função do último parágrafo, quando a jornalista cita explicitamente parte da letra de uma música “Pagu” da roqueira: “Viva Rita Lee, que canta: "nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda e meu peito não é de silicone... sou mais macho que muito homem” (“Pagu” – Rita Lee e Zélia Zélia Duncan). Se a troca da autoria deu-se por desatenção ou por má fé não dá para saber, mas Betty Vidigal chama atenção para o fato de o nome da Rita Lee ter sido retirado da versão que circula com o nome dela como autora e assinala a mudança do título para “Mais Macho que Muito Homem”, o que supõe premeditação.

Além da questão espacial e temporal que distancia as duas, temos a questão do estilo: Rita Lee é mais irreverente, não tem a formalidade de Heloneida, que é jornalista e, à época, era deputada, líder da bancada do PT no Rio e presidente da Comissão Permanente de Defesa dos Direitos Humanos.

“Dicas de beleza”, por sua vez, é de humorista e apresentador de TV americano, Sam Levenson, não é da atriz Audrey Hepburn, como divulgam os incautos:

1 - Para ter lábios atraentes, diga palavras doces.
2 - Para ter olhos belos, procure ver o lado bom das pessoas.
3 - Para ter um corpo esguio, divida sua comida com os famintos.
4 - Para ter cabelos bonitos, deixe uma criança
passar seus dedos por eles pelo menos uma vez por dia.
5 - Para ter boa postura, caminhe com a certeza de que nunca andará sozinho.

“Os votos”, também conhecido como “Desejo primeiro que você ame”, longo poema do qual transcrevemos a primeira estrofe, não é do o escritor francês - Victor Hugo - que escreveu o antológico Os Miseráveis. Somente quem nunca leu um livro dele poderia acreditar nisso. O texto foi criado, na verdade, por Sérgio Jockymann:

Desejo primeiro que você ame,
E que amando, também seja amado.
E que se não for, seja breve em esquecer.
E que esquecendo, não guarde mágoa.

O belo poema “Por tudo que me deste”, divulgado como escrito por Florbela Espanca, é de autoria do poeta, também português, Carlos Queiróz e foi publicado numa Antologia organizada em Lisboa por Vasco Graça Moura em 2004:

Por tudo que me deste:
- Inquietação, cuidado,
(Um pouco de ternura? É certo, mas tão pouco!)
Noites de insônia, pelas ruas, como um louco...
- Obrigado, obrigado!

Por aquela tão doce e tão breve ilusão,
(Embora nunca mais, depois que a vi desfeita,
Eu volte a ser quem fui), sem ironia: aceita
A minha gratidão!

Que bem me faz, agora, o mal que me fizeste!
- Mais forte, mais sereno, e livre, e descuidado.
Sem ironia, amor: - Obrigado, obrigado
Por tudo o que me deste!

Já a frase “Se não houver frutos, valeu a beleza das flores... se não houver flores, valeu a sombra das folhas... se não houver folhas, valeu a intenção da semente”, erroneamente creditada a Henfil, é de Maurício Ceolin. Henfil apenas a leu em público, na época do movimento pelas ‘Diretas Já’, e a utilizou como epígrafe de um livro seu. Outra confusão de autoria que levou tempo para ser esclarecida se refere ao poema “No caminho com Maiákovski”, atribuído ao poeta russo, quando, de fato, foi escrito por Eduardo Alves da Costa, certamente leitor dele: “Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor/ do nosso jardim./ E não dizemos nada...”.

“Revolução da alma” – “Ninguém é dono da sua felicidade, por isso não entregue sua alegria, sua paz sua vida nas mãos de ninguém, absolutamente ninguém. Somos livres, não pertencemos a ninguém e não podemos querer ser donos dos desejos, da vontade ou dos sonhos de quem quer que seja. A razão da sua vida é você mesmo. A tua paz interior é a tua meta de vida” - não é do filósofo grego Aristóteles, como acreditam muitos que ‘se dizem’ discípulos de suas ideias em páginas da net, mas de Paulo Gaefke, e está no livro Decidi ser Feliz, publicado em 2002.

“Solidão”, texto que é repassado com uma foto do Chico Buarque e seu nome impresso, teve a autoria negada por ele. Foi escrito, depois se soube, por Fátima Irene Pinto, publicado em seu livro Palavras para Entorpecer o Coração (p.79). O site dela é www.fatimairene.com. Leiamos pelo menos duas estrofes:
Solidão não é a falta de gente para conversar,
namorar, passear ou fazer sexo.
Isso é carência.

Solidão não é o sentimento que experimentamos
pela ausência de entes queridos que não podem mais voltar.
Isso é saudade.

A crônica que intitulam na Net como “Mulheres no topo” e/ou “Maçã: “As Melhores Mulheres pertencem aos homens mais atrevidos. Mulheres são como maçãs em árvores. As melhores estão no topo. Os homens não querem alcançar essas boas, porque eles têm medo de cair e se machucar. Preferem pegar as maçãs podres que ficam no chão, que não são boas como as do topo, mas são fáceis de se conseguir.”, bem como o poema “Bons amigos” “Abençoados os que possuem amigos, / os que os têm sem pedir. / Porque amigo não se pede, / não se compra, nem se vende. / Amigo a gente sente! // Benditos os que sofrem por amigos, / os que falam com o olhar.” não foram escritos por Machado de Assis, pelo menos, não constam em seus livros.

Mesmo os romances da primeira fase machadiana, seus contos ou crônicas, tampouco seu poemas com resquícios românticos têm o estilo dos dois textos. Profundo conhecedor da alma humana, Machado caricaturou a sociedade carioca e, por meio dela, traçou o perfil dos seus contemporâneos de modo geral. Seus enredos provocam profundas reflexões de fatos cotidianos que ressoam como uma advertência. São, pois, apócrifos os dois textos a ele atribuídos, a não ser que o verdadeiro autor apareça para assumi-los.
Mas os absurdos não param por aqui. No site http://www.dihitt.com.br/noticia/albert-einstein-e-a-poesia-, há uma postagem intitulada Einstein e a poesia, seguida da informação: “Sua genialidade transcendeu a barreira da insensibilidade da ciencia e o fez poeta também. Aqui um trecho de sua poesia. As inúmeras cartas que escreveu revelam seu amor pela literatura” (Sic). Em seguida, vem o texto:

Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.

Pode ser que um dia o tempo passe...
Mas, se a amizade permanecer,
Um de outro se há-de lembrar.
/.../
Há duas formas para viver a sua vida:
Uma é acreditar que não existe milagre.
A outra é acreditar que todas as coisas são um milagre.

Essa atribuição talvez tenha se dado em função da descoberta da existência do “Diário de namorada de Einstein, que revela o homem além do cientista”, cujo artigo foi publicado em 2004, no Jornal da Ciência. Leiamos:

“Após a morte de Einstein em 1955, Fantova vendeu suas cartas e poemas, juntamente com uma pasta de fotografias, para Griffin, que as doou para a Biblioteca Firestone. As cartas, que foram abertas em 1996, não foram publicadas, apesar de estudiosos as terem visto na Firestone. A maioria foi escrita durante suas férias em Long Island, e estão cheias de queixas sobre dores, segundo Calaprice.

Os poemas, vários deles incluídos no diário de Fantova, são alegres, cheios de trocadilhos ruins e piadas às custas do próprio Einstein. Um que lamentava a ausência de Fantova diz:

(Cansado do longo silêncio/Isto é para lhe mostrar claramente quão forte/Os pensamentos em você sempre estarão vívidos/No pequeno sótão de minha cabeça.)”
(Exhausted from a silence long / This is to show you clear how strong / The thoughts of you will always sit / Up in my brain's little attic. )

O estilo é completamente diferente do do texto que circula pela internet, que aparece sempre sem referência bibliográfica.

O texto “Os ventos que às vezes tiram algo que amamos, são os mesmos que trazem algo que aprendemos a amar... Por isso não devemos chorar pelo que nos foi tirado e sim, aprender a amar o que nos foi dado. Pois tudo aquilo que é realmente nosso, nunca se vai para sempre...” não foi escrito por Bob Marley como aparece em muitas páginas. O verdadeiro autor continua desconhecido. Igualmente ocorre com “Dificil não é lutar por aquilo que se quer, e sim desistir daquilo que se mais ama. Eu desisti. Mas não pense que foi por não ter coragem de lutar, e sim por não ter mais condições de sofrer”. Não há fontes comprobatórias de autoria da maioria dos textos que circulam com o nome do cantor jamaicano. O que não se entende é como belos arranjos como “A maior covardia de um homem é despertar o amor de uma mulher sem ter a intenção de amá-la” e “Às Vezes construímos sonhos em cima de grandes pessoas... O tempo passa... e descobrimos que grandes mesmo eram os sonhos e as pessoas pequenas demais para torná-los reais!” possam ser atribuídos a outros ou circulem como apócrifos.

Cora Coralina, pseudônimo de Ana Lins, poeta goiana conhecida pela versificação simples com temáticas cotidianas que abordam, sobretudo, os becos de sua terra. Não se sabe por que, se pela aproximação do estilo ou por ignorância, atribuíram-na o poema intitulado “Não sei”, que também tem sido postado com o título “Saber Viver”:

Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

CHAPLIN

Charles Chaplin foi ator, diretor, dançariro, roteirista e músico. Sem dúvida um cineasta dos mais criativos da era do cinema mudo. Além de escrever, produzir e dirigir seus filmes, atuava neles e financiava-os. Tanto talento e tanta criação levaram alguns internautas a atribuir-lhe a autoria de diversos textos e fazê-los circular pela internet via e-mail, scraps, mensagens, blogs e sites (não oficiais, claro). Quem entrar na página PENSADOR.INFO (http://www.pensador.info/charles_chaplin_sobre_a_vida/) encontrará um acervo enorme, a começar pelo “Ciclo da vida”, que está no perfil de muita gente aparentemente informada no Orkut:

A coisa mais injusta sobre a vida é a maneira como ela termina. Eu acho que o verdadeiro ciclo da vida está todo de trás pra frente. Nós deveríamos morrer primeiro, nos livrar logo disso.

Daí viver num asilo, até ser chutado pra fora de lá por estar muito novo. Ganhar um relógio de ouro e ir trabalhar. Então você trabalha 40 anos até ficar novo o bastante pra poder aproveitar sua aposentadoria. Aí você curte tudo, bebe bastante álcool, faz festas e se prepara para a faculdade.

Esse texto aparece com diferentes títulos: "O Ciclo da Vida ao Contrário" / "A vida segundo Chaplin" / "A Vida ao contrário" e é de autoria de Sean Morey. Mirian, do site Com outros olhos, após exaustiva pesquisa, chegou a essa conclusão. mais:http://comoutrosolhos.multiply.com/journal/item/52
Também o poema "A vida é uma peça de teatro", que circula, às vezes, com o título “Viva intensamente”, não é de Chaplin.

"A vida é uma peça de teatro que não permite ensaios...
Por isso, cante, ria, dance, chore
e viva intensamente cada momento de sua vida...
Antes que a cortina se feche e a peça termine sem aplausos"

Textos que contém as palavras-chave: palhaço, teatro, sorrir (e seus derivados) são, quase sempre associados a Chaplin; dão a atribuição por conta própria, com base apenas nesse léxico, sem consultar as fontes. Tal é o caso de “Ei! Sorria”: “Ei! Sorria... Mas não se esconda atrás desse sorriso... / Mostre aquilo que você é, sem medo. / Existem pessoas que sonham com o seu sorriso, assim como eu. / Viva! Tente! A vida não passa de uma tentativa. / Ei! Ame acima de tudo, ame a tudo e a todos” e “Preciso de alguém”: “Preciso de alguém que me olhe nos olhos quando falo. / Que ouça as minhas tristezas e neuroses com paciência. / Preciso de alguém, que venha brigar ao meu lado sem precisar ser convocado; alguém Amigo o suficiente para dizer-me as verdades que não quero ouvir, mesmo sabendo que posso odiá-lo por isso” ambos de Cristiana Passinato.

Já “Quando me amei de verdade”: “Quando me amei de verdade, / compreendi que em qualquer circunstância, / eu estava no lugar certo, na hora certa, no momento exato./ E então, pude relaxar. / Hoje sei que isso tem nome... Auto-estima” tem a autoria de Kim e Alison McMillen.

A letra da música "Smile", lindamente traduzida por João de Barro (Braguinha), é de John Turner e Geoffrey Parsons; só a melodia é de Chaplin. Djavan gravou no seu CD "Malásia", de 1996 e no CD "Djavan Novelas, Temas de Novelas de Rede Globo": “Sorri / Quando a dor te torturar / E a saudade atormentar Os teus dias tristonhos, vazios” e os créditos estão assim colocados: Composição: Charles Chaplin/G.Parson/J. Turner - versão: Braguinha. A tradução que circula pela internete é: “Sorria, embora seu coração esteja doendo / Sorria, mesmo que ele esteja partido / Quando há nuvens no céu / Você sobreviverá...”



Outro texto bastante conhecido é “Cada pessoa que passa”, que também aparece com o título “Acaso”:
"Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha,
é porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra.
Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha, e não nos deixa só,
porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós.
Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova
de que as pessoas não se encontram por acaso."

Embora o texto seja bastante divulgado na Net, não há como comprovar de que filme livro/artigo foi retirado. Já o atribuíram também a Saint-Exupéry e a Mario Quintana, e há quem afirme que é de Khalil Gibran. De acordo com Mirian, pesquisadora de autorias, “uma vez perguntaram numa comunidade de Chaplin se esta citação era mesmo dele, como resposta, postaram o link de um blog com a citação atribuída a Chaplin. Ora, pesquisar autorias não é tão fácil assim, ainda mais quando há muitos sites atribuindo incorretamente, não se pode confiar na maioria /.../ Outro responde que tanto faz de quem seja, pois a citação é linda. Outro diz que deve ser dos dois, de Chaplin e Saint-Exupéry”. Embora o texto resuma um pouco da lição que o Pequeno Príncipe aprende quando chega ao 7° planeta visitado, ele não consta no livro. Só quem não leu pode afirmar isso.
Já o poema: “Vida” é, na verdade, de Augusto Branco (Pseudônimo) e consta no livro Viva apaixonadamente, cujo registro é 449.877 - Livro: 845 - Folha: 37 e está também postado em seu site A Grandeza
(Fonte: http://agrandeza.blogspot.com/2008/09/j-perdoei-erros-quase-imperdoveis.html, acesso: 26/10/09, data da publicação no blog: 18/09/08)
Leiamos uma estrofe do texto:

Já perdoei erros quase imperdoáveis,
tentei substituir pessoas insubstituíveis
e esquecer pessoas inesquecíveis.

Já fiz coisas por impulso,
já me decepcionei com pessoas
que eu nunca pensei que iriam me decepcionar,
mas também já decepcionei alguém.
/.../
Bom mesmo é ir à luta com determinação,
abraçar a vida com paixão,
perder com classe
e vencer com ousadia,
porque o mundo pertence a quem se atreve
e a vida é “muito” pra ser insignificante.

De acordo com o verdadeiro autor, ele foi atribuído a Chaplin, pelo fato de ele ter usado uma suposta frase de Chaplin no final do texto: “a vida é muito pra ser insignificante”. Consultando o site oficial de Chaplin, em inglês e os livros a que se tem acesso - O Pensamento Vivo de Chaplin, Livro Clipping: Chaplin por ele mesmo e Chaplin: Vida e Pensamento, todos da editora Martin Claret, não foram encontrados nenhum dos textos até agora citados.

Mirian afirma que pensou, inicialmente, que "Vida" fosse uma adaptação do texto "Curriculum Vitae" (Eu já dei risada até a barriga doer, já nadei até perder o fôlego, já chorei até dormir e acordei com o rosto desfigurado. Já fiz cosquinha na minha irmã só pra ela parar de chorar, já me queimei brincando com vela. Eu já fiz bola de chiclete e melequei todo o rosto, já conversei com o espelho, e até já brinquei de ser bruxo...) também registrado na Biblioteca Nacional por Juliana Spadotto, por considerá-los muito parecidos. No site http://www.fantasiasdaalma.com.br/cantinho_amigos/experiencia.html, entretanto, consta que há uma versão do mesmo texto, com eu-lírico masculino, de autoria de Félix Coronel, publicada no livro "Como é que é?" (2003, p. 18, segundo o site "Fantasias da Alma", ou páginas 25-7, segundo o site de Rosangela Aliberti). A confusão é real: “Curriculum Vitae” é atribuído a Juliana Spadotto e a Félix Coronel; Félix Coronel publicou um livro contendo o texto, e Juliana Spadotto conseguiu os direitos autorais do texto em 2004. Mirian conclui: “O texto atribuído a Chaplin, mas que pertence a Augusto Branco, tem semelhanças com o texto de autor desconhecido que, por sua vez, tem semelhanças com o texto de Juliana Spadotto / Félix Coronel, tanto no estilo quanto nos objetivos, mas, por causa da liberdade que os internautas têm de fazer o que quiserem com os textos de qualquer pessoa e colocar em seus perfis, a internet se tornou um telefone sem fio e por causa de uma simples citação (que ninguém sabe se é de Chaplin, mas acreditam que seja dele só porque viram em milhares de sites na internet) o texto todo passou a ser atribuído a ele, fato confirmado pelo próprio Augusto”.

A falsa despedida de Gabriel Garcia Márquez.

“O monólogo da marionete” circulou na internet como “Poema de despedida de Gabriel García Márquez”, ou seja, uma despedida do escritor Gabriel García Márquez, quando se soube acometido de um câncer linfático. Leiamos uma parte do texto:

Se por um instante Deus se esquecesse de que sou uma marionete de pano e me desse um pedaço de vida, talvez eu não dissesse tudo que penso, mas com certeza pensaria tudo que digo. / Daria valor às coisas não pelo que custam, mas pelo significam. / Dormiria pouco e sonharia mais, por que para cada minuto em que fechamos os olhos perdemos sessenta segundos de luz. / Andaria quando os outros param, despertaria quando os outros dormem, ouviria quando os outros falam, e como aproveitaria um sorvete de chocolate...! /.../ São tantas as coisas que aprendi de vocês. Mas não terão muita serventia, porque quando me guardarem dentro desta maleta, infelizmente, estarei morrendo...”

Ele próprio negou a autoria e desdenhou da qualidade do texto, que começou a aparecer em sites de autoajuda desde julho de 1999, como “uma colaboração de García Márquez a um programa de menores maltratados”.
Em 29 de maio de 2000, o jornal peruano La Republica publicou “La Marioneta” como sendo “um poema de despedida que García Márquez enviou a seus amigos mais próximos, devido ao agravamento de sua doença. Em 30 de maio, todos os jornais do México reproduziam a notícia. O La Crónica dizia, em manchete: “Gabriel García Marques canta uma canção para a vida”.

Em 31 de maio, García Márquez declarou: “Lo que realmente me puede matar es la vergüenza de que alguién me crea capaz de haber escrito un texto tan cursi, tán malo”. Foi então que apareceu o verdadeiro autor, o ventríloco Johnny Welch, que se pronunciou ao jornal mexicano Reforma (http://www.reforma.com/cultura/articulo/011476/) em 1º de junho de 2000, magoado: “A mí me duele profundamente que el señor García Márquez diga que él no se atrevería a escribir una cosa tan cursi, pero respeto su opinión. Yo no soy un letrado o una persona que haya estudiado Filosofía y Letras, soy un ser humano con la necesidad de comunicar lo que siente y lo hago con el corazón”. Johnny Welch vive no México, onde publicou dois livros, Lo que Me ha Enseñado la Vida - obra em que consta o texto com o título “Si yo tuviera vida” - e Hilos de Vida

Betty Vidigal, em sua perquirição para compreender a falsa atribuição, descobriu que o Jornal La República declarou que o texto publicado havia sido enviado pelo escritor Abel Posse, embaixador da Argentina no Peru. Vidigal foi mais fundo: “soube-se que Abel Posse recebeu o texto por e-mail da escritora Elizabeth Burgos, radicada em Paris. Ela, por sua vez, recebeu-o de Rosario Sosa, a quem não conhece. O e-mail tinha partido da Bélgica. Rosário Sosa, ao receber o “poema”, enviado por Donato di Santo, da Itália, enviou-o a 17 pessoas, entre as quais estava o presidente do Chile, Ricardo Lagos”. Ou seja a distribuição via e-mail é que foi responsável pela ampla divulgação do texto, como ocorre na maioria dos casos semelhantes.
“Instantes” não é de Jorge Luís Borges nem de Nadine Stair
O poema “Instantes”, do qual transcrevemos a primeira e a última estrofe em língua portuguesa, não é de Jorge Luis Borges nem de Nadine Stair. Esse foi um dos casos de falsa autoria que mais envolveu investigações:

Se eu pudesse novamente viver a minha vida,
na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito,
relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido. /.../
Se eu pudesse voltar a viver,
começaria a andar descalço no começo da primavera
e continuaria assim até o fim do outono.
Daria mais voltas na minha rua,
contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
se tivesse outra vez uma vida pela frente.
Mas, já viram, tenho 85 anos e estou morrendo

No artigo de José Nêumanne Pinto, postado no Jornal de Poesia, http://www.secrel.com.br/jpoesia/autoria.html#instantes, ele diz que “o escritor gaúcho Moacyr Scliar sente-se parcialmente responsável por sua divulgação no Brasil, por ter encontrado o texto em Buenos Aires e o publicado em português, em Porto Alegre.”

Na Folha de São Paulo, em 17 de dezembro de 1995, Scliar relata como conheceu o poema - na Argentina, em 1987, com o nome de Jorge Luís Borges. De volta ao Brasil, publicou-o no jornal Zero Hora: “A repercussão foi extraordinária ... imediatamente surgiram cópias que eu encontrava afixadas em lugares os mais variados: casas de amigos, restaurantes, repartições públicas. Ao mesmo tempo, pessoas me escreveram de Buenos Aires, contestando a autoria de INSTANTES”; diz, finalmente, que o poema não foi escrito por Borges, mas por Nadine Stair, poeta norte-america.

Maria Kodama, viúva de Borges, ficou surpresa com a repercussão do texto nos meios de comunicação em geral e tratou de negar a autoria publicamente. O texto foi originariamente publicado em inglês, com o título de Daisies (margaridas). Mas o texto também não foi escrito por Nadine Stain. Vidigal continua: “Byron Crawford, colunista do Louisville Courier-Journal, descobriu uma sobrinha de Nadine Strain, segundo a qual sua tia não deixou outros escritos: a Música é que era sua paixão. Cega na velhice (como Borges), e vivendo em um asilo, Nadine pedia para ser levada ao piano todos os dias e tocava enquanto os outros faziam suas refeições”.

A mais antiga publicação de “Instantes” está na Revista Seleções do Reader's Digest, edição de outubro de 1953, e seu autor é Don Herold (1889-1966), escritor e humorista, autor de cerca de uma dúzia de livros. O texto se inicia com a frase “Of course, you can't unfry an egg, but there is no law against thinking about it.” (É claro que não se pode desfritar um ovo, mas não há lei que proíba pensar nisso). “Só então ele começa a desfiar as considerações sobre viver a vida outra vez, tirando-lhes, com essa introdução, o tom lamurioso”, diz Vidigal. A frase final (Pero ya ven, tengo 85 años... y sé que me estoy muriendo) não em nenhuma outra versão em inglês, só aparece nas de língua espanhola exatamente as que colocam Borges como autor. Mais uma ‘brincadeira’ do mundo virtual!

Martha Medeiros e Neruda – nada a ver

A cronista Martha Medeiros é uma das maiores vítimas de adulteração de textos. São dela: “A massacrante felicidade dos outros”, “A voz do silêncio”, “A Impontualidade do Amor”, “Amores mal resolvidos” – (o título correto é: “Até a Rapa”), “Eu te amo não diz tudo” ou “Saber Amar”, “Felicidade realista”, “O que faz bem à saúde / Previna-se”, “Os olhos da cara” – aparece também com o título “Juventude eterna”, com enxertos não se sabe de quem -, “Para que serve uma relação?”, “Promessas matrimoniais”, “Sacanagem” ou “O amor só acontece antes dos 30”, “Saudade” – (o título correto é: “A dor que dói mais”), “Sentir-se amado”, “Sermão do casamento” - (o título correto é: “Casamento na Igreja”). Nenhuma, entretanto, foi tão copiada quanto - "Morre lentamente", cujo título correto: "A morte devagar", que, em vários sites, blogs e PPS aparece em forma de versos, com o nome do poeta chileno Pablo Neruda:

Morre lentamente quem não viaja, quem não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.
Morre lentamente quem destrói o seu amor-próprio,
quem não se deixa ajudar,
morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajetos, quem não muda de marca,
não se arrisca a vestir uma nova cor
ou não conversa com quem não conhece.
Morre lentamente quem faz da televisão o seu guru.

Também não são de Neruda os poemas “Dos e/ou Dois”, Dois.../ Apenas dois./ Dois seres.../ Dois objetos patéticos./ Cursos paralelos /Frente a frente.../ ...Sempre... / ...A se olharem.../ Pensar talvez: / “Paralelos que se encontram no infinito...” / No entanto sós por enquanto./ Eternamente dois apenas” – O texto é belo, mas não se sabe quem é o verdadeiro autor. Igualmente belo é “Ainda não estou preparado para perder-te”: que dizem ser de Gian Franco Pagliari, mas não há confirmação:

"Ainda não estou preparado para perder-te
Não estou preparado para que me deixes só.
Ainda não estou preparado pra crescer
e aceitar que é natural,
para reconhecer que tudo
tem um princípio e tem um final.
/.../
E ainda não estou preparado para caminhar
por este mundo perguntando-me: Por quê?
Não estou preparado hoje nem nunca o estarei.
Ainda te Necessito."

“Saudade é a solidão acompanhada”: “Saudade é solidão acompanhada, / é quando o amor ainda não foi embora, / mas o amado já... / Saudade é amar um passado que ainda não passou, / é recusar um presente que nos machuca, / é não ver o futuro que nos convida” é, na verdade, uma fala do personagem-poeta Afonso Henriques, na novela Fera Ferida escrita por: Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, mas aparece em vários sites com o nome do poeta chileno.

Consultar

Byron Crawford tem uma coluna no http://www.courier-journal.com/cjextra/columns/crawford/crawford.html
Internet." (“Quem Colheria Mais Margaridas, Um Estudo de Plágio e Embromação na Internet” (http://www.benjaminrossen.com/index_frameset_daisies.htm)
[ Moacyr Scliar - VERSOS INFAMES: A FRAGILIDADE DA FALSIFICAÇÃO – Folha de São Paulo, 17/12/95, e http://www.geocities.com/Athens/Agora/3382/textos.htm#text1
JORNAL DA CIÊNCIA http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?i

POLICROMIAS – um collorarium de peças literárias




Foi com satisfação que recebi e aceitei o convite da poeta Giselda Medeiros, presidente de honra e diretora de publicação da Associação de Jornalistas e Escritoras Brasileiras – AJEB – para apresentar este 6º volume da Coletânea Policromias, uma edição comemorativa do 40º aniversário da Associação.
Não poderia haver nome mais adequado do que Policromias para traduzir a multiplicidade de textos que compõem o volume. São variadas nuanças, numa diversidade de gêneros e estilos, como a compor um quadro de tonalidades e matizes, não de cores, mas de palavras que analisam, perquirem, contam, recontam, bordam histórias, falam de glórias e tecem sentimentos, encantos e desencantos, segredos e esperas.

O cronista angolano Carmo Neto diz que criar é um exercício de liberdade. De fato, quando se juntam experiências diversas desse exercício, tem-se o texto como fruição, como projeto estético ou como apenas catarse. Pouco importam intenções ou rótulos, a necessidade de quem escreve é também a de quem lê.

Nesse mesmo raciocínio sobre a criação, Walter Benjamim, ao referir-se a textos narrativos, disse: “O narrador conta o que ele extrai da experiência – sua própria ou aquela contada por outros. E, de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a sua história”. O filósofo parece ter proferido essas palavras pensando na crônica; ou, talvez, pensasse na epístola, gênero praticamente desaparecido, que, não despretenciosamente, abre essa miscelânea literária. Falo da Carta de Beatriz Alcântara, cuja emoção nos arrebata e faz seguirmos com a narradora o tempestuoso percurso para enterrar os ossos dos avôs. Com ela, enfrentamos a procela e respiramos gratificados quando a missão é cumprida e resta a trivial realidade de um computador deixado ligado na tomada. Heloísa Barros Leal também incursiona pelo mesmo gênero, como Haroldo Lyra, com outras proposições.

A crônica, o mais simples e sublime exercício de partilha de experiências e observações, possibilita rápidas viagens aos universos criados pelos dedos de Evan Bessa, Zenaide Marçal, Nirvanda Medeiros, Ione Arruda, Ilnah Soares, Germano Muniz, Margarida Alencar, Rosa Firmo, Stella Furtado, Zinah Alexandrino, João de Deus, Vicente Alencar e Rosa Virgínia Carneiro, muitas vezes se confundindo com prosa poética. Talvez seja essa a forma de composição mais praticada na atualidade, “porque nós temos consciência da extraordinária violência com que o tempo vai levando as coisas e as gentes, daí a necessidade de registrar, de alguma forma, o que se passou e passa no âmbito pessoal e intransferível”, como afirma Ivan Lessa. Vou além: a crônica satisfaz nossa ânsia de comunicação com o outro, não requer recursos estéticos, não enseja belicosos trabalhos de linguagem, constrói-se na simplicidade da nossa própria visão de mundo e nos dá a oportunidade de ser pessoais, sem sermos piegas, de celebrar o instante que passa, sem deixá-lo ir completamente.

O conto é outro exercício ficcional praticado pelos ajebianos e, nesta coletânea, vem representado pela criação de Regina Barros Leal, Evan Bessa, Ednilo Soárez e Celina Côrte Pinheiro. O ensaio também ocupa espaço nestas páginas; poetas e contistas saem da sua condição de criadores do texto literário para analisá-los ou discorrerem sobre a realidade circundante. Ebe Braga Frota fala sobre a educação como fator de progresso social; Giselda discorre sobre a trova; Maria Luisa Bonfim escreve sobre os poemas de Pablo Neruda; Francisco Carvalho analisa a poesia de Neide Azevedo; Maria Amélia Barros Leal investiga o universo ficcional de Moreira Campos e Claudio Queiroz percorre a ficção de Dostoiévski. O discurso, gênero essencialmente oratório, tem registro com peças de autoria de José Augusto Bezerra, João de Deus, Maria do Carmo Fontenelle e Eduardo Fontes.

Já a poesia, a composição escrita que mais se comunica com a alma, domina as páginas da coletânea, em versos de muitos contistas, cronistas e ensaístas já citados, bem como na inspiração de Rejane Costa Barros, Nilze Costa e Silva, Argentina Andrade, Lúcia Helena Pereira, Ana Paula de Medeiros, Manoel César, Regine Limaverde, Tereza Porto, Bernadete Sampaio, Clara Leda, Mary Ann Leitão Karan, Salete Passos Urano, Sabrina Melo, Viviane Fernandes, Maria Helena Macedo, Pereira de Albuquerque, Vital Arruda, J. Udine, Moacir Gadelha, Sérgio Macedo, Sílvio dos Santos Filho e Waldir Rodrigues. A eles se agregam os Poemas vencedores do IV Concurso Literário Professora Edith Braga, realizado pela AJEB-CE, em 2009, especialmente os três primeiros lugares conquistados por Sabrina Melo, Arleni Portelada e Francisco Bento Leitão Filho. Todos sabem, como Valtaire, que “O esplendor da relva só pode mesmo ser percebido pelo poeta. Os outros pisam nela”, ou seja, sabem da missão de descortinar o mundo que não se mostra a qualquer um, somente àqueles que trazem nos olhos a poesia que dorme nos seres e nas coisas.

Nesse corollarium de peças literárias, não há hierarquia nem juízo de valor. A moeda é a criação advinda da necessidade de confirmar a própria existência. Escrever sempre será um ato de liberdade e afinação com a vida; sempre será a projeção de um grito de dor ou prazer... ou apenas um grito que se quer ouvido. Parabéns à poeta Giselda pela organização da coletânea e a todos os participantes que, não tenho dúvida, entendem a vida pelo diálogo entre as palavras e os silêncios.
Obrigada!
Aíla Sampaio

Apresentação do livro Detalhes do Tempo, de Manoel César




Foi com muita alegria que aceitei o convite para apresentar o novo livro de poemas do Manoel César, porque entendo que só se convida alguém para ser madrinha de um filho quando há irmandade de sonhos. Ao sorver página a página a sua poesia, senti sua alma de pássaro, sua ânsia de voo que se concretiza nas palavras, pelas palavras, suas companheiras e confidentes, e entendi que só nos completamos no outro. Não há poesia sem leitor. Irmã de viagens oníricas pelo território das letras, me coloco agora diante desse Manoel e de todos vocês, como porta-voz dessa poética, para partilhar as impressões que me foram deixadas pela leitura de fiz. Não há sedas para serem rasgadas, tampouco rendas para adornar. Há o meu olhar atento vasculhando desvãos e entrelinhas.

DETALHES DO TEMPO é uma coletânea que agrega poemas de três livros anteriores do poeta – A poesia ainda existe, Sintagmas da solidão e Mágicas palavras – a peças inéditas. Embora sua última publicação tenha sido feita em 1988, ou seja, há 22 anos, não se pode dizer que sua poesia é sazonal. Vê-se um continuum em seus versos, a nos dizer que sua criação é perene, despreocupada com padrões ou rótulos, mas cheia de ilações filosóficas que traduzem sua inquietação diante do mundo em que vive. Sazonal é seu desejo de publicar, mas esse é apenas mais um detalhe do tempo, que ele faz questão de explorar.

Sua reverência a poetas como Mário Quintana, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Vinícius de Morais, Francisco Carvalho, Cecília Meireles, Patativa do Assaré, Florbela Espanca, Cassiano Ricardo, Jáder de Carvalho, entre outros, atesta sua vivência com o lirismo e sua facilidade de engendrar artimanhas para atravessar textos com seus olhos sensíveis. Sobretudo na parte do “Canto aos amigos de fé”, ele saúda os poetas por meio de versos que incorporam o estilo de cada um, lançando mão do recurso da intertextualidade para revelá-los e sorver-lhe a liberdade criadora que inspira sua poética. Ao brincar de enconde-esconde com a vida, ele joga com as palavras e diz: “Minha casa tem tristeza / tristeza sem par / as aves aqui não cantam / mas a solidão / me dá lições de voar”, reverenciando Gonçalves Dias ao parodiar sua decantada Canção do exílio.

Sua poesia constrói-se essencialmente nos alicerces de duas fontes inspiradoras: o silêncio e a solidão. Não se pense, entretanto, que sob a pele das palavras que desnudam sua alma há amargura ou morbidez. A saudade que emana de sua solidão é um canto ao passado bem vivido, mas inexorável, é um diálogo com o tempo transcorrido, na tentativa de reviver a infância; ele passeia por cidades, ruas e praças redivivas em sua lembrança. Cantar a solidão é seu modo “desafogar o coração” para “suplantar a dor existencial de ser”. Em vez de algoz, ele a considera solidária do silêncio, tal como seu afeto e sua ternura. Estar só, para o poeta, é povoar-se de silêncio para encontrar, no seu íntimo, a poesia buscada no “instante / na emoção relâmpado”.
Ele brinca num exercício metalinguístico: Minha solidão / se reduz a dois versos livres... / e eu insisti tanto para que tu entendesses a poesia moderna (p.23). A reflexão metalinguística é uma constante, o que mostra sua consciência estética no processo criador que não se restringe à pura inspiração: No mundo restrito / da minha palavra / um poema é assassinado / pela ponta da minha / esfero / gráfica.

Ele pratica os versos curtos e livres, elaborando uma poesia sintética, mas prenhe de sentidos. Brinca com as palavras, retomando características da poesia concreta e da neoconcreta, como a mostrar que acompanha a travessia das experiências estéticas do poema, sem, entretanto, deixá-lo mudo às inquietações da existência, como a passagem inevitável do tempo, o medo da velhice, a morte e a violência. Nessa fusão de silêncio e solidão, vertentes incontestáveis de sua criação, ele canta todas as dores que lhe perpassam: “Em silêncio / as plantas crescem / na solidão das madrugadas / minha angústia aumenta mais / que suas raízes / que crescem sem saber / da violência deste (i)mundo” (p.117). Sua confiança no tempo revela-se sua aliada: “Vou ler e chorar / chorar e ler / o tempo vai passar / e vou voltar a viver”, e faz sua poética de solidão e angústia também uma poética de esperança, jamais de desilusão. Há no homem, um menino que não morre nunca, como se lê em seu “Poeminha de natal”: O tempo passa... / mas todo ano / ainda penso / Que Papai Noel / vem me visitar / presenteando-me / com um passeio / de volta à infância” (p.239).

Na parte VI da seleção de sua primeira obra – A poesia ainda existe -, a preocupação social se avulta em elocubrações como: “A história de João / não é feita de histórias / e sim de salário mínimo”, onde se entrevê um sopro de Ferreira Gullar com sua poesia neoconcreta. A denúncia contra a indiferença “ao caminhar das formiguinhas” e sua revolta diante das desigualdades denotam o compromisso do homem com a sociedade em que vive. O enterro de um catador de lixo, morto de dengue por descaso médico, a fome do homem do sertão, a miséria do mundo e a falta de paz são leitmotivs constantes de sua criação.

Já em “Íntimo da solidão do silêncio”, ele canta sua musa, o amor sensual, vivido: “Quando sinto / todo aquele mundo / encantador e misterioso / que escondes sob o vestido / sinto que a vida / vale a dor de ser vivida”. O amor, a mulher, os amigos, os poetas, o silêncio e a solidão parecem povoar seu imaginário e sedimentar seu processo criador, seu estar no mundo. A observação e a memória dialogam permanentemente em seu olhar atento para o ‘lá dentro’ das coisas.

Mas não nos esqueçamos de que toda poesia é cilada. Se revela e desvela o poeta, também engana. Leitor de Pessoa, Manoel sabe que o poeta é um fingidor, finge até as suas verdades: “Nunca pense / na razão direta / do que meu poema diz / estou sempre no avesso”. Desvendar a alma de um poeta não é simplesmente ler sua poesia, mas compreender a redescoberta da vida pela palavra. Assim, o poeta é esperança, a despeito dos revezes. Aprendeu a amar a vida “pelo silêncio e pela solidão que ela o concede”, fazendo suas as palavras de Cecília Meireles: “a vida só é possível reinventada”. Eu vou mais longe, Manuel: Só quem conhece os detalhes do tempo pode reinventar a vida e reinventar-se. Sua poesia nos dá essa lição.

Aíla Sampaio – 09/06/2010

Apresentação da Antologia do Prêmio de Literatura Unifor - 2009

Uma das tarefas mais gratificantes para o profissional de Educação é participar de um evento em torno da Literatura, uma das ocupações mais estimulantes e enriquecedoras do espírito humano, como nos diz o escritor peruano Vargas Llosa. Um concurso Literário é sempre uma porta que se abre para ampliar os espaços da criação, visando exatamente à valorização da arte da palavra escrita.

Uma verdadeira universidade entende que o seu papel não se limita à mera formação profissional, mas se estende à formação do cidadão, que tem na leitura do texto literário uma atividade insubstituível, pois uma sociedade sem literatura escrita se exprime com menos precisão, riqueza de nuanças, clareza, correção e profundidade do que a que cultivou os textos literários.

Essa Antologia, que traz as 20 crônicas selecionadas no III Prêmio de Literatura UNIFOR, é uma comprovação de que a Universidade de Fortaleza tem visão de mundo humanística e investe no estímulo à produção artística em seu País. Assim, assumindo um relevante papel ante novos e experientes escritores, ela se coloca com responsabilidade na formação de uma sociedade não deformada pela visão estreita de que, num futuro próximo, só precisaremos de computadores, telas e microfones, não de livros.

Convido-os, pois, à leitura das crônicas aqui publicadas, todas de excelente qualidade estética, e, por meio delas, à criação de um universo encantatório que nos salve do tédio. É a literatura o antídoto mais perfeito para cumprir essa função. Sem ela, o que faremos com a nossa esperança de dias melhores? Onde colocaremos nossas lágrimas, nossos risos, nossa percepção sobre o que nos cerca? Bendita seja a nave que nos conduz a esse mundo feito de palavras, onde ainda se pode celebrar a vida e seus sabores acres ou doces.


Aíla Sampaio
(Coordenadora da Comissão Julgadora)

A PAISAGEM SOCIAL E HUMANA DE RAQUEL DE QUEIROZ




Na véspera do aniversário de 100 anos de nascimento da escritora Rachel de Queiroz, não se pode deixar de falar dela, sobretudo na terra em que ela nasceu e que fez cenário de várias das suas obras. A Bienal, ocorrida em abril, teve o seu nome como estro principal, com várias mesas e eventos sobre as suas obras. A TVC, no próximo dia 17, presta-lhe justa homenagem com a estreia da minissérie “1915 - O ano em que a terra queimou”, com 20 capítulos (de 5 minutos) baseados no romance O Quinze. Nesta edição, fazemos um percurso por sua produção literária, focalizando sua história e, sobretudo, seus três mais conhecidos romances: O Quinze, Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura.

RAQUEL E SEUS PRIMEIROS PASSOS

A menina que nasceu em Fortaleza, no dia 17 de novembro de 1910, começou a escrever muito cedo, certamente influenciada pelas muitas leituras que fazia na biblioteca de seu pai. À frente do seu tempo, driblou o preconceito contra as mulheres e, reservada sob o pseudônimo de Rita de Queluz, começou a publicar no Jornal "O Ceará", em 1927. Primeiramente, enviou uma carta ironizando o concurso "Rainha dos Estudantes", promovido pelo jornal. O diretor do veículo, Júlio Ibiapina, amigo de seu pai, surpreendeu-se com o sucesso da carta e a convidou para ser colaboradora. Entre outros textos, ela publicou o folhetim "História de um nome" — sobre as várias encarnações ‘de uma tal Rachel’ e organizou a página de literatura do jornal, o que lhe deu experiência e a fez respeitada num mundinho dominado pelos homens.
Depois de morar no Rio de Janeiro e em Belém do Pará, voltou com a família para Quixadá, onde exercitou suas leituras e plantou suas raízes. Formou-se professora aos 15 anos. Antes de completar os 20, convalescendo de uma congestão pulmonar na fazenda Não me deixes, ela escreveu o romance O Quinze, cujo título já explicita que o enredo remete a acontecimentos do ano 15 do século XX, quando o nordeste viveu uma avassaladora seca. Filha de fazendeiros, ela, criança, assistiu à procissão de retirantes passar à sua porta; viu-os esquálidos, famintos, mendigando comida, e guardou-os no arquivo da memória para transformá-los, anos depois, em seres de papel.
Lançando-se no cenário nacional em 1930, em plena efusão do romance moderno nordestino, ela encontrou espaço e fixou seu nome no regionalismo brasileiro, colocando-se ao lado de José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, seus contemporâneos e autores de romances igualmente emblemáticos sobre a seca: A Bagaceira e Vidas Secas.

Após o fim do seu primeiro casamento e a perda de sua única filha, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se casou pela segunda vez e desempenhou atividades como jornalista, romancista, tradutora, cronista e teatróloga. Em 1977, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Fixou residência fora do Ceará, mas nunca esqueceu sua terra, que ela fez questão de eternizar nos enredos de suas obras ficcionais.

Após o livro de estreia, publicou, em 1932, o romance João Miguel, a que se seguiram: Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), O galo de ouro (1950) e Memorial de Maria Moura (1992). Escreveu também as peças de teatro Lampião (1953), e A beata Maria do Egito (1958); os volumes de crônicas A donzela e a moura torta (1948), Cem crônicas escolhidas (1958), O caçador de Tatu (1967) e Mapinguari (1964-1976); e os livros infantis O menino mágico (1969), Cafute Pena-de-Prata (1986) e Andira (1992).

No dia 4 de novembro de 2003, enquanto dormia em sua rede, no seu apartamento carioca, deixou a vida. Esse símbolo de sua nordestinidade a acompanhou até o fim, pois, a pedido seu, o féretro que conduziu seu corpo foi forrado com uma rede, não dando, pois, por encerrado, seu amor às suas raízes.

A EXPERIÊNCIA DA FOME EM O QUINZE

O Quinze, publicado em 1930, tem no enredo a paisagem social e humana de um nordeste massacrado pela seca. O drama de retirantes como Chico Bento, Cordulina e filhos é o foco principal, mas outras questões submergem, como a situação da mulher na sociedade do início do século XIX. Conceição rompe com o modelo estabelecido para o sexo feminino, quando renuncia, a despeito do contexto adverso de sua época, ao destino de toda mulher sua contemporânea: o casamento e a maternidade.

O enredo, considerado por Bosi (1997, p.447) como neo-realista, é estruturado em dois planos: o drama do vaqueiro Chico Bento e sua família retirante; e a relação afetiva de Conceição, professora culta, de família tradicional, e Vicente, que, embora seu primo, é um rude proprietário de terras e criador de gado. Embora haja essas duas linhas condutoras da história, com personagens relevantes, a protagonista é a própria seca, responsável por todo o desenrolar das ações.

A narrativa investe na oralidade, demonstrando que o ciclo ficcional é brasileiro na base das fundações (ADONIAS apud COUTINHO, 1996, p. 277). É, também, psicológica, pois, na medida em que informa as ações dos personagens, expõe interrogações e dúvidas sobre o que poderia ter passado pela cabeça deles. Assim, o leitor convive com os fatos e com sua repercussão nos seres que os vivenciam.

A fome decorrente da seca é a grande vilã da história que tece o percurso trágico do vaqueiro, de sua mulher e seus filhos. Em função da falta de trabalho, a família é obrigada a imigrar para a cidade grande em busca de sobrevivência. A partir daí, se dá a tragicidade do destino: eles buscam sobrevivência, mas o que encontram é uma saga de dores e perdas, pois, as consequências da marcha são piores do que as já vivenciadas na região seca. De fato, ao deixarem a fazenda onde sempre viveram, deixam o habitat natural e suas raízes, com pouco dinheiro e muita esperança de chegar ao Norte, onde pensam conseguir emprego na extração da borracha.

Outra perda é a da dignidade, que, para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas na sua conduta, no exemplo que transmite os valores morais aos filhos, por mais humilde que ele seja. Chico Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata uma cabra que encontra pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais alto, e ele esfacela o animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se apropriar do alheio. O dono da caba aparece e, além de tomar-lhe a carne, chama-o de ladrão, humilha-o, sem querer ouvir justificativas. Dá-lhes apenas as tripas para saciarem a fome, nivelando-os, pois, aos bichos que comem vísceras jogadas no lixo: “Chico Bento perto olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados. - Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado! (...) - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com fome! - Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!” (QUEIROZ, 1930, p. 68-69).

Talvez a tragédia maior esteja no esfacelamento da família inicialmente composta de sete membros. O menino Josias, de 10 anos, num momento de fome, comeu mandioca crua, envenenando-se. Agonizou em morte lenta, sem que nada se pudesse fazer para aliviá-lo: "Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz" (QUEIROZ, 1930, p. 42).

Pedro, o mais velho, de 12 anos, à revelia dos pais, fugiu com comboeiros de cachaça, quando entraram na cidade de Acarape: "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?".
Chico Bento chega ao Campo de Concentração, em Fortaleza, apenas em companhia de Cordulina, sua mulher, e dos outros três filhos. O objetivo é conseguir uma passagem para o norte. Conceição, neta da fazendeira que era patroa do casal, os encontra em meio à multidão de famintos; depois de ajudá-los, arranjando uma passagem de navio para que eles viajem para São Paulo, a moça fica com o menino mais novo, Duquinha, de 2 anos, que está doente e é seu afilhado. Os dois – Chico e Cordulina - viajam em companhia dos dois filhos restantes, cuja identidade sequer é mencionada.

A fome é o elemento desencadeador do trágico, das perdas: A pobre Cordulina fica sem três dos seus filhos, chora durante dias, mas ainda tem ânimo para tentar a vida em São Paulo, eldorado dos retirantes nordestinos. Ela personifica a mulher submissa, sem instrução, que sofre, mas mantém a vida atrelada à do marido. Alienada, vive as dores calada, entregando à sorte o seu fado. Chico Bento é o tradicional vaqueiro pobre que vive a cuidar do que pertence a outros. Nada tem de seu para oferecer à família, senão a miséria do próprio destino. Para ele, a perda dos filhos não constitui tragédia, mas uma contingência. Vejamos a fala dele: “- Minha comadre, quando eu saí do meu canto era determinado a me embarcar para o norte. Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desanimou e pegou numa choradeira todo dia, com medo de perder o resto... Eu queria primeiro que a senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me arranjasse umas passagenzinhas pro vapor. Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o dia, ou quando Deus Nosso Senhor é servido de tirar..”. (QUEIROZ, 1930, p. 107).

A experiência da fome, embora coloque o homem em condição animalesca, não retira de Chico Bento os princípios arraigados. Leia-se a passagem em que ele encontra companheiros retirantes em situação de total miséria: “Um dos homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus” (QUEIROZ, 1930, p.42-43). Chico encarna a figura do homem nordestino, que pode se conformar com as dores da perda de entes queridos – cuja designação atibui a Deus -, mas nunca com a perda da dignidade. Ele não perde a sua generosidade, a sua capacidade de ver o outro como um ser humano.

Diante da cena, ele reparte os alimentos que leva para matar a fome da família, e não recua ante as indagações de sua mulher: “- Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e Florência no altruísmo singelo do vaqueiro se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haveria de deixar esses desgraçados roerem osso podre...” (QUEIROZ, 1930, p. 43).

Embora não haja, na história, a divisão clichê de "pessoas pobres e boas" e de "pessoas ricas e más", há a denúncia da corrupção, mostrando que existem os que se aproveitam da desgraça dos outros para levar vantagem: “- Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O propósito é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais...” (QUEIROZ, 1930, p. 33). Chico, entretanto, mesmo se revoltando, não permite que a miséria abale sua generosidade nem sua fé. As adversidades não retiram dele a esperança de dias melhores: parte num vapor sem pensar no passado, mas vislumbrando tão somente o futuro.


OS ROMANCES E AS MUITAS HISTÓRIAS

O segundo romance de Raquel é o mais social e político de todos, Caminho de Pedras, publicado em 1937, cuja trama transcorre no início do Estado Novo do ditador Getúlio Vargas. Paralela à luta política dos militantes, tem-se a história de Noemi, que deixa o marido, o ex-comunista João Jaques, por conta de uma paixão proibida, e se permite fazer suas próprias escolhas, enfrentando todos os percalços que a vida lhe irá impor, inclusive a perda de um filho ainda criança. Assume a luta política de seu segundo marido, Roberto, preso político e, no final, ainda idealista, grávida, torna-se símbolo da participação feminina na vida pública e sinal de esperança pela vida que cresce em seu ventre. São nítidas as críticas e as denúncias ao Integralismo e ao autoritarismo do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Já João Miguel tem como cenário o presídio de uma cidade do interior nordestino e, como protagonista, um homem simples: João Miguel. Alcoolizado, ele comete inesperadamente um crime e é logo preso; toda a sua história transcorre dentro do presídio, onde recebe a visita de Santa, companheira que o abandona por um cabo. Lá também está recluso o coronel Nonato, criminoso de outra classe social, preso somente pro ser da oposição política. A cadeia é um espaço circunstancial que se coaduna perfeitamente com a ação. O relato apresenta, predominantemente, os conflitos pessoais de João atrás das grades e finda com a sua liberdade e a falta de rumo depois de tanto tempo encarcerado.

Essa obra foi motivo de desentendimento entre Raquel e membros do Partido Comunista a que ela era filiada, na época, já que eles não admitiam que o personagem assassino fosse um homem do povo. A escritora, sentindo cerceado o seu processo criador, rompeu com o partido e não modificou o enredo conforme fora orientada por eles.
As três Marias, romance de formação, focaliza, inicialmente, a vida de três moças num internato feminino de orientação católica: Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória. É Maria Augusta (Guta) quem narra a história, os dramas e medos de cada uma. Fora do colégio, ela vive a adaptação ao mundo exterior, não se acostuma à vida e em casa, com a madrasta metódica, e se lança às duras experiências que a levam à maturidade como pessoa e como mulher. Afloram questões sociais e evidencia-se a análise psicológica dos personagens.
Maria Augusta (Guta) representa a inquietação da mulher em busca de seu espaço, de sua identidade. Enquanto Maria da Glória se dedica à família e Maria José se volta para a religião, ela se lança na vida, e, após relacionamentos amorosos mal sucedidos e um aborto, continua seus destino num processo sofrido de ajustamento ao mundo.

O galo de ouro foi publicado em folhetins na revista O Cruzeiro, em 1950, e editado como romance no ano de 1985. A ação, ambientada na Ilha do Governador, é diversa das dos demais: em todos os quarenta capítulos, convive-se com o submundo carioca de terreiros de macumba, mães de santo, bicheiros e policiais, o que, afinal, traça uma realidade tão áspera como a do chão nordestino que a escritora privilegia em suas tramas.

DÔRA E SEU PERCURSO DE DORES

Em 1975, Rachel publicou Dôra, Doralina, cuja ambientação inicial é o interior do Ceará, precisamente a fazenda Soledade, localizada em um município fictício denominado Aroeiras. Dividida em três partes, Livro de Senhora, Livro da Companhia e Livro do Comandante, a saga de Maria das Dores, ou Dôra, como prefere ser chamada, se desloca da fazenda Soledade para Fortaleza, depois para o Rio de Janeiro, fechando o ciclo ao retornar, no final, à fazenda. A história de dores e perdas é contada pela protagonista que, inicialmente frágil e dependente, torna-se uma mulher livre, emancipada, até apaixonar-se pelo Comandante de um navio, a quem se submete por opção e amor.

Dôra é uma personagem marcada pala dor. Perde o pai muito criança e é criada pela mãe – uma mulher dominadora, seca, que em vez do amor maternal lhe oferece a indiferença. Elas não se amam, mal se suportam numa competitividade pouco natural. Dôra talvez desejasse ter a força da mãe; ela a admira, acha-a robusta, rosada, enquanto se sente “um fiapo de gente” e tem, em casa, a posição de uma hóspede. Do outro lado, Senhora, quem sabe, desejasse a juventude da filha; não queria dividir com ela sequer as recordações do marido. Firmava-se numa postura de superioridade como se Dôra, por ser a mais nova e igualmente dona da fazenda, ameaçasse a sua posição.

Laurindo escolheu Dôra para casar-se pela idade e, principalmente, como diziam as más línguas de Aroeiras, porque, escolhendo Senhora, ele teria direito apenas a um pedaço daquela terra. Mas era Senhora, imediatamente, a dona do poder e, por isso, ele precisava ter as duas. Senhora aceitava, porque lhe era cômodo; tinha o seu homem, que era o homem da sua filha, com quem sempre parecia competir, mas permanecia com a sua liberdade e não perdia a proteção do título de viúva. Mas Dôra sabia que merecia mais do que aquele amor de conveniência; casou-se com ele por falta de opção, para mostrar à mãe que existia quem a desejasse. O casamento, entretanto, foi uma decepção; sequer o filho que geraram chegou a nascer.
É a decepção que dá impulso para que Dôra lute e consiga a sua liberdade. A Companhia de Teatro foi o passo seguro para a sua independência. Deseja um amor e não qualquer um, como o daqueles homens que se aventura a conhecer. Sabe conviver com o espírito malandro de Seu Brandini, sem que isso a incomode; torna-se atriz, enfrentando as adversidades da profissão, e não perde a sua essência de mulher correta, com princípios bem definidos, embora não queira se ater a nenhum questionamento a respeito do certo e do errado. A fase da Companhia é de liberdade e aprendizagem. O passado permanece como uma pontada bem do lado, que ela vai driblando sem anestesia.

Com o Comandante, Dôra abre mão da independência conquistada em nome do amor. A moça que enfrentava a altivez de Senhora e que não se submetia aos desmandos do primeiro marido, renuncia à profissão que confessadamente lhe agradava e se entrega de corpo e alma a um homem machista, contraventor, com vícios e ímpetos de violência. Ela cala, mas o seu silêncio é expressivo, conveniente. Ele lhe deu o amor que o pai não pode dar e que fez tanta falta, o mesmo amor que a mãe e o primeiro marido lhe negaram. Dôra jogou tudo para o alto, porque todo o resto ficava pequeno diante da sensação de amar com loucura e ser correspondida. Ela não se despersonalizou, porque soube pesar bem os seus desejos e, se cedeu, foi por ser forte. Se ela se tornou submissa e passiva, foi conscientemente.

Com a perda definitiva desse amor, uma metade foi extraviada. Mas ela não foi destruída; doeu tanto que ficou dormente. A sua chance de se reedificar foi no reencontro de suas raízes, foi assumindo o lugar que Senhora lhe tirou, enquanto viva. Reconstruindo a fazenda, ela tomou posse do condado de sua mãe e passou a ter a posição que outrora, inconscientemente, ambicionou. Só, mas com a certeza de ter-se dado a chance de conhecer a vida e o amor verdadeiro. Ela é a própria personificação da dor, porque a conheceu na carne; sobretudo porque viveu e, como dizia o Comandante, “a vida é toda um doer”.

MARIA MOURA – SÍNTESE DAS PERSONAGENS FEMININAS

Memorial de Maria Moura, a última criação ficcional de Raquel, surgiu em 1992,e trouxe uma trama ambientada no sertão, em meados de 1850, protagonizada por Maria Moura, a menina explorada sexualmente pelo padrasto que se transforma na líder de um bando, obstinada por construir seu império.

Sobre o processo criador, a própria autora declarou: “Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios”.

O livro tem narrativa polifônica: ora fala a personagem Marialva, ora o Beato Romano, Padre José Maria, Irineu e Tonho, ora Marialva; na maioria das vezes, a própria Moura conta sua saga ao leitor. A participação desses diversos narradores rompe a linearidade do enredo e faz com que se misturem as forças e as fraquezas, as virtudes e os defeitos, traçando um painel humano que obedece apenas à lei da sobrevivência, mesmo que isso implique a renúncia aos valores padronizados pela religião e pela sociedade.

Nas primeiras páginas, o leitor se depara com três núcleos que configuram histórias distintas que vão se entrelaçando: o de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Depois, surgem Marialva, Valentim e sua família. A narração dos últimos capítulos é feita por Moura e pelo Beato.

Maria Moura, depois de conquistar sua independência e seu poder de fogo na casa grande que constrói na Serra dos padres, conhece o amor, mas, ao ter que optar entre ele e sua fortaleza, decide por eliminá-lo. Cirino despertou seu coração, mas traiu sua confiança e ela não pôde perdoá-lo. Chorou furiosa, mas não abriu mão de sua hegemonia, embora admitisse estar apaixonada: O meu mal era aquela grande fraqueza por ele que eu sentia. Eu gostava de comigo chamar aquilo de amor. Mas não era amor, era pior. Não era cio(...) E eu me imaginando tão forte, tão braba. Era afronta - Era para acabar comigo(...) aquele coisinha ruim(...) solapar os alicerces do meu castelo! (...) por amor dos trinta dinheiro de Judas! E eu adorar um desgraçado desses, abri para ele o meu quarto, a minha cama, o meu corpo. Foi humilhação demais. Se ainda soubesse rezar, rezava, tão desesperada me sentia. (...) Como é que vou acabar com o Cirino, sem acabar comigo?(...) Como posso arrancar o coração para fora? Ninguém pode fazer isso e continuar vivo. E se me matasse com ele?(...) Não. Eu quero morrer na minha grandeza. Manda matá-lo, mas, a partir daí, já não encontra motivo para viver. Lança-se numa aventura praticamente suicida.

A Rachel de tantas faces, a do teatro, a da crônica, a de literatura e a do romance, é uma só: a menina que terminou Conceição quando, na madura idade, fez Maria Moura; é a mulher nordestina que celebrou sua terra, mas que teve como chão perene, na verdade, a condição humana. Rachel de Queiroz atingiu, com a criação de Dôra, a plenitude da personagem feminina iniciada em Conceição (protagonista de O Quinze) e finalizada em Maria Moura (protagonista do Memorial de Maria Moura), como afirmou Lourdinha L. Barbosa (1999). Suas personagens são tão fortes, tão frágeis, tão “humanas” como todas as grandes mulheres do mundo.

BIBLOGRAFIA PARA CONSULTA

BARBOSA, Maria de Lourdes Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: Caminhos e descaminhos. São Paulo: Pontes, 1999.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil.
São Paulo: Global Editora, 1996.
QUEIROZ, Rachel de. Dôra, Doralina. 18a. ed. São Paulo: Siciliano, 1992
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1930.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.



Aíla Sampaio – Professora da Unifor - E-mail: ailasampaio@unifor.br