quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A POESIA DECADENTISTA DE AUGUSTO DOS ANJOS

Considerações iniciais

Augusto dos Anjos é um poeta de difícil classificação dentro dos estilos de época. Orris Soares (1983 p.32), seu crítico mais fiel, declarou, com bastante propriedade, que o poeta não tem filiação em nenhuma corrente literária. Também Alexei Bueno (1994 pp.21-34) atesta que a sua poesia tem um caráter de independência extrema, quase de geração espontânea. A cronologia, entretanto, marca o seu aparecimento entre as últimas produções do Parnasianismo, quando o estilo sobrevivia ainda, paralelo às últimas notas simbolistas. Por uma questão didática, convencionou-se estudá-lo como um poeta de transição entre o Simbolismo e o Modernismo nascente, haja vista a comunhão de um espírito conservador (no que se refere à forma de seus versos) com um espírito extremamente renovador (o seu léxico destoa do elitismo lingüístico parnasiano e simbolista).

Por ser uma poesia independente e quase maldita, cujas imagens lembram nuances naturalistas, lançou-se o desafio de fazer um estudo sobre a predisposição do poeta para o horrível e a possível influência de Baudelaire; seguidamente, serão mostrados os versos que demonstram a escatologia, a decomposição, o pessimismo e o gosto do poeta pela dor, para ilustrar, dessa forma, os temas constantes das poesias do seu único livro: "Eu e outras poesias".


1. A predisposição para o horrível


Predeterminação imprescritível
Oriunda da infra-astral substância calma
Plasmou, aparelhou, talhou minha alma
Para cantar de preferência o Horrível!

Como revelam os versos do soneto "Minha finalidade", acima transcritos, Augusto dos Anjos parecia crer em sua predestinação para cantar o horrível. Sua formação determinista é constantemente reafirmada em seus versos, e a dor parece uma característica inexorável de sua existência. Em muitos poemas ele deixa entrever passagens de sua história, como se tivesse encontrado em sua própria vida desgraçada a inspiração para sua poesia singular, extremamente pessimista. Em Psicologia de um vencido, ele mostra o fatalismo da sua predestinação para o sofrimento como anterior mesmo à sua gestação: Sofro, desde a epigênese da infância / A influência má dos signos do zodíaco.

Muitos críticos que se debruçaram sobre sua obra viram traços biográficos insertos em seus textos e assinalaram sua propensão para o horrífico e o fúnebre, sempre relacionando-a à sua trajetória sofrida e amargurada. João Ribeiro (1994 p.75) diz que ele fez do seu verso a sua fantasia, tão negra e triste como a sua realidade. Álvaro Lins (1994 p.117) também afirma que a estética de sua poesia está diretamente ligada à sua aventura humana e constituição orgânica. Ainda analisando sua poesia num plano autobiográfico, José Escobar Faria (1994 p.142) afirma que a doença do poeta foi o leitmotif dos seus próprios versos, pois ele era todo revolta interior. Carlos Burlamaqui Kopke (1994 p.154) revela que sua obra manifesta instinto e compreensão, não pretende criar mitos nem partir à aventura, mas ser fiel à sua tese íntima, que é a de espelhar o sentimento trágico da vida. Wilson Castelo Branco (1994 pp.163-4) percebe grande identificação entre o retrato do poeta e a obra por ele escrita, e Antônio Houaiss (1994 p.172), a propósito do mesmo assunto, arremata: a vida de cada homem, de cada poeta, de cada produtor, é também uma obra – e as duas obras é que são a obra.

Não resta dúvida que a vida de Augusto dos Anjos está demais ressaltada em seus versos, amparados ainda pela cosmovisão de um espírito irrequieto. Partidário dos postulados Evolucionistas e Deterministas, adepto do Monismo e de todo o cientificismo imperante em sua época, o poeta era, como nos diz Antônio Torres (1994 p.56), uma materialista por cultura e idealista por temperamento. Naturalmente, trazia em si o combate travado entre o idealismo metafísico e o materialismo científico. Sentia-se, ao que nos parece, impotente diante do incognoscível e não conseguia desvendar o mistério universal pelo qual se debatia. Daí a morte como um dos seus temas prediletos, o que era uma forma de demonstrar a sua mais definitiva forma de impotência. As privações vividas e as decepções com as amizades que julgava sinceras fizeram dele um homem descrente, e isso tudo, aliado à provável influência do Decadentismo francês, fez a sua obra figurar como um registro ímpar na poesia brasileira do início do século XX.

2. A provável influência de Baudelaire

Uma das principais características da poesia de Augusto dos Anjos é a poetização do patológico, do horrível, do repugnante – traços que muito aproximam a sua obra da de Baudelaire, poeta do Decadentismo francês. Melhor falando, muito identificam os poemas do Eu (1912) com os de Les Fleurs du mal (1857).

Eudes Barros, no ensaio Aproximações e antinomias entre Baudelaire e Augusto dos Anjos (1994 pp. 177-8), diz que as aproximações entre a poesia do brasileiro com a do francês resultam de manifestações análogas de sensibilidade e inspiração efêmeras. Nega uma possível influência, enfatizando que não se é um poeta extremamente sofrido e angustiado como Augusto dos Anjos apenas por influência de outros poetas.

Evidentemente, não compreendemos que a angústia que Augusto dos Anjos expressa em seus versos tenha derivado da poesia de Baudelaire, mas acreditamos ter havido um processo de identificação desencadeador de uma possível influência. Há fortes indícios de que Augusto dos Anjos leu Baudelaire, como a repetição de temáticas como a decomposição, a escatologia, o sangue, entre tantas outras. Além do que se evidencia em seus textos, tem-se um dado relevante: em 1920, Orris Soares encontrou num sebo da Paraíba um exemplar da obra francesa citada, em cuja capa estava marcado, a carimbo, o nome de Augusto dos Anjos. Mais: o poema Une charogne estava assinalado a lápis vermelho, o que é uma demonstração simples de que a obra em questão foi lida por ele.

É incontestável o fato de se encontrar facilmente, em ambos, o trágico, o fúnebre e o repulsivo como símbolos de suas estéticas. Mostraremos, a título de exemplificação, algumas semelhanças. O sangue que aparece como fonte de inspiração em vários poemas de Augusto dos Anjos, entre eles Guerra – É a obsessão de ver sangue, é o instinto horrendo / De subir, na ordem cósmica, descendo / À irracionalidade primitiva... (p.181) e A obsessão pelo sangue – Acordou, vendo sangue... Horrível! / Frontal em fogo... Ia talvez morrer (p.204), está nos versos de A fonte de sangue - Tenho a impressão de que meu sangue em onda escorre, / Rítmico soluçar de nascente que morre. (p.135), de Baudelaire.

A autofagia, tema presente no poema baudelariano Um fantasma (parte I – As trevas) – Sou o pintor que de Deus a diversão / Fez na treva mover o seu pincel; Cozinheiro da gula mais cruel, / Cozinho e como meu coração (p.50), aparece nos versos de Solilóquio de um visionário – Para desvirginar o labirinto / do velho e metafísico Mistério, / Comi meus olhos crus no cemitério, Numa antropofagia de faminto! (p.104), na parte VIII de Os doentes – É possível que o estômago se afoite/ (Muito embora contra isso a alma se irrite) / A cevar o antropófago apetite, / Comendo carne humana, à meia-noite! (p.117), e em Vozes de um túmulo – Tântalo, aos reais convivas, num festim, / Serviu as carnes do se próprio filho. (p.126), do nosso poeta.

No poema A uma Madona, Baudelaire faz seu ex-voto ao gosto espanhol, consagrando a musa e falando da serpente – Este monstro a aumentar de ódio e de cusparadas (p. 71). Essa inesperada nota escatológica, sempre presente em poemas seus, freqüentemente é vista em poemas de Augusto dos Anjos, dos quais destacamos Cismas do destino, em que ele fala das ruas de Recife e interrompe para dizer da população doente do peito que tossia em sua alma, entre golfadas e cuspes: E o cuspo que essa hereditária tosse / Golfava, à guisa de ácido resíduo, Não era o cuspo de um só indivíduo / Minado pela tísica precoce (p.88). E continua falando de expectoração pútrida, saliva, escarro etc. Claro que todas essa palavras têm a ver com a sua doença, e provêm de sua convivência com os males dela provindos, mas ele não investiria na poetização desses termos sem antes tê-los visto utilizados, sobretudo porque, em sua época, predominava uma poesia elitizada, de vocábulo erudito e nobre.

Outra semelhança se encontra na propensão em transformar o que deveria ser lírico em algo verdadeiramente escabroso. No poema Uma carniça, Baudelaire transforma um passeio com a mulher amada num encontro fastigioso, ao descrever a carniça que encontrara pelo caminho e mostrar à mulher que aquele também é o destino dela: Minha beleza, então dirás ao verme que arruína, / Que há de roer-te o coração, / Que guardei a forma e a essência divina ? Do amor em decomposição (p.41). Augusto dos Anjos, no soneto III, dos Sonetos escritos para seu pai, em vez de celebrar saudoso a despedida, mostra um eu lírico mórbido e insensível ante o corpo sem vida: Podre meu Pai! E a mão que enchi de beijos / Roída toda de bichos, como os queijos / Sobre a mesa de orgíacos festins!... (p.136) É, sem dúvida, uma forma repugnante de falar do amor. A emoção da perda se extravia na imaginação do corpo paterno em decomposição sob a terra.

Estas são apenas algumas semelhanças entre os temas da poesia de Baudelaire e Augusto dos Anjos, ilustradas também com apenas alguns textos de suas obras. Evidentemente o que dissemos não esgota o assunto nem fecha questão quanto à certeza da influência da obra As flores do Mal sobre os poemas do Eu, mas, com certeza, possibilitam a percepção de que o nosso poeta escreveu uma obra bem parecida com a do francês. Tal exposição, embora nada prove, mostra que Augusto dos Anjos não foi o precursor da estesia do repugnante. O espanto causado, na época, pela publicação do Eu não atesta nenhuma originalidade à obra, embora ela tenha o seu valor próprio.

3. A poesia escatológica

Como já se comentou, Augusto dos Anjos tornou poéticos elementos a-poéticos, criando, tantas vezes, uma espécie de sublime escatológico. No longo poema As cismas do destino, texto impregnado de fatos referentes à doença que o acometeu e levou-o à morte, o poeta toma a missão de ser a consciência e a voz da dor universal, fazendo-se possuidor empático das misérias sociais, fisiológicas e genéticas, como bem assinalou Bueno (1994 p.26). Vejamos a forma escatológica como ele transmite sua mensagem:

Era antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

No soneto "Idealização da humanidade futura", ele concebe a impureza dos ímpetos humanos como oriunda da hereditariedade. Nos versos acima, a “tosse” dos indivíduos provém do mesmo fator, mostrando, pois, sua crença na predisposição genética do ser humano. Ele, o indivíduo minado pela tísica precoce, incorpora ao seu mal o de toda a humanidade, dimensionando, assim, a gravidade das próprias mazelas e estendendo-as a toda a raça que violou as leis da Natureza, ou seja, que ultrapassou os próprios limites.

Ainda em As cismas do destino, ele faz um louvor às secreções provenientes da doença. O vocabulário é contundente e causa repugnância pela alusão aos excrementos pútridos que, embora humanos, trazem no seu teor o nojo generalizado:

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essa glândulas,
Quem quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do Cristianismo!

Por que, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!


Ele não apenas blasfema, atentando contra a moral do Cristianismo, colocando-a como inferior a um escarro. Valoriza o seu “cuspo” por encontrar nele um meio para externar o seu nojo pela espécie humana que julga canalha.

Os bêbados desfilam como personagens do mesmo poema e são o motivo do discurso escatológico dos próximos versos:

Nas agonias do delírio-tremens,
Os bêbados alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Na parte III de "Os doentes", o espetáculo natural da sua vida é a convivência com a tuberculose. O poeta, espontaneamente, revela o drama dos tísicos:

Oh! desespero das pessoas tísicas,
Advinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a dessas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!
..........................................
Falar somente uma língua rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!

A certeza da efemeridade do ser humano, exposto a tantas leis que regem o universo, o faz invejar as coisas submetidas apenas às leis da física, por serem permanentes e intocadas pelo sofrimento. A doença é uma inevitável condenação à morte, é a certeza da sua proximidade. O seu cotidiano era marcado pela imposição de limitações oriundas da sua saúde frágil. Com os excrementos, ele sentia expelir também a sua existência; mas o que mais o alucinava era enxergar a consciência na podridão deles.

Todo o poema "Os doentes" faz desfilar as mazelas fisiológicas e sociais que seriam a causa da extinção da humanidade. E Augusto dos Anjos não resiste ao prazer mórbido e imaginário de tal extinção, para assistir ao advento do grande feto que viria a ser o substituto de sua raça:

Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!

O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna,
O vagido de uma outra Humanidade!

E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!

O seu ceticismo atinge um grau extremo. A busca do nada, simbolizada pelo nirvana, parece reproduzir um culto ao budismo e representar a sua salvação. Quando a espécie se extinguisse, ele não mais estaria incluído nela, já teria atingido a forma etérea do nada e seria apenas um satisfeito espectador. A morte passa a ser, para ele, um não-ser possivelmente mais feliz do que o ser, um pulo no nirvana, como afirma Álvaro Lins (1994 p.125).

A propósito, Jamil Haddad (1958 p.58), no prefácio para a sua tradução de As flores do mal, diz que o termo budista de mais fortuna na poesia simbolista brasileira foi nirvana – uma evidência do pensamento de Schopenhauer, o primeiro budista oriental, nas obras de uma geração desalentada.

É, ainda, pertinente salientar que os versos do poema acima transcrito trazem três temas ressaltados por José Carlos Seabra Pereira (1975) como característicos da poesia decadentista e simbolista: a morbidez, a estesia do repugnante, e a tematização do fim da raça. O que mais choca, no entanto, é a naturalidade com que flui o discurso escatológico, a crua realidade expressa, sem pudores, a morbidez do desejo de assistir à extinção da própria espécie.

4. A poesia da decomposição

A certeza da perecibilidade da carne é conscientemente notificada por Augusto dos Anjos. O espírito funéreo que motiva a sua imaginação poética transparece uma mórbida insensibilidade ante a decomposição da matéria. Nos dois tercetos de "Psicologia de um vencido" ele diz:

Já o verme – este operário das ruínas –
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos
Na frialdade inorgânica da terra!

Pouco lhe importa o corpo que carrega a sua alma, ele é só um invólucro. Não o enjoam os microorganismos que sob a terra pululam – entende a função deles e até louva o papel que têm um verme, num soneto a eles dedicado ("Deus-Verme"):

Fator universal de transformismo.
Filho da teleológica matéria,
Na superabundância ou na miséria,
Verme – é o seu nome de batismo.
............................................
Almoça a podridão das drupas agras,
Janta hidrópicos, rói vísceras magras
E dos defuntos novos incha a mão...

O que lhe importa é a transmudação da matéria. Acreditava no Evolucionismo panteísta e na unidade das espécies e via na morte, ou seja, na desintegração dos corpos, a transformação da energia. O corpo é que acabava; a alma, não, porque, como cria nos versos do poema Gemidos da arte, a carne é que é humana. A alma é divina. E o verme é concebido como um fator de transformismo por alimentar-se da carne podre dos mortos, fazendo-a integrar-se à frialdade inorgânica da terra, onde se transmuda. A crença no transformismo é plenamente reafirmada na seguinte estrofe do poema Os doentes:

Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece,
Na universalidade do Carbono.

Para ele, as espécies possuíam a homogeneidade postulada por Herbert Spencer. Assim, o ser humano poderia perfeitamente ressurgir como mineral.

E a morbidez se instaura até onde a natureza lírica deveria prevalecer. A sensibilidade emanada dos sonetos I e II da seqüência de três, que ele dedica ao pai, converte-se no discurso horrendo do terceiro, onde o poeta alude, friamente, à putrefação do corpo querido:

Podre meu Pai! A morte o olhar lhe vidra.
Em seus lábios que os meus lábios osculam
Microorganismo fúnebres pululam
Numa fermentação gorda de cidra
..............................................
Amo meu pai na atômica desordem
Entre as bocas necrófagas que o mordem
E a terra infecta que lhe cobre os rins!

O repugnante e o disforme se irmanam ao fúnebre e aparecem em imagens repulsivas e lancinantes, longe de qualquer comoção ou apelo sentimental. É a estética do repugnante, a poesia da decomposição o disfarce de sua alma sensível, transfigurada pelo sofrimento e impregnada pelo desalento de um mundo frio e demasiado cruel.

Nem o sue próprio corpo é poupado da mosca alegre da putrefação. A imagem que parece inimaginável para a maioria das pessoas, para ele não tem a menor importância, como se lê em seu Budismo moderno.

Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

A morte da matéria é fatal, também a sua decomposição, por isso não o incomoda; incomoda-o não poder eternizar-se através de suas idéias, de suas concepções, de seus versos.

5. O pessimismo exacerbado

Apesar de afeito aos postulados Evolucionistas de Darwin e Spencer e adepto do Monismo, sistema totalizador místico de Ernest Haeckel, doutrinas que resvalam um mecanismo quase otimista do caráter evolucionista do universo, Augusto dos Anjos apresenta, em quase todos os seus versos, um pessimismo exacerbado, que arriscaria até a dizer de origem schopenheuriana, condutor de um forte elemento de negação da vida enquanto criadora do sofrimento.

Embora não invistamos normalmente na análise literária baseada em dados biográficos, no caso de Augusto dos Anjos é inevitável não associar o fato de ele ter experimentado privações financeiras, sofrimentos e decepções ao espírito desenganado e taciturno que ele transparece em sue poesia. Ainda menino, viu sua família perder o Engenho Pau D’arco e o status social promissor de origem. Vivenciou o desequilíbrio emocional da mãe, iniciado na sua gestação, e cresceu com o rigorismo adotado pelo pai na sua formação intelectual (ALMEIDA, 1987 p.55). Já adulto, almejou se afastar do cargo de professor do Liceu paraibano para tentar a carreira literária no Rio de Janeiro; casado e à véspera de ser pai, solicitou a manutenção do vínculo empregatício ao Presidente do Estado, que se dizia seu amigo; recebeu uma negativa grosseira e, sem opção, foi obrigado a se demitir. O desencanto com a terra natal impulsionou a sua ida para a cidade maravilhosa, onde sonhava publicar o seu livro e conquistar as posições desejadas tanto no magistério como na imprensa. Os sonhos, porém, não se realizaram: ele não conseguiu emprego, a sua esposa, diante de tantas privações, perdeu o filho, e nenhuma editora se interessou pela publicação do seu livro. Partiu para uma publicação particular, dividindo as despesas com o irmão, mas não conseguiu nenhum reconhecimento como poeta, pois o seu estilo não foi compreendido, nem poderia ser, já que imperava, ainda, o estilo nobre dos poemas parnasianos e simbolistas. Restou-lhe a pobreza, o agravamento de sua doença e as próprias convicções.

O poema "Versos íntimos", que transcreveremos na íntegra, demonstra total descrença na amizade entre os homens, como a refletir as amargura das decepções vivenciadas:

Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

É patente a articulação de um profundo pessimismo e a descrença absoluta no relacionamento entre as pessoas. Todo ser é só; ninguém é solidário na desgraça. A humanidade é concebida como um conjunto de seres que de digladiam através da falsidade e da ingratidão, revelando uma alma amargurada e niilista de quem acreditou, em vão, na amizade sincera. Contrafeito, o poeta instiga a ferocidade recíproca e a recusa formal a qualquer manifestação de amor e carinho.

O pessimismo fatalista e o desengano, de acordo com José Carlos Seabra Pereira (1975), constituem temas peculiares à poesia decadentista e simbolista, bem como a presença das letras maiúsculas alegorizadoras em palavras chaves do poema: Homem e Ingratidão. Tem-se ainda a presença do Determinismo de Taine na sugestão de que o homem é obrigado a se transformar por causa do meio, e do Evolucionismo de Darwin: por uma questão de sobrevivência, quem mora entre feras tem de se transformar em fera ou sucumbe.

A mesma concepção pessimista da humanidade se repete no soneto "Idealismo", no qual o poeta concebe o amor como uma grande mentira:

Falas de amor, e eu ouço e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isso que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
..............................................
Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializada
- Alavanca desviada do seu fulcro –

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

Certo de que na vida o que prevalecia era a matéria, a superficialidade, o poeta só acreditava na possibilidade de amor verdadeiro através da imaterialização. Portanto, só na morte era possível a revelação do sentimento puro, porque o amor atingia a essência etérea e sagrada, desprovida de qualquer contaminação mundana. O tema da morte como transcendência, constantemente evocado em seus textos, mostra sua incontestável origem simbolista.

Constantemente preocupado com as relações humanas, ele nos mostra sua Idealização da humanidade futura, resvalando uma perspectiva desesperançosa:

Rugia nos meus centros cerebrais
A multidão dos séculos futuros
- Homens que a herança de ímpetos impuros
Tornara etnicamente irracionais!
..............................................
Como quem esmigalha protozoários
Meti todos os dedos mercenários
Na consciência daquela multidão...

E, em vez de achar a luz que os céus inflama,
Somente achei moléculas de lama
E a mosca alegre da putrefação!

Mais uma vez o determinismo: o homem é condenado à impureza por uma questão genética. Não há esperança de uma humanidade melhor, porque a luz, símbolo das idéias e da inteligência, vem, na posteridade, substituída pela degeneração espiritual da consciência, o que está sugerido nas metáforas “mosca alegre da putrefação” e “moléculas de lama”.

A razão da amargura universal provém da incapacidade humana de uma visão totalizadora. Além de sentenciar a lágrima como o único direito do homem na superfície do planeta, o poeta o reduz a um ínfimo acidente na cadeia das espécies (BUENO, 1994 p.25) nos duros versos de "Homo Infimus":

Homem, carne sem luz, criatura cega,
Realidade geográfica infeliz,
O Universo calado te renega
E a tua própria boca te maldiz.
...........................................
Deixa atua alegria aos seres brutos,
Porque na superfície do planeta,
Tu só tens um direito: - o de chorar!

As próximas estrofes, extraídas do poema "As cismas do destino", justificam a sua tenebrosa sentença:

Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquirições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!
..............................................
Porque, para que a dor prescrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes,
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

Observe-se a incapacidade atribuída ao homem como própria de sua espécie. De nada adiantam as perquirições sem pausa, a ciência, se não se é capaz de entender a dor e enxergar os semelhantes. Sem a concepção unificadora dos seres e das coisas, é impossível compreender os fenômenos alegres, a razão das lágrimas e a complexidade universal. E o poeta se inclui entre os sentenciados; é o magro homem impotente para apreender a razão científica de todos os fenômenos. Como bem afirmou Manuel Bandeira (1994 p.114-6), a grande aspiração de Augusto dos Anjos era dominar todos os contrastes, resolvê-los na unidade do todo. Mas, o que ele via era o homem grande oprimindo o pequeno (As cismas do destino), as mazelas sociais sem remédio, a dor e a doença geral resultante da falta de amor, da ausência de reflexão e solidariedade.

Desta forma, a consciência humana não escapa ao seu severo julgamento no soneto "O morcego":

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este Morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.
..........................................................
A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

A consciência está metaforizada da figura do notívago mamífero que tem como característica a cor preta e a feiúra demasiada. Além da aparência horrenda, se destaca a insistência veemente do quiróptero, que se relativiza à consciência devedora que aterroriza o homem no momento em que ele se recolhe em si mesmo.

O ceticismo do poeta estende-se, por vezes, até aos postulados a que aderiu (no poema "Os doentes"):

Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundando nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabelos se arrepiaram.

Os evolucionismos benfeitores
Que por entre os cadáveres caminham,
Igual a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer às flores!

Ele sabia que, por mais que pensasse, fracassava ante o incognoscível e que qualquer sistema perdia a sua eficácia quando confrontado com a morte – senhora absoluta de tudo, como ele afirma num trecho do poema "As cismas do destino":

O espaço – esta abstração spencereana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

Incomodava-o a fragilidade humana diante do enigma da existência. Vejamos o último terceto do soneto O sarcófago:

Dói-lhe, em suma, perante o Incognoscível,
Essa fatalidade de ser grande
Para guardar unicamente poeira!

A insistente preocupação metafísica com os mistérios do universo e a necessidade de apreender o inapreensível fizeram com que o poeta, insatisfeito com a incompletude dos postulados filosóficos vigentes, mergulhasse nos próprios questionamentos para compreender o que nem Spencer nem Haeckel compreenderam:

Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substancias vivas
Que nem Spencer, nem Haekel compreenderam....

Tendo concebido tais enigmas como uma esfinge (que se não decifrada, devora) e convivido como uma humanidade incapaz de entender a irmandade cósmica dos seres e das coisas, Augusto dos Anjos alcançou um pessimismo extremo, que abalou a concepção humanística de sua alma sensível. Só lhe restou reduzir o homem a uma engrenagem de vísceras vulgares ("Monólogo de uma sombra") perecível e aleatória.

Nos seus Poemas esquecidos (publicação póstuma) aparecem versos menos desalentadores, entre eles A esperança, que ainda traz a morte como possibilidade de transcendência do sofrimento, e Amor e crença, cujo título já parece mostrar um homem redimido de sua dor e de sua revolta, ou pelo menos mais aliviado, com a fé restaurada; vejamos os últimos versos:

Deus é o templo do Bem. Na altura imensa,
O amor é a hóstia que bendiz a crença,
Ama, pois, crê em Deus e... sê bendita!

Mais uma vez ele afirma que só o amor é capaz de salvar a humanidade.


6. O gosto pela dor

A dor, parece-nos, quando constante, anestesia o organismo que acomete, e este, numa espécie de auto-defesa, reage se tornando insensível. É como se, ao ultrapassar os limites de tolerância humana, ela deixasse de ser sentida ou se tornasse normal. Uma forma, pois, de transcendê-la é permiti-la e suportá-la, porque inevitável, até ajustar a sobrevivência ao seu impositivo comando. A dor física, a dor moral, a dor de existir tudo é sintoma de transgressão da normalidade; mas, no texto literário, sobretudo nas correntes espiritualistas, como o Simbolismo ou de extrema negação da vida, como o Decadentismo, a dor é só mais um tema poético e o ajustamento desse sujeito a ela parece fácil. Assim, a algolagnia constitui um dos temas marcantes da poesia simbolista e decadentista, de acordo com José Carlos Seabra Pereira (1975). A poética de Augusto dos Anjos se ajusta perfeitamente a essa tendência ao desengano e à banalização do sofrimento. O poema "Budismo moderno", por exemplo, é um verdadeiro desafio à dor:

Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!

Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
Também, das diatomáceas da lagoa
A criptógma cápsula se esbroa
Ao contato da bronca destra forte!

O eu lírico se mostra insensível à própria morte, pouco se importando com a decomposição do seu corpo. A nota fatalista, constante em sua poesia, está simbolizada no urubu – a ave negra que se alimenta de carne putrefada, aqui simbolizando a má sorte que o persegue. A dor passa a ser fator de libertação já que implicará a dissolução da vida. Causa ainda mais estranheza a inclusão nos versos da espécie aquática das diatomáceas. Alexei Bueno, no ensaio Augusto dos Anjos: origens de uma poética (1994 p.22), nos dá uma contribuição cabal para a compreensão da metáfora, quando assinala que

a incorporação desses seres ínfimos, desses microorganismos que nos são tão estranhos quanto o próprio nome que os designam, está perfeitamente no plano do poeta, porta-voz da essência de todos os seres, e não apenas do homem. /..../ quando o poeta se refere às “diatomáceas da lagoa”, cuja cápsula é bruscamente desfeita pelo contato involuntário da mão humana na superfície da água, cria uma originalíssima metáfora de sua própria fragilidade, que um golpe qualquer de uma força superior pode destruir, ao mesmo tempo que se identifica, na solidariedade dos condenados à morte, a essa vidas mínimas que também o são.

Sabendo de sua fragilidade e perecibilidade, o poeta se insensibiliza com a morte. Importa-lhe apenas a permanência dos seus versos, quando, no final do mesmo soneto, revela querer a eternidade, ainda que apenas através de suas idéias:

Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!

Leiamos o seu "Hino à dor", o mais perfeito exemplo de algolagnia em sua poética de desespero:

Dor, saúde dos seres que se fanam,
Riqueza da alma, psíquico tesouro,
Alegria das glândulas do choro
De onde todas as lágrimas emanam...

És suprema! Os meus átomos se ufanam
De pertencer-te, oh! Dor, ancoradouro
Dos desgraçados, sol do cérebro, ouro
De que as próprias desgraças se engalanam!

Sou teu amante! Ardo em teu corpo abstrato.
Com os corpúsculos mágicos do tato
Prendo a orquestra de chamas que executas...

E, assim, sem convulsão que me alvorece,
Minha maior ventura é está de posse
De tuas claridades absolutas!

A contingência da dor está em todas as coisas e é a causa da maior ventura do poeta que a concebe como claridade absoluta, em vez de escuridão; dá-lhe, assim, uma dimensão positiva e não negativa. Ela é cantada como saúde dos seres, riqueza da alma e psíquico tesouro. Os versos transmitem o prazer (mazoquista(?)) de louvar a abstrata amante e atribuí-la qualidades apenas positivas, até organicamente falando, como está no primeiro quarteto - Alegria das glândulas do choro. Um provérbio poderia justificar tal apologia: Não pode vencê-lo, junte-se a ele; ou um verso de uma canção da Música popular brasileira, composta no final do século XX: a liberdade está na dor (Fogueira – Ângela RôRô);. Ou seja, a celebração da dor dá-se pela aceitação de sua inevitabilidade e converte-se em transcendência espiritual (o que era a grande aspiração dos simbolistas).

Sânzio de Azevedo (1970 p.57), no ensaio Augusto dos Anjos ontem e hoje, expõe este soneto como exemplo de simbolismo na poesia do paraíbano, ressaltando a semelhança com a poesia de Cruz e Souza, notadamente no último terceto. O mesmo texto também chamou a atenção de Raul Machado (1994 p.108) que, falando da técnica literária, salienta, entre outras virtudes, os versos escorreitos e rigorosamente escandidos, com reboante ondulação rítmica e a imponência plástica que convinha à grandeza do plano arquitetal das estrofes. Assim, vê-se a face conservadora do nosso poeta de transição (como falei no início deste trabalho): ele não apenas externa o seu melancólico mundo, mas mostra uma arraigada convicção de filosofia estética.

A angústia de não encontrar uma explicação científica para todos os fenômenos, como já se disse, e a certeza da existência transitória, minada pela doença, fizeram do poeta um homem desencantado. A tristeza e a melancolia substituíram a alegria e o prazer, como atestam estas duas estrofes de "Queixa noturna":

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a tristeza é minha única saúde.
.....................................

Melancolia! Estende-me a tu’asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este monstro que fugi de casa.

Observe-se as antíteses: A alegria é uma doença / a tristeza é a saúde. O sofrimento inverte os valores: a melancolia é a árvore que o acolhe / o prazer é um monstro. Assim, o sujeito poético resvala o seu estado de espírito constantemente mergulhado na amargura e descrente dos regozijos; a ventura passa a ser, por imposição das suas próprias limitações, a dor, a tristeza, a melancolia. Note-se, ainda, em meio à doença espiritual que o torna um legítimo decadentista, um traço marcadamente simbolista: a presença das letras maiúsculas alegorizadoras que particularizam a grafia e dão ênfase às palavras chaves do poema: Alegria, Tristeza, Melancolia e Prazer – os pares antitéticos.

Assim, a mágoa faz naturalmente parte da sua existência e, no soneto Eterna mágoa, é colocada como uma condenação do homem sentenciado ao sofrimento. Nem a morte é capaz de libertá-lo, o que é outro traço demasiado decadentista, já que para o simbolista a morte liberta (mors liberatrix). Confiramos:

O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!
................................................
Sabe que sofre, mas o que não sabe
É que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
É essa mágoa que o acompanha ainda.

Estes versos sugerem que o poeta cultua a dor e o sofrimento por julgá-los inerentes aos seres humanos, como uma predestinação da qual não se pode fugir. Se resistir em aceitar o carma, só conseguirá aumentar e aprofundar a própria chaga. E, como esses sentimentos foram os seus companheiros inseparáveis, ele os poetiza, ora concebendo-os como positivos, raramente lamentando-os e, na maioria das vezes, atribuindo-os ao determinismo. Optou por cultivá-los como uma riqueza de sua alma, como uma marca inevitável de sua personalidade poética.

Descrevendo o biótipo de Augusto dos Anjos, Orris Soares (1983 p.30) faz uma perfeita correspondência entre os traços físicos e a sua vida interior:

Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demônio torturado /.../ os cabelos pretos e lisos apertavam-lhe o sombrio da epiderme. A clavícula, arqueada. No omoplata, o corpo estreito quebrava-se numa curva para diante. Os braços pendentes, movimentados pela dança dos dedos, semelhavem duas rebecas tocando a alegoria dos seus versos. O andar tergiversante, nada aprumado, parecia reproduzir o esvoaçar das imagens que lhe agitavam o cérebro.

Embora diga que essa fisionomia por onde erravam tons de catástrofe traía-lhe a psique, por ser a sua alma uma água profunda, onde luminosas, se refletiam as violetas da mágoa (Idem p.31), não nega que, para o poeta, a única força criadora e redentora era a dor. A sua figura, assim talhada, reproduz a própria encarnação do sofrimento e, não obstante, da resignação.


Considerações finais

Como vimos, a poesia de Augusto dos Anjos nos possibilita uma experiência estética, no mínimo, inusitada. O vocabulário contundente, tomado por empréstimo, ora à ciência, ora às coisas mais simples do nosso dia-a-dia, mostra a criatividade de um poeta imperativo, capaz de versificar até os seus dramas de homem doente, preocupado com as mazelas de toda a humanidade.

Impregnado pelas idéias de Darwin, Spencer e Haeckel, acreditava no Evolucionismo panteísta e na unidade de todas as espécies, mas não conseguiu desvendar os labirintos dos mistérios do universo e acabou por crer que nem a ciência nem a filosofia tinham poder quando confrontadas com a morte – a única certeza absoluta do ser vivo. Frustrado com a impotência humana perante o desconhecido, desenvolveu um espírito pessimista, não raro niilista, e encontrou respaldo no pensamento shopenhauriano que, penetrado pelo budismo, apontava o nirvana como uma possibilidade de fuga.

Ora simbolista, ora parnasiano, ora moderno, ele erigiu sua criação poética em temas como o pessimismo fatalista, o culto à dor, a morbidez, o horrífico e o fúnebre, bem ao modelo dos poetas malditos do Decadentismo francês. A estranheza que emana de seus versos não se deve apenas ao excesso de termos científicos; emerge, principalmente, da sua propensão para o horrível, a podridão, a desgraça. Álvaro Lins (1994 p.125) diz que essa tendência vinha da sua constituição de homem doente, desorganizado, devastado pelo desequilíbrio dos hipocondríacos. Acreditamos que não apenas disso, mas, também, da influência do Decadentismo, sobretudo de Baudelaire – o que somente foi possível graças à sua predisposição natural, orgânica que se revela no conteúdo da sua própria história (e se realiza em sua poesia).

Independente das razões que o levaram a compor sua opulenta obra, ela tem o seu valor assegurado tanto pela beleza de seu exercício estético, como por fazer jus ao grande anseio do poeta, que era eternizar-se através de suas idéias, como nos revela no soneto O meu nirvana.

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