quinta-feira, 11 de outubro de 2007

“Boquinhas pintadas”: Uso do kitsch como estética de desconstrução?

Introdução

O romance "Boquinhas pintadas", do escritor argentino Manuel Puig, cujo estilo é marcado pelo kitsch, tem provocado interpretações as mais variadas. A fragmentação e o excesso de lugar comum, para alguns, constituem falta de estilo; para outros, podem ser interpretados como uma forma transgressora de ver o mundo e conceber a arte. É, pois, o kitsch, na obra de Puig, uma forma pensada de desconstrução dos padrões literários ou apenas mais um exemplo de mau gosto na literatura?

Quem é Manuel Puig

Manuel Puig é um escritor argentino, nascido em 1932, que acabou transferindo sua paixão pelo cinema para a literatura. Escreveu A traição de Rita Haywort (1968), obra em que expõe a vida de uma cidade argentina, por volta dos anos 30 e 40, mostrando a alienação das pessoas, completamente dominadas pelos mitos cinematográficos, depois, Boquinhas pintadas (1969), uma crítica à sociedade argentina conservadora, e The Buenos Aires Affair (1973), a história de uma artista plástica ninfomaníaca criada por uma mãe histérica. Nesta, Puig, além de refletir temas como sexo e morte, mescla o dramático e o cômico para fazer denúncia política da Argentina dos anos 70.
Em 1976, fez O beijo da mulher aranha, cujo enredo centra-se no relacionamento de um preso político e um homossexual, seu companheiro de cela. Durante sua temporada no Brasil, nos anos 80, ele o adaptou para o teatro e para o cinema. Depois de escrever Cai a noite tropical (1988), mudou-se para o México, onde morreu em 1990.
Apaixonado pelo cinema, estreou na literatura justamente com uma história que mostra seu fascínio pelas estrelas da antiga Hollywood, reflexo de sua vida na pequena General Villegas, nos pampas argentinos, onde desde criança assistia diariamente aos filmes em companhia da mãe. Esse hábito desenvolveu nele verdadeiro fascínio pela linguagem das telas, que passou a transpor para o papel em forma de melodrama, o que levou muitos críticos a considerarem suas obras como kitsch. Escrevendo narrativas em forma de roteiro, inspiradas em trechos de filmes, sobretudo nos clássicos hollyoodianos e nos dramas burgueses, encontrou espaço para a ferrenha crítica social. Por conta dessas críticas, no período da ditadura militar foi ameaçado de morte pela Aliança Anticomunista, que o perseguiu tanto pelo fato de ser homossexual como pelo modo sempre irônico com que retratava a sociedade de seu país.

O que é o Kitsch

Kitsch, palavra de origem alemã (verkitschen), designa valores estéticos distorcidos e/ou exagerados, o que ocorre, no caso do texto literário, através do uso de estereótipos, chavões, lugares-comum, floreados. O escritor passa, com a utilização desse modelo, a ter um estilo-marcado-pela-ausência-de-estilo. Ou seja, faz uma literatura “menor”.
O ponto alto do kitsch, segundo Abraham Moles, autor do livro O Kitsch, está no comércio e no desejo de consumo da sociedade emergente que acaba impondo normas à produção artística, ao exigirem a possibilidade de aquisição de produtos artísticos que não têm poder aquisitivo para possuir. Contentam-se, dessa forma, com reproduções e cópias a baixos preços. A partir da segunda metade do século XIX, o mercado começa a produzir produtos que são reprodução e que visam agradar às classes médias: são peças confeccionadas a partir de novos materiais que nunca se apresentam como são: a madeira é pintada imitando o mármore; os objetos de zinco, bronzeados; as estátuas de bronze são pintadas de dourado etc. O kitsch apresenta-se, desse modo, como a arte que está ao alcance do homem, disponível nas vitrines e casas comerciais, não como a autêntica que não está de acordo com o poder de consumo do povo.
No Brasil, especialmente, toma-se como kitsch o que se considera brega, de mau gosto. No território das artes, temos, como exemplo, a música de duplo sentido, a dor-de-cotovelo, os textos melosos ou, no caso da arte cênica e da literatura, os melodramas lacrimosos. Nada mais irônico do que falar da sociedade, associando-a ao kitsch, que ela tanto rejeita como um valor distorcido da beleza que cultua.

Boquinhas pintadas – a obra

A obra, escrita em 1969, tem o título retirado de um fox-trot musicado e gravado por Carlos Gardel, chamado “Rubias de New York” (A letra é de Alfredo Le Pera):

Peggy, Betty, July, Mary, / rubias de New York, / cabecitas adoradas /
que mienten amor. / Dan envidia a las estrellas, / yo no se vivir sin ellas./
Betty, July, Mary, Peggy, de labios en flor. /// Es como el cristal / la risa loca de July,/
es como el cantar de un manantial. /Turba mi sonar /el dulce hechizo de Peggy,
su mirar azul / hondo como el mar. / // Deliciosas criaturas perfumadas, quiero el beso de sus / boquitas pintadas./Fragiles mulecas / del olvido y del placer; / roen su alegria, / como un cascabel. /// Rubio cocktail que emborracha, / asi es Mary./ Tu melena que es de plata / quiero para mi. / Si el amor que me ofrecias /solo dura un breve dia, tiene el fuego de una brasa / tu pasion, Betty.


A inspiração já diz muito: os tangos são essencialmente trágicos, melosos, como é o enredo do romance, estruturado em fascículos, não em capítulos. Essa estratégia, marca a natureza da escrita entrecortada de uma obra (aparentemente) feita aos poucos, como uma tela de mosaico, e também publicada aos poucos, exatamente como os folhetins.

Juan Carlos, personagem central, parece ser o personagem e a própria voz que canta o tango, pois diz amar a loira Nélida, mas conquista a culta Mabel, num romance efêmero, tira a virgindade de uma menina de 13 anos e se envolve com uma viúva, além de insinuar-se para outras mulheres. Igualmente falso é Pancho, que seduz a negra Rabanilda, com falsas promessas, engravida-a, mas não assume o filho e tem um caso com Mabel, patroa de Raba. É assassinado por ela, que, após sair da prisão, amasia-se com um vizinho, com quem tem outros filhos.

Como no tango, a obra traz quatro personagens femininas, todas mal-sucedidas no amor, embora “perfumadas e com suas boquinhas pintadas”, todas seduzidas por seus homens sem compromisso. Nélida, desiludida com o doente Juan Carlos, casa-se sem amor com o Massa, jovem leiloeiro que logo se transforma em um senhor barrigudo; ela passa o resto da vida sonhando com o que poderia ter sido. Mabel e Celina são igualmente infelizes no amor. A primeira teve sucessivos fracassos em seus namoros e surpreende o leitor ao envolver-se com o negro Pacho e recebê-lo seguidas vezes no seu quarto; acaba se casando com um homem sem graça, apenas para não ficar solteira. A baixinha Celina “passa de mão em mão” e acaba falada por conta de seus envolvimentos com caixeiros-viajantes. Rabanilda é rejeitada por Pancho, mata-o, e contenta-se com um velho viúvo pobre a quem ajuda a criar os filhos. Todas mentem amor e são, em contrapartida, enganadas por seus homens.

A obra se divide em duas partes: “Boquitas pintadas de Rojo carmesí” e “Boquitas azules, violáceas, negras”, constantes de 8 fascículos cada uma. O enredo se constrói por montagem. Encontramos, no início, a notícia de falecimento de Juan Carlos Etchepare, um rapaz de Coronel Vallejos, município a 400 km de Buenos Aires. Registra-se que ele morreu aos 29 anos, em 1947.

Como já se falou, a história centra-se na vida burguesa argentina e tem como núcleo a vida do belo rapaz tuberculoso, seus relacionamentos, seus padecimentos e sua conduta de homem mulherengo e sedutor, que pouco valoriza as mulheres. O clima de “tragédia” se coaduna com o teor dos tangos, constantemente evocados nas epígrafes, nos textos e no próprio título da obra. Essa ligação lembrou-me o poeta Manuel Bandeira, que também no início do século XX descobriu-se tuberculoso e, em um de seus poemas autobiográficos, “Pneumotórax” (Libertinagem, 1930), fez um final que mostra o doente desenganado pelo médico: “-Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax? – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Sem cura, o melhor era assumir a tragédia e vivê-la.

A estrutura da primeira parte: “Boquitas pintadas de rojo carmesí”

Ao registro da morte de Juan Carlos, em 1947, seguem-se 10 cartas de Nené para a mãe do falecido. As cartas compõem os dois primeiros fascículos e constituem um monólogo da moça com a ex-futura sogra, Dona Leonor, lamentando a partida precoce do rapaz, justificando o fato de ter-se casado com outro e pedindo que a senhora não mostre as cartas à filha, Celina, seu desafeto desde a juventude. Ela registra, em cada carta seguinte, o recebimento das respostas, embora elas não apareçam imediatamente transcritas, ou reclama a ausência de um retorno. Insiste em pedir as cartas que Juan Carlos a enviava, quando ainda eram namorados (no fim do namoro, ele devolveu as cartas que ela o escrevia na época do sanatório e recebe as dele de volta, amarradas com uma fita azul). Após cada carta, o narrador situa espacialmente a personagem, dizendo onde está e as atitudes que toma após concluir a escrita.

Infeliz, mal-casada, ela conta sobre sua paixão da juventude, recorda as amizades com Mabel e Celina, fala de vida em Coronel Vallejos, do possível despeito de Celina que gerou a inimizade, desde uma festa no Clube Social, quando ela, Nené, foi eleita rainha e Mabel não. Faz confissões, conta como se entregou ao médico Dr. Aschero quando ainda era bem jovem e trabalhava como sua assistente. Também fala da vida ruim com o marido, da indisciplina e da falta de beleza física dos dois filhos, da sua vida pequena. Mais adiante o leitor fica sabendo que Dona Leonor nunca recebeu as cartas, que era Celina quem as recebia e as respondia, passando-se pela mãe.


No terceiro fascículo, o narrador descreve um álbum de fotografias, em que aparecem fotos que marcaram momentos da vida de Juan Carlos, sua família e seus amigos mais próximos, inclusive com as dedicatórias. Seguidamente, tem-se a descrição do quarto de Mabel. Detalhe: dentro de um dos livros, há uma foto de Juan Carlos, dedicada a ela, cujas palavras mostram uma paixão melosa, provavelmente falsa; também se tem nota da revista Paixão feminina e encontram-se transcrições de trechos da secção “Correio do coração”, para onde Mabel escrevia com o nome de “espírito confuso”, bem como a resposta de redatora, que é uma conselheira sentimental. A consulta refere-se ao ano de 1936. Aí, sabe-se que Mabel teve um envolvimento com Juan Carlos quando ele namorava Nené.

Após, vem um texto com todos os dias santos do ano 1935, seguido de um fato que marcou o dia. Na verdade é a agenda de Juan Carlos, uma espécie de diário, em que confessa seu caso com a viúva Elsa di Carlo.

No quarto e quinto fascículos, o narrador toma a palavra para contar como foi o dia 23 de abril de 1937 de Nélida e o de Juan Carlos, então seu namorado. Também relata como foi o mesmo dia para Mabel, Pancho e Rabanilda. A narrativa tem a precisão de um diário cronológico, marcando as horas e os fatos da vida desses personagens, suas rotina e seus envolvimentos. Aí começa a perseguição de Pancho, o pedreiro, aspirante a suboficial, a Rabanilda, empregada doméstica.

No sexto fascículo, aparece a consulta a uma cigana, feita por Juan Carlos, seguida de uma espécie de roteiro do envolvimento de Pancho e Rabanilda, bem como a carta do médico da cidade para o diretor do sanatório de Cosquín, onde Juan Carlos, funcionário licenciado da prefeitura, irá ser internado.

Nos sétimo e oitavo, lemos as cartas que Juan Carlos escreve do sanatório para Nené, todas apaixonadas. Antes de mandá-las, ele pede que o seu vizinho de quarto, ex-professor universitário, faça a revisão. Ele a trata de forma simplória, como “minha vida”, “loura”, “minha querida”, usando uma linguagem coloquial, cheia de gírias. No final do oitavo, tem-se o exame de gravidez de Rabanilda, o documento da Polícia da província de Buenos Aires que mostra a inclusão de Pancho na equipe que viaja para treinamento de suboficial da polícia, a portaria administrativa que faz uma denúncia contra o pai de Mabel e o relato da viagem de volta de Juan Carlos a Vallejos.

A estrutura da segunda parte: “Boquitas azules, violáceas, negras”

A segunda parte, inicia-se com o oitavo fascículo, onde lê-se a recapitulção da história que não foi contada: o retorno de Juan Carlos a Cosquín, sua procura por Mabel, a reprimenda do pai de Nené por ele ser tuberculoso e continuar querendo namorar sua filha, a decisão da prefeitura em mantê-lo de licença, e sua solidão, no bar, sem amigos.

Seguidamente, tem-se um relato, em 3ª pessoa, do dia 27 de janeiro de 1938 na vida de Nené, cujo maior medo era que alguém da cidade contasse ao “Moço leiloeiro” que chegara à cidade sobre o seu caso com o Dr. Aschero. Aqui já se tem indício do início do interesse de Nené pelo jovem que viria a ser seu marido. Segue-se com a descrição da rotina (do mesmo dia) de Juan Carlos, para quem o maior medo era morrer. Depois, tem-se a rotina de Mabel, sua ida ao cabeleireiro e a leitura do jornal em busca de anúncios de filme; seu maior medo é que o pai perca o processo impetrado por seus ex-noivo e sócio nos negócios. Também há o relato do mesmo dia para Sancho, cujo maior medo era que Raba denunciasse que ele era o pai do filho que esperava. Na descrição do dia de Raba, ressalta-se o temor que ela tem à rejeição de Pancho ao filho.

Na seqüência, há uma carta de Nené à Mabel, agradecendo o presente de casamento – um abajur de tule branco – e cumprindo a promessa de descrevê-la a lua-de-mel. Fala que voltarão (ela e o marido) a Vallejos para morar com a mãe dela, mas logo mudarão para Buenos Aires.

No décimo fascículo, há dois textos que compõem diálogos por telefone entre Raba e Nené A primeira, morando em Buenos Aires, como empregada doméstica, cheia de saudade do filho que deixou em Vallejos, e a segunda, já aborrecida com o marido, recém mudada para a capital argentina. Seguidamente há períodos soltos, que levam, com ajuda de um subtexto em itálico feito como em monólogo interior da própria personagem, o leitor a montar a história de encontro entre Mabel e Sancho, que passa a visitá-la em seu quarto à noite.

No fascículo seguinte, há um texto descritivo da rotina de empregada Rabanilda, então trabalhando na casa de Mabel. Todas as suas ações, seqüenciadas por monólogo interior, vêm acompanhadas de letras de um tango, cujo conteúdo coaduna-se com a história dela. No relato, percebe-se que Raba flagra Sancho saindo do quarto de Mabel e mata-o com uma faca de cozinha. Para que não descubram o fato, Mabel induz Raba a não contar a verdade, dizendo que Pancho a procurara e forçara um relacionamento. Há, ainda, uma carta de Juan Carlos à Viúva di Carlo, falando sobre a morte do amigo e referindo-se à casa que a viúva vendeu para comprar outra em Cosquín, na finalidade de hospedá-lo.

Lê-se o relato policial da morte de Pancho e a condenação de Rabanilda no décimo segundo. Também há o registro da acusação de que os irmãos de Pancho tentaram apedrejar Raba. Os textos policiais são sucedidos por uma informação do narrador, onde o leitor mais uma vez monta a história: trata-se da visita de Celina à viúva Elsa di Carlo. O discurso das ações aparece através de diálogo, cada um com o subtexto, mostrando a representação da fala, em oposição aos verdadeiros sentimentos.

No décimo terceiro, o narrador retoma a narrativa e fala da vida de Mabel, em passeio a Buenos Aires, e sua visita ao apartamento de Nené, onde comentam assuntos variados, mas, sobretudo, conversam sobre Juan Carlos. Mabel descobre que Nené nunca teve intimidades com o rapaz, pois nada conhece do desempenho sexual dele. Subentende-se que ela sim.

A confissão de Mabel com um padre aparece no décimo quarto. Ela diz ter amado Juan Carlos e ter-se envolvido com o negro Pancho, conta da armação que fez com a empregada para não ser descoberta. Depois o narrador noticia a morte de Juan Carlos em 18 de abril de 1947 e mostra o que Nené fazia na hora em que o rapaz expirou: cumpria a rotina doméstica em seu apartamento em Buenos Aires. No mesmo dia e hora, Mabel, também morando em Buenos Aires, recebia sua mãe em casa para passar o feriado da semana santa; Pancho jazia na fossa de um cemitério comum de Vallejos, e Rabanilda, grávida do vizinho com quem se amasiou, cuidava da casa e das crianças. Após o relato do enterro de Juan Carlos, há uma narrativa anônima. O leitor precisa buscar elementos para compreendê-lo: trata-se do desabafo de uma moça que foi seduzida ainda menina por Juan Carlos e a ele entregou-se sem ninguém saber, aos 13 anos. Ela conta que, depois que ele conseguiu o que quis, nunca mais falou com ela. Há, após, um monólogo da mãe de Juan Carlos, lamentando sua perda e outro de Celina, orando pela alma do irmão e atribuindo a culpa da morte dele à Nené, com a promessa de vingança.

As supostas cartas de Dona Leonor a Nené, em resposta à correspondência que consta no primeiro fascículo, vêm no décimo quinto. Os textos do narrador, que seguem cada carta, deixam claro que quem as escreve é Celina. Na seqüência, há uma carta da mesma Celina ao Massa, marido de Nené, falando da falta de caráter da esposa. Junto, ela envia a correspondência feita por Nené à sua mãe, sublinhando as partes em que ela fala do marido e dos filhos e onde confessa seu fiel amor a Juan Carlos. Em seguida, temos o diálogo entre Celina e a mãe, que cobra da filha o fato de não se ter casado e dado netos a ela. Após, lê-se sobre a visita de Nené à Cosquín, e sua entrada na casa da viúva Elsa. Nené diz estar separada e querer conhecer o lugar onde Juan Carlos passou os últimos tempos. Segue-se um texto do narrador que traduz os pensamentos de Nené, dentro de um ônibus, viajando sem destino, em relação à sua situação atual e ao passado; ela é acordada pelos filhos, que pedem para ir ao banheiro.

No décimo sexto, há o aviso fúnebre da morte de Nené, aos 52 anos, e a descrição do seu momento final entre o marido, os filhos e as noras. Seguem-se pequenas narrativas dando o destino dos outros personagens: o túmulo de Juan Carlos e as novas lápides com mensagens da irmã e da mãe; Mabel em sua vida de professora, recebendo a filha e o neto; a transferência dos ossos de Pancho para dar lugar a outros defuntos na vala comum do cemitério de Vallejos; a vida de Raba, viúva, preparando-se para casar a filha e indo visitar o filho Panchito, já casado. Finalmente, o Massa, viúvo de Nené, queima as cartas dela e de Juan Carlos e frases soltas aparecem como fagulhas feitas de frases das cartas dos dois namorados.

Montando o quebra-cabeça

O enredo, como se disse, não é estruturado no modelo tradicional, é totalmente fragmentado através de vários gêneros textuais: cartas, descrições do narrador, relatos individuais, páginas de diário, relato policial, e até confissões, com diferentes tipos de narradores e focos. O tempo dos registros não segue uma ordem cronológica. No início, está-se no ano de 1947, quando morre o protagonista, e Nené inicia uma correspondência com a mãe dele. Logo se retorna a 1937, com a descrição do quarto de Mabel e seu universo.

O leitor, através da diversidade de textos e narradores, vai montando, pelas datas, a história, como se montasse um quebra-cabeça. Em 1936, Nené (Nélida Fernández), aos 20 anos, é eleita Rainha da primavera, no Clube Desportivo Social, ganhando o despeito de Celina, que se sente injustiçada, já que a amiga, filha de jardineiro, nem sócia do clube é, e foi levada por Mabel, a professorinha, amiga de ambas. Nené, que perdeu a virgindade aos 19 anos com o médico Aschero, namora Juan Carlos, um belo rapaz, irmão de Celina. Eles se encontram, todas as noites, no portão da casa dela, onde ele pega um resfriado. Ficam até tarde, porque ela só permite intimidades depois que os pais dormem. Jamais ela se entrega a ele; não para conservar-se, mas por temer que ele descubra que não é mais virgem. Celina, por conta desses encontros, diz que Nené é a culpada por o irmão ter contraído tuberculose.

Pobre e sem estudo, Nené, que parece dissimulada como as personagens do tango de Le Pera, deixa de trabalhar com o médico, quando a mulher dele descobre o caso, e passa a trabalhar como vendedora na loja “Barato Argentino”. Em 1937, Juan Carlos é internado no Sanatório de Cosquín e mantém, de julho a setembro, apaixonada correspondência com ela. O leitor mal percebe em que momento eles rompem definitivamente, e ela se casa com o leiloeiro Massa, indo morar em Buenos Aires, onde tem 2 filhos. Na época da morte de Juan Carlos, em 1947, ela já não o via há 9 anos, o que supõe que esse rompimento tenha-se dado entre 1937 e 1938.

Além de ter-se envolvido com Mabel, estimulado pela irmã, embora declarasse amor a Nené, Juan Carlos persegue e tira a virgindade de uma menina, cujo relato é feito, já no final da obra, quando se volta a falar na morte dele. O leitor, entretanto, lembra de confabulações dele, quando num bar, certo dia, vê a mesma menina passar e diz que um dia vai segui-la. De temperamento fútil, no sanatório ele demonstra atração por várias enfermeiras. Depois, já rompido com Nené, passa a viver com uma viúva mais velha que ele (com quem já tinha um caso na época da relação com Nené). Ela, apaixonada, vende a casa em Coronel Vallejos, compra uma em Cosquín e transforma-a numa pensão, apenas para acolhê-lo, já que a família não tem mais condição de mantê-lo no sanatório.

Celina, irmã dele, vive com a mãe, nutre intenso despeito por Nené e não consegue se casar. Mantém relações com vários tipos de homens e torna-se falada por andar com caixeiros-viajantes. Ela julga Nené culpada pela doença e conseqüente morte do irmão, por isso planeja uma vingança. Quando Nené escreve à sua mãe, dando os pêsames pela morte de Juan Carlos, Celina responde como se fosse a destinatária e estimula a ex-cunhada a falar de sua vida. Depois manda as cartas, em que Nené fala que é infeliz no casamento e que desejaria outro homem, para o marido dela, provocando a separação.

Mabel é uma moça da sociedade, a mais bem situada financeiramente. Tem, entretanto, um comportamento ambíguo: além de se envolver efemeramente com Juan Carlos, namorado da amiga, tem vários noivados mal-sucedidos e vê seu pai perder os bens. Mesmo sendo uma professora respeitada e de quem não se duvida da conduta moral, recebe no seu quarto o suboficial, ex-pedreiro Pancho, um negro que, anos atrás, engravidou a empregada doméstica de sua casa, Rabanilda. A doméstica, numa noite de revolta, espera Pancho sair do quarto da patroa e o mata com uma faca de cozinha. Mabel articula toda uma história para a empregada dizer que agiu em legítima defesa, já que ela havia ido lá para “forçá-la a ter intimidades”. A moça aceita compactuar com a mentira por medo de nunca mais rever seu filho Panchito; é presa, mas logo sai da cadeia e se amasia com um vizinho viúvo com quem tem outros filhos. Depois dos tantos noivados frustrados, Mabel se casa com um “baixote” de Buenos Aires, onde passa a morar. Antes disso, ela visita Nené na capital Argentina e ambas falam de Juan Carlos, sobretudo da fama de seu desempenho sexual. Aí fica claro que Nené nunca ultrapassou as intimidades no portão de sua casa, pois não sabe que Juan Carlos enfeitiçava as mulheres porque tinha o sexo “superdotado”; já Mabel, pelas revelações, parece tê-lo conhecido muito bem, embora não o revele.

Nené, separada após o marido ler as revelações nas cartas à mãe de Juan, vai com os dois filhos a Cosquín conhecer a cidade em que Juan Carlos viveu. Visita a pensão da viúva Di Carlo a quem faz muitas perguntas. Após, estão outros relatos do tempo presente dos personagens vivos, que mostram Mabel já avó. Entre os finais, está o aviso da morte de Nené, aos 57 anos, reconciliada com o marido e entre seus dois filhos já adultos. A obra é finalizada com o Massa tentando se desfazer da correspondência de Nené e Juan Carlos, imaginando vários trechos das cartas.

A presença do Cinema e da Música

É constante a referência a filmes de cinema na vida das personagens, o que mostra a paixão do autor pelas telas sendo transferida para os seus seres fictícios. Mabel é assídua expectadora de longas e curtas metragens, e Rabanilda, embora de origem mais humilhe, sempre que pode vai ao cine local. Observem-se os comentários sobre os filmes que vêem:

“No vestíbulo decorado com mosaicos típicos, Mabel olhou os cartazes do filme anunciado e notou que os vestidos e roupas dos artistas davam de uma moda de pelo menos três anos atrás e comprovou, decepcionada, que os filmes americanos demoravam a chegar em Vallejos. Tratava-se de uma comédia de luxo, com cenários que a encantaram: amplos salões com escadarias de mármore negro e corrimão cromado, cadeiras de tafetá branco, cortinados de cetim também branco, tapetes espessos e brancos ... por onde se deslocavam uma formosa loura novaiorquina, datilógrafa,que seduz seu elegante patrão e, mediante armadilhas, obriga-o a divorciar-se de sua distinta esposa. (pp.68-9)”

“Raba pensou no filme argentino que havia visto na sexta-feira passada, com sua atriz-cantora favorita, a história de uma empregada de pensão que se apaixona por um pensionista, estudante de Direito” (p.79)

... [Raba] passou sozinha pelo Cine-Teatro Andaluz, o cartaz anunciava para o dia seguinte, nas Sextas-Feiras Populares, uma comédia argentina. Apesar de não passarem um filme com sua atriz-cantora favorita, iria ao cinema com a servente do prefeito municipal, todas as sextas-feiras, cinco centavos as damase dez os cavalheiros (pp.81-2)

...[Mabel] puxou as persianas, deixando penetrar apenas a luz necessária para ler os anúncios dos filmes publicados no jornal. Havia ar refrigerado no Cinema-Ópera: O lanceiro espião, com George Sanders e Dolores del Rio; o Gran Rex também era refrigerado: Por detrás dos bastidores, com duas atrizes suas preferidas , Katherine Hepburn e Ginger Rogers ... No Monumental, Três Argentinos em Paris, mas filmes nacionais só via em Vallejos. (p.127)

São várias as alusões, inclusive há a nominação de filmes e atores. Mabel até sonha encontrar os atores na vida real, cita os nomes de Robert Tylor e Tyrone Power. Outros, cujo enredo aparece parcialmente descrito, tanto podem ser filmes hollywoodianos como melodramas latino-americanos dos anos 30 e 40. O narrador dá poucas pistas. Não é como no Beijo da Mulher-Aranha, em que ele conta o filme todo e o leitor tem a referência exata.

Já a música, especificamente o tango, ritmo característico da Argentina, tem sua presença marcada no próprio título da obra, que foi retirado, como já comentamos, de um fox-trot musicado e gravado por Carlos Gardel, chamado “Rubias de New York” (A letra é de Alfredo Le Pera), como já dissemos. Em cada fascículo há, ainda, uma epígrafe retirada de letras de tango. Vejamos algumas:

“Era... para mi la vida entera...” (Alfredo Le Pera)
“Charlemos, la tarde es triste...” (Luis Rubinstein)
“Deliciosas criatura perfumadas,
Quiero el beso de sus boquitas pintadas” (Alfredo Le Pera)
“...sus ojos azules muy grandes se abrieron...” (Alfredo Le Pera)
“...dan envidia a lãs estrellas, yo no sé vivir sin ellas...” (Alfredo Le Pera)
“...Una lágrima asomada yo no pude contener...” (Alfredo Le Pera)
“...todo, todo se ilumina...” (Alfredo Le Pera)

O décimo primeiro capítulo da Parte II, que tem como epígrafe “se fue em silencio, sin um reproche / habia em sua alma tanta ansiedad...” (Alfredo Le Pera), mostra a rotina de Rabanilda em sua vida de empregada doméstica e seus pensamentos, em monólogo interior. Cada pensamento seu é seqüenciado por versos de letras de tango, como para completá-lo, ou para acompanhar seu ritmo de trabalho, já que as empregadas domésticas fazem suas atividades preferencialmente ouvindo rádio.

O estilo transgressor de Puig e seus diálogos

O estilo nada convencional de Puig deixa entrever a postura de um homem transgressor, que transfere para a literatura sua forma diferente de ver o mundo e de conceber a arte. Sua técnica narrativa desconstrói os modelos de texto literário, pois celebra a sentimentalidade, o derramamento, o lugar comum da linguagem, que rebaixaria o literário e reduziria seu texto ao folhetim barato. Primando pelo tão criticado “floreado”, ele parece ironizar as convenções ao valorizar propositadamente o discurso piegas e experimentar diferentes gêneros textuais, linguagens, fórmulas: aparecem, em suas obras, desde a revista de moda e seu correio sentimental, à carta de amor, o diário, anotações de agenda, trechos de novela de rádio, boletins de polícia, conversas ao telefone, dramas exagerados, paixões secretas, proibições, confissões sussurradas, numa linguagem de silêncio, ditos e interditos.

Sua produção literária é essencialmente de protesto. Perseguido em sua vida pessoal, fez de sua criação uma crítica perene. Com efeito, sua estética de desconstrução é um questionamento dos valores do cânone literário clássico; ele rompe com o modelo de romance tradicional em que se encontra um enredo com apresentação, complicação, clímax e desfecho, na camada da forma, como rompe com os padrões sociais que abonina, na camada do conteúdo. Fundo e forma caminham na mesma direção: a desmontagem dos modelos.

Na verdade, sua produção literária solicita uma leitura que leve em consideração o projeto literário nela entrevisto; há quem a critique, censurando-a pela falta de estilo, e quem considere essa “falta de” um estilo próprio. Seja como for, não há desatenção à própria elaboração do texto, ele parece fazer cinema nos livros, como se a tela virasse papel. Não se percebe uma concepção linear nem ingênua em relação à palavra, seu material de trabalho, ao contrário, nota-se a plena consciência do seu uso e de suas motivações.

O diálogo formal entre literatura e cinema não é novidade. Na prosa experimental brasileira de 22, Oswald de Andrade já fazia narrativas fragmentadas pelos cortes cinematográficos. O livro Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, (mas iniciado em 1914) já traz a simultânea multiplicidade de fatos para retratar, com ironia, a burguesia paulista dos primeiros anos do Séc. XX. Maria Eugênia Boaventura, em comentário sobre a obra, diz que Oswald, para “criticar bem humoradamente esse mundo provinciano e medíocre, pede auxílio à linguagem do cinema. Constrói uma narrativa fragmentária, aparentemente caótica, montada em 163 quadros como se fosse um filme”. Tal também ocorre com Serafim Ponte Grande (1933), também de Oswald, que considerava seu produto final como um “necrológico da burguesia”. A obra, segundo Maria Augusta Fonseca, mistura o canto satírico, épico, lírico e o romance de aventura. Nela, há um processo característico do cubismo: a colagem, a justaposição crítica de materiais diversos, o que em técnica cinematográfica parece equivaler, de certo modo, à montagem, como afirma Haroldo de Campos. A diversidade de gêneros textuais caracteriza ambas as obras, mas tem-se, a despeito de toda essa fragmentação, uma unidade na montagem do enredo.

Luiz Ruffato, em 2002, fez também uma obra completamente fragmentada, onde a simultaneidade dos fatos dá uma idéia do caos urbano, na perspectiva do coletivo e do individual. Diversos gêneros textuais se entrecruzam para assimilar, na diferença formal, a própria diversidade humana. Nesta obra, não há um fio condutor, um personagem ou um enredo que perpasse todas as narrativas. A protagonista é a cidade com seu ritmo nervoso e ininterrupto.

A obra de Puig se aproxima mais das de Oswald, no sentido formal. Em termos de enredo não há comparação. Claro, Puig prende-se ao universo dos jovens argentinos de classe média e seus valores deteriorados, seus romances inconseqüentes.

O Kitsch

Já no conto Ismênia, moça donzela, da coletânea Morte na praça, publicada em 1964 por Dalton Trevisan, encontramos não apenas a fragmentação, mas um exemplo perfeito do kitsch na literatura brasileira, característica quase sempre atribuída às obras do argentino. Como Puig, Trevisan, além de desconstruir os paradigmas de criação clássica, ironiza o cânone literário ocidental na Modernidade. De acordo com Arnaldo Franco Jr., “Os signos do mau gosto e do kitsch prestam-se, na poética de Trevisan, a uma perquirição sobre o lugar da arte e do artista no mundo contemporâneo, marcado sobremaneira pela reificação que, inclusive, apoderou-se, sob a forma cotidiana e sistemática das estratégias quase que onipresentes da indústria cultural e dos sistemas de simulação, de boa parte das estratégias e procedimentos antes característicos da contestação vanguardista identificada com o Modernismo”. De igual modo, Puig se coloca contra a tradição literária e utiliza intencionalmente o kitsch como forma de transgressão.

De fato, Boquinhas pintadas toma o kitsch como modelo inspirador o tempo todo; Puig o utiliza tanto para subverter os padrões estéticos, como para ironizar a sociedade emergente que se considera chique, jamais brega. No enredo há a marca da banalidade, os personagens agem como atores de melodrama, verdadeiros canastrões. No território da linguagem, vê-se tanto colocações rebarbativas como o uso de frases banais e clichês. Observe-se a linguagem utilizada na “Notícia aparecida no número de abril de 1947 da Revista mensal Nossos vizinhos, editada na localidade de Coronel Vallejos, província de Buenos Aires”:

“FALECIMENTO PRANTEADO... Com essa morte, desaparece do nosso convívio um elemento que, por suas qualidades de espírito e caráter, distinguiu-se sempre como um valor ponderável, possuidor de um acúmulo de atributos ou dons – que eram marca de sua figura simpática - atributos estes que destacam os possuidores deste inestimável caudal, para eles granjeando a admiração dos parentes ou estranhos.” (p11)

Logo nesse primeiro texto da obra, percebe-se a linguagem retórica, cheia de adjetivos elogiosos, completamente inadequada para um texto de revista popular. As considerações bajuladoras demonstram o hábito vulgar de enaltecer os homens mortos, como se, ao fechar os olhos, ficassem totalmente isentos dos defeitos que manisfestaram em vida.

Em contrapartida à formalidade retórica que na pós modernidade ressumbra ridícula, há a presença também da banalidade nas cartas que Nené escreve a Dona Leonor, marcadas por clichês e frases feitas:

... essa notícia tão triste fez com que eu me decidisse a escrever-lhe algumas linhas (p.12)
Bem, Dona Leonor, fico aqui desejando que estas linhas a encontrem mais recuperada. (p.16)

Querida Dona Leonor. Espero que estas linhas a encontrem com saúde na companhia dos seus. (p.32

O discurso das cartas de Juan Carlos a Nenê, por sua vez, traz exagero no romantismo, no excesso de sentimentalidade que soa como falso. O lugar-comum torna-se matéria prima fundamental de sua linguagem. As cartas de amor, que constituem a maior parte dos textos da obra, documentam a relação apaixonada do casal de namorados, mas, principalmente, relatam a representação de um jogo amoroso que não dá em nada:

Tenho certeza de que não se lembra mais deste que lhe escreve... Quem me dera ser travesseiro para estar perto de ti. Bolsa d’água para esquentar os pés, melhor não, pois eles podem estar sujos, prefiro ser travesseiro. (pp.97-8)

Boneca, o papel está acabando, e nada mais te conto a respeito daqui... Te beija até que digas basta, ....(p99)

... você está sã... você é dura, você é como o diamante que se usa nas vidraçarias para cortar o vidro, embora os diamantes sejam sem cor como um copo sem vinho, melhor dizer que você é cheinha de vinho, vermelhinha como um rubi, minha vida. (p.103)

Como vamos ser felizes, rubi, vou beber todo o vinhozinho que você tem dentro de você, e vou tomar um pilequeinho dos bons, um pilequinho alegre, total... (p105)

Ironicamente, as cartas de Juan Carlos são corrigidas por um professor (também internado na Clínica de Cosquín): Como de hábito, entrega os rascunhos, mas com uma variante: mais que a correção ortográfica, solicita ajuda para redigir a carta em questão. Sua intenção é enviar uma carta de amor muito bem escrita e seu pedido é acolhido com entusiasmo. Imediatamente o professor lhe sugere escrever uma carta comparendo a moça ao Láteo, e lhe explica detalhadamente que se trata de um rio mitológico situado na saída do pugatório, onde as almas purificadas se banham para apagar as más lembranças antes de empreenderem o vôo para o paraíso” . O jovem ri brincalhão e rechaça a sugestão por considerá-la muito fantasiosa. (p.110)

Note-se a ironia do romantismo na primeira citação, quando o namorado se propõe a ser uma bolsa d’água para esquentar os pés da amada e, imediatamene, retira o desejo, por receios de que os pés dela estejam sujos. Ele, além de desejar ser o travesseiro da moça, compra-a a pedras preciosas como diamante e rubi e diz querer beber todo o vinho que ela carrega dentro do seu corpo, como se o sangue dela fosse feito de vinho. Recusa-se, entretanto a compará-la ao láteo, pelo sentido de morte que o rio evoca. Ele percebe a ironia do professor que o acusa de estar enganando a moça.

Essa estética “purpuridada”, como a denominam alguns críticos, visa muitas vezes ao mercado comercial, ao simplesmente decorativo ou pode decorrer simplesmente de mau gosto. Nenhuma dessas possibilidades se aplica ao modelo de Puig, para quem o floreado, a linguagem retórica e o viés folhetinesco são intencionais e constituem, insistimos, uma forma de desconstrução dos padrões literários. É a sua forma de colocar-se contra qualquer tipo de convenção, impondo um estilo irreverente e irônico. O uso do kitsch é, pois, uma estratégia de relativização tanto dos valores do sistema literário, que a obra subverte, quanto para ironizar a antípoda da vida: a sociedade sem moral, que o condena pela recusa ao uso de máscaras.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte Grande. 6ª ed. São Paulo, Globo, 1997
____________. Memórias sentimentais de João Miramar . 14. ed. São Paulo: Globo, 2001
CAMPOS, Haroldo de. “Miramar na Mira” In: Memórias sentimentais de João Miramar . 14. ed. São Paulo: Globo, 2001. pp.5-33
FONSECA, Maria Augusta. “ Orelha” In: Serafim Ponte Grande. 6ª ed. São Paulo, Globo, 1997
FRANCO JR., Arnaldo. “Kitsch, repetição e desconstrução dos paradigmas modernistas no conto Ismênia, moça donzela, de Dalton Trevisan”. Disponível em: http://www.ppg.uem.br/docs/ctf/Humanas/2002/09_234_01_Arnaldo%20Junior_Kitsch%20Resumo.pdf
MOLES, Abraham. O Kitsch. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001
PUIG, Manuel. Boquinhas Pintadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. Trad. Joel Silveira
RUFFATO, Luiz. Eles eram muito cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001
TREVISAN, D. Ismênia, moça donzela; A volta do filho
pródigo. In: Morte na praça. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975, p. 45-50; p. 93-103.

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3798

Rembrandt: um pintor de temperamentos

Rembrandt é o principal nome da arte européia do século XVII. Pintor, gravador e desenhista, experimentou técnicas diversas e atingiu a perfeição na água-forte, despertando a curiosidade de seus contemporâneos que queriam descobrir o segredo do tamanho domínio dessa técnica. Como homem barroco, vivendo a dualidade seiscentista, incorporou às suas técnicas os efeitos do contraste do claro-escuro, herdada do pintor italiano Caravaggio, cuja projeção de luz, quase sempre frontal, parece ter o objetivo de conduzir os olhos do leitor para o aspecto mais relevante da figura retratada.


Seus temas, inicialmente religiosos, dentro da tradição da arte protestante holandesa, estenderam-se a livres interpretações de cenas bíblicas, cenas mitológicas, a reprodução de paisagens e do cotidiano de seu povo. A partir de 1640, a exuberância das cores vai dando lugar ao cinza, como a refletir uma mudança de tom na arte como reflexo das mudanças na própria vida. Com efeito, desde as suas primeiras gravuras, já se percebia sua predisposição para expressar seus sentimentos através de seu trabalho, haja vista a inconstância do seu traço e a tradução de suas reações emotivas cravada na obra.

Os retratos, feitos por encomenda, já mostravam a captação não somente da figura física dos modelos; a emoção deles concretizava-se na imagem. Desta forma, Rembrandt não apenas registrou o homem do seu tempo, pobres e ricos, gravou, com tintas e traços, cenas da vida de muitas figuras históricas de sua terra, reproduzindo sempre os mais sutis estados psicológicos, transpondo a simples aparência. Essa capacidade de percepção pode ter sido baseada no autoconhecimento, exercitado nas várias pinturas de sua própria imagem, compondo um verdadeiro percurso de sua peregrinação.

Foi, pois, um pintor de temperamentos humanos, dos estados da alma de seus modelos e de si próprio. Naturalmente realista, não conseguia dissimular a realidade nem seus dramas interiores. Nos tantos auto-retratos que fez, percebem-se claramente as mudanças em suas feições com o passar dos anos, e pode-se perfeitamente vê-los como um registro das fases de sua vida, da juventude explendorosa à velhice decadente, já que neles aparecem: o jovem de sucesso, o rapaz de grande inteligência, o homem imponente e abastado, o velho sereno e resignado, depois carrancudo, como emudecido pelo sofrimento de que a vida não lhe poupou.

Demais verdadeiro em sua arte, nem sempre lhe admiraram o estilo realista e fiel. O mais conhecido episódio refere-se ao quadro “O juramento de Julius Civilis”, pintado em 1661, por encomenda do prefeito de Amsterdã. A obra ficou menos de um ano na parede da prefeitura. Os governantes, como conta sua história, não gostaram de ver um bando de bárbaros em volta de um Julius caolho, quando queriam a eternização de uma cena célebre, em que o rei reunia líderes batavos para fazê-los jurar combater os invasores romanos.
O pintor tecnicamente brilhante, como grande parte dos gênios, não foi um homem prático. O prodigioso talento para a arte conduziu-o a um rico casamento e a uma vida de luxos, mas as tragédias pessoais não tardaram: os dois primeiros filhos morreram crianças, e a mulher também faleceu pouco tempo depois do nascimento do terceiro herdeiro.
Em 1656, então com 50 anos, sem saída para a crise financeira, vendeu sua casa em Amsterdã e quase toda a sua coleção de móveis, obras de arte, jóias, porcelanas, tapeçarias, que comprava quase compulsivamente; até de sua máquina de impressão precisou se desfazer. Endividado e afogado na dor de tantas perdas, como se já de nada fizesse questão, começou a vender seus auto-retratos. Chegou a leiloar praticamente toda a produção artística que tinha em seu poder. Em 1968, veio o golpe fatal: morreram seu filho e sua nova companheira. Um ano depois, fecha os olhos definitivamente e é sepultado em Westerkerk, como um homem anônimo.
A morte, entretanto, não conseguiu apagar o fulgor do prodigioso talento, obscurecido pelas mudanças de gosto na pintura holandesa do final do século XVI. No século seguinte, a reputação de sua obra foi recuperada e garantiu o seu nome como o maior expoente do barroco holandês e um dos maiores pintores do mundo ocidental, que continua a valorizar sua pintura de sombra e luz, seus desenhos de traços leves, milimétricos, seus retratos e auto-retratos sensíveis à introspecção de seus modelos. Estes quatro séculos de histórias contadas e recontadas atestam isso.

O Cangaço e suas seduções

O Cangaço foi um fenômeno social ocorrido no Nordeste brasileiro, no final do século XIX e início do século XX, e tem sido, até hoje, um dos temas mais visitados por pesquisadores e artistas que buscam entender e ilustrar as histórias dos bandidos nômades que povoaram o sertão nordestino até os anos 30. Os cangaceiros, figuras encouraçadas e cheias de brilho, andavam em bando armados e espalhavam medo por onde passavam, deixando em seu rastro uma mistura de temor e sedução.

Essas figura duais, mas invariavelmente temidas, sempre se impuseram no imaginário popular como contraventoras e estranhamente generosas. De fato, promoviam saques a fazendas e cidades, atacavam comboios e chegavam a raptar fazendeiros a fim de obterem vantagens, mas aqueles que os respeitavam e seguiam suas ordens não sofriam, pelo contrário, eram ajudados e protegidos. Muitas façanhas ainda douram o imaginário do povo, que conta e reconta episódios heróicos, como se a figura contraventora dos bandidos sertanejos fosse redimida pela coragem e pelo respeito que impuseram.

As diferenças sociais e a falta de proteção das autoridades aos desfavorecidos faziam-nos desprotegidos e submissos aos coronéis que cometiam todo tipo de abuso de poder e fraude política. Segundo Rui Facó, na verdade, Coronéis e Cangaceiros fazem parte de uma mesma realidade. Os coronéis organizavam grupos armados para, através deles, exercerem o poder. Quando esses homens se libertavam do jugo de seus mandantes, passavam a fazer justiça pelas próprias mãos, se transformavam em cangaceiros. Havia ainda, nesse contexto, a figura dos Fanáticos, líderes religiosos que intermediavam a relação dos humildes com Deus. Os principais deles eram cearenses: Padre Cícero e Antônio Conselheiro.
Como viviam de forma irregular e não seguiam as leis estabelecidas pelo governo, os cangaceiros foram classificados como “bandidos” e eram constantemente perseguidos. Para se protegerem, nas fugas estabanadas, usavam roupas e chapéus de couro como forma de defenderem seus corpos da vegetação espinhosa da caatinga. As estratégias de sobrevivência não se restringiam à vestimenta, eles também utilizavam todos os conhecimentos que possuíam sobre o território (fontes de água, ervas, tipos de solo, vegetação) para fugirem ou conseguirem esconderijos que os mantivessem fora do alcance dos perseguidores e com certo conforto. Eles estavam, de fato, fora da lei, porque não seguiam a regra estabelecida na região: a obediência total aos grandes fazendeiros. Alguns de menor prestígio, para fugir dos desmandos dos "coronéis", faziam aliança com cangaceiros e recebiam a proteção deles.

Segundo pesquisas, o primeiro cangaceiro teria sido o Cabeleira (José Gomes), líder sertanejo que viveu em Pernambuco no final do século XVIII e atemorizou o sertão com sua valentia herdada do pai, até ser condenado à morte. Um século depois, o cangaço volta com toda força, conquistando prestígio, com as figuras, hoje emblemáticas, de Antônio Silvino (Manuel Batista de Morais), Lampião (Virgulino Ferreira da Silva) e Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto), o Diabo Loiro.

O mais famoso deles – Lampião – fechou o ciclo da bandidagem sertaneja nômade, ao ser morto, na madrugada do dia 28 de julho de 1938, numa Gruta dos Angicos, em Sergipe, junto com sua Maria Bonita. Suas cabeças foram expostas em praça pública como punição exemplar. Suas façanhas, entretanto, continuaram vivas e, acrescidas da imaginação popular, viraram alvo de historiadores e motivo de romances, poemas, sobretudo do Cordel, peças de teatro, filmes, músicas e diversas manifestações artísticas.

Antônio Amaury Corrêa de Castro, um dos principais pesquisadores do fenômeno, escreveu quatro obras, tentando abranger nuanças diversas do bando de Virgulino: Assim morreu Lampião (1982),Gente de Lampião: Dadá e Corisco. (1985), Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno (1985), Lampião: as mulheres e o cangaço (1985). Carlos Alberto Dória dá um enfoque geral em O Cangaço (1981), Rui Facó amplia os bandos e avalia os séquitos em Cangaceiros e Fanáticos (1972), Frederico Bezerra Maciel enfoca a fase áurea de Lampião em Lampião, seu tempo e seu reinado (1980), Frederico Pernambuco dá um enfoque quase poético ao tema em Guerreiros do sol: o banditismo no Nordeste do Brasil (1985) e Aberlardo F. Montenegro mostra cangaceiros e seguidores em suas sagas, no seu Fanáticos e Cangaceiros (1973).

O Cinema, desde 1953, descobriu as seduções do tema, e os telões conheceram os desertores do sertão em O Cangaceiro, dirigido por Lima Barreto e encenado por Vanja Orico, Ricardo Campos e Adoniran Barbosa. Seguiram-se Jesuino Brilhante, o Cangaceiro (1962), dirigido por William Gobert; Lampião, o Rei do Cangaço (1963), dirigido por Carlos Coimbra, tendo no elenco: Vanja Orico, Leonardo Villar, Dionísio Azevedo; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Gláuber Rocha (1964), Maria Bonita, Rainha do Cangaço (1968), com direção de Miguel Borges, tendo no elenco: Sônia Dutra, Milton Moraes, Jofre Soares; Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry (1996) e Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997). Mencionem-se, ainda, os curta-metragens: Memória do Cangaço Direção: Pedro Paulo Gil; A Mulher no Cangaço (1976) com direção de Hermano Penna.

A Literatura, desde 1876, com O Cabeleira, do cearense Franklin Távora, ficciona a figura do cangaceiro. O livro conta a história de José Gomes, o primeiro cangaceiro, líder sertanejo que viveu em Pernambuco no final do século XVIII. Em 1938, José Lins do Rego abre o ciclo do cangaço em sua produção literária e retoma o tema, com outros “heróis”, em Pedra Bonita (1938); a figura do bandoleiro volta como secundária em sua obra prima Fogo Morto (1943), depois ganha um romance inteiro com Cangaceiros, em 1953. Segundo Anita Martins Rodrigues de Moraes, “os romances de Lins do Rego associam a violência do cangaço à impunidade. A ausência de uma esfera pública constituída aparece como principal causa da violência, pois levaria as pessoas a resolver suas disputas no âmbito pessoal, colocando assim a vingança no lugar da justiça. Os textos de Lins do Rego promovem uma aproximação entre os soldados e os sertanejos armados (os cangaceiros), o que não acontecia nos romances românticos”. Há, ainda, a peça Lampião (1953), de Rachel de Queiroz, O Auto da Compadecida (1955) (levada às telas da rede Globo em 1998 e logo após aos cinemas), de Ariano Suassuna, Sem lei nem rei (1964) de Maximiano Campos, e Os desvalidos (1993), de Francisco Dantas, história de infortúnios, de mal-sinados. Existem inúmeros cordéis, dos quais posso destacar A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, e A coragem de um vaqueiro em defesa do amor de João Firmino Cabral.

A música também se apropriou do tema; em “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Zé Ramalho e Otacílio Batista, por exemplo, temos uma bela peça musical que conta a história de mulheres sedutoras, entre elas, a de Maria Bonita, mulher do rei do Cangaço: “Virgulino Ferreira, o Lampião / Bandoleiro das selvas nordestinas / Sem temer a perigo nem ruínas / Foi o rei do cangaço no sertão / Mas um dia sentiu no coração / O feitiço atrativo do amor / A mulata da terra do condor / Dominava uma fera perigosa / Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor”


Totonho Laprovítera na trilha nos bandoleiros do Sertão


Totonho Laprovítera, também seduzido pelas histórias e imagens dos bandoleiros do sertão, corporificou-os em telas na exposição “Cangaço”. Conhecido como um artista multifacetado, misto de arquiteto, compositor, escritor e pintor, ele surpreende ao mostrar-se pesquisador cuidadoso e atento ao fenômeno do cangaço. Seu trabalho segue a trilha das imagens conhecidas e acrescenta-lhes vida com seu traço inconfundível, títulos elucidativos e textos acerca do assunto.

Se antes o interesse do Totonho pelo tema se restringia às lendas e histórias contadas sobre essas feras sertanejas, ampliam-se agora suas leituras e ganham plasticidade literalmente. Nesta mostra, os quadros fazem releituras da vida de Lampião e seu séqüito, via fotografias e imagens antológicas. Na verdade, esse ensaio completo sobre o tema é a continuação de um trabalho que já vinha sendo feito de forma mais intuitiva.

Decidido a enveredar pelas matas do sertão na trilha dos bandoleiros que já lhe eram fonte de inspiração, ele buscou documentos, inteirou-se das histórias, depois garimpou biografias e arquivos de imagens para tomar posse das referências visuais. Como artista contemporâneo que tem à mão as ferramentas do seu tempo, aprimorou técnicas tradicionais, como o bico-de-pena com que traçava efígies de figuras do cangaço e chegou, como ele mesmo diz, traçando os passos do seu processo criador, “ao talho do ‘buril’ do computador (instrumental posto a serviço da arte!)”. Daí veio a idéia do confronto entre xilogravura e infogravura e a digitalização de fotografias. Os passos seguintes foram a alteração dos retratos, à mão livre, e a transposição das figuras para as telas. Então as tintas conversaram sobre as telas, fazendo parcerias inusitadas ora com pincel, ora com espátulas, rolhas de cortiça, panos e, claro, as mãos do criador que deu forma e cor às criaturas armadas.

O primeiro quadro, “Lampião”, traz a figura ensombrada de Virgulino Ferreira, seguido de uma imagem do casal “Maria Bonita e Lampião”; neste, os dois parecem perpassados por um jato de luz, e emergem do vermelho como figuras quase etéreas. Ao lado dos dois quadros, há versos do próprio cangaceiro falando de sua coragem e seus amores. A tela seguinte, “Lampião e família”, mostra contornos de uma família reunida para fotografia, porém os rostos ficam escondidos sob a tintas e os traços brancos. “Lampião em 1929” tem fortes efeitos óticos e leva o expectador a imaginar que a figura do cangaceiro plana sobre seu cavalo, com o lado direito do rosto em sombra. As duas seguintes, ambas intituladas “Cangaceiros”, colocam-se ao lado de versos de José Honório da Silva, e a “Maria Bonita”, em jogo claro/escuro é colocada ao lado da canção de “Acorda Maria Bonita / Acorda vem fazer o café / O dia já vem raiando e a polícia já está de pé”, de Antônio dos Santos. As demais telas, “Lampião em Sergipe”, “Lampião e Maria Bonita em 1936”, “Lampião, Maria Bonita e bando”, “Bando de Zé Sereno”, “Maria Bonita e Lampião lendo”, “Nenê acariciando o cão Ligeiro, Luís Pedro, Maria Bonita e cão Guarani”, “Corisco e Dada, Lampião em Juazeiro”, Lampião e bando em Mossoró”, “Cangaceiro”, “Pancada e bando entregam-se à volante de Alagoas”, “Cabeças cortadas”, Maria Bonita e bando” contam histórias por si mesmas: amor, rendição, sofrimento, prazer, companheirismo e força.

Todas as imagens das telas, como já se disse, partiram de referências visuais de coleções e arquivos sobre o cangaço: Benjamin Abrahão, AbaFilm (Fortaleza), Acervo Sociedade do Cangaço (Aracaju), Coleção Frederico Pernambuco de Melo (Recife), José Olavo (Limoeiro do Norte) e Cangaceiro Juriti. As tintas, a técnica e o talento de Totonho, entretanto, recriaram as cenas, deram-lhes vida, através das cores fortes, do jogo claro/escuro, criando focos de luz que destacam nuanças das imagens. Em quase todas as telas percebe-se esse jato de claridade que quer, por força, conduzir os olhos do expectador. Além dessa herança barroca, percebe-se a versatilidade com o uso das cores, ora fortes, ora foscas, claras, em matizes variadas, fazendo sempre sobressair, através de um tom mais forte e vivo, a figura que se quer destacar.

Um detalhe especial dos quadros são as linhas brancas a contornar desordenadamente as figuras, criando um efeito especial de relevo, ao mesmo tempo em que, nos rostos, disfarça a identidade de cada uma. A indumentária, entretanto, é perfeitamente conservada: todas as personagens aparecem bem vestidas, especialmente Lampião, cujo chapéu parece mais ornamentado. Ele mesmo, numa entrevista dada em Juazeiro, quando de sua passagem por lá nos anos 30, declarou que a “aristocracia cangaceira”, além de suas regras, tinha sua moda. As roupas, de acordo com suas declarações, eram inspiradas em heróis e guerreiros, como Napoleão Bonaparte. O que mais chama atenção é que toda a indumentária - chapéus, botas, cartucheiras, ornamentos em ouro e prata e roupas de couro - era desenhada e confeccionada pelo próprio Lampião. Totonho, fez, por isso, questão de conservar detalhes como os anéis nos dedos de Maria Bonita e os enfeites do chapéu e da cartucheira do Rei do Cangaço, como a render-lhe homenagem.

Senhor das técnicas das artes visuais e suas artimanhas, Totonho investiu, ainda, na palavra, território também de sua paixão. Cada quadro aparece, na exposição, ao lado de um texto elucidativo, fazendo o casamento da palavra com a imagem: são versos do próprio Lampião, trechos da entrevista dada por ele nos anos 30, fragmentos dos cordéis de José Pacheco e José Honório da Silva, a canção memorável de Antônio dos Santos, vinhetas informativas e legendas com nomes dos personagens do cangaço.

A arte, mais uma vez, imita a vida, recriando, transfigurando, dando-lhe, talvez, as cores que ela própria não tinha. O Cangaço, nas telas, certamente, tem bem mais glamour do que nas selvas nordestinas. Sobretudo com a roupagem dada pelo talento do Totonho.

MESA REDONDA – DIÁLOGOS DO SILÊNCIO

UECE – 2003
Introdução

É com muita satisfação que retorno à Universidade Estadual, pois foi aqui que consolidei a minha paixão pela literatura, quando fazia a graduação em Letras e, posteriormente, um Curso de Especialização. Só sai para o Mestrado porque aqui não havia um em Literatura como eu desejava. Estou especialmente satisfeita por participar de uma mesa sobre Clarice Lispector, essa escritora que toca nas feridas e nos desconcertos da alma humana com uma agudeza singular, e sobre Graciliano Ramos, cuja obra inquietante traz o prescrutamento da verdade humana e a tematização do real. É interessante que, nos textos memorialistas, ele não traça limites entre biografia e ficção. No caso de "Infância", a obra que será enfocada aqui pelo prof. Rui, ele não consegue separar o depoimento pessoal da representação ficcional, exatamente porque é a vida que ele tenta compreender através da representação ficcional que é seu meio de perquirir a verdade.

Não posso, por demais oportuno, deixar de lembrar que Alberto Manguel, em sua História da Leitura nos reporta ao escritor alemão Franz Kafka e cita o trecho de uma carta que ele escreveu ao amigo Oskar Pollak, cujas palavras se adequam perfeitamente aos textos de Clarice e Graciliano, tão condizentes são com a experiência vivida pelo leitor que mergulha neles:

...Penso que devemos ler somente livros que nos mordam e piquem... Precisamos é de livros que nos atinjam como o pior dos infortúnios, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, que nos façam sentir como se tivéssemos sido banidos para a floresta, longe de qualquer presença humana, como um suicídio. Um livro tem de ser um machado para o mar gelado de dentro de nós.

É incrível como os livros de Clarice são exatamente assim: picam, mordem o leitor, porque assanham os seus ímpetos, arrancam as cascas de suas feridas. E é incrível como as obras de Graciliano nos atingem e arrancam a venda que inconscientemente colocamos nos nossos olhos.

E é exatamente sobre os efeitos dessa “picada”, dessa mordida que o texto nos dá, que os palestrantes de hoje falarão: A professora Vera, com a leitura de "Paixão segundo GH", de Clarice Lispector terá primeiramente a palavra durante 30 minutos e será seguida pelo Prof. Rui Vasconcelos, que falará do livro "Infância", de Graciliano Ramos e pela professora Daniele Passos com "Água viva", de Clarice. O debate só deverá ser feito no final, portanto, vão anotando as perguntas durante a fala de cada um deles. Obrigada.

O ESPÍRITO BARROCO DO BOCA DO INFERNO

Introdução

Eu não pretendo aqui analisar poemas de Gregório de Matos. Quero, a partir da obra Boca do Inferno, de Ana Miranda, fazer algumas considerações sobre o espírito barroco, que emanava na Bahia do século XVII e se revelava nas atitudes e comportamentos dos que viveram aquela época. Darei ênfase às posturas do homem Gregório de Matos e sua perfeita adequação às tendências dualistas e indisciplinadas do período em que viveu. As contradições de suas atitudes e as extravagâncias de seu comportamento foram as forças motrizes de sua poesia que, como sabemos, era construída nos contrastes do sagrado e do profano, do amor carnal e do amor decantado espiritualmente. Farei inicialmente algumas considerações sobre o Barroco, enquanto tendência literária, e depois passarei a alguns momentos da obra, que me possibilitaram construir o espírito barroco do Boca do Inferno, título e motivo dessa pesquisa.

O Barroco

Sabemos que o termo barroco dá nome a um estilo de época que se configurou em toda a produção artística do século XVII, marcando um momento de crise espiritual da sociedade européia, em que o homem se dividia entre duas mentalidades, duas formas diferentes de ver o mundo. De um lado, retornava-se aos valores espirituais tão fortes na Idade Média, com a religiosidade imposta pela Contra-Reforma e pela fundação da Companhia de Jesus; de outro, convivia-se com o sensualismo e os prazeres materiais da vida mundana trazidos pelo Renascimento. É exatamente no centro dessa dualidade que o Barroco se equilibra, conciliando duas concepções opostas e resultando num estilo cheio de contradições, pois que refletia a experiência renascentista e o reavivamento da fé cristã medieval, a um só tempo.
A princípio, o Barroco, considerado indisciplinado e de mau gosto, não era visto dentro de um movimento com leis próprias, de forma que os críticos não o reconheciam como um estilo de época, mas como uma degeneração do Renascimento. Só no final do século XIX, quando o suíço Heinrich Wölfflin, na obra Renascença e Barroco (1989), estabeleceu cinco princípios fundamentais que diferenciam o Barroco do Renascimento, é que foi dado o valor devido e reconhecida a autonomia do movimento artístico.
No Brasil não foi diferente, até porque as origens do Barroco se confundem com a origem da nossa própria literatura, haja vista que o que aqui se havia produzido até então não tinha nenhuma intenção literária (a literatura informativa e a literatura jesuítica). Além disso, não havia um pensamento coletivo em torno da reflexão do que seria o nosso primeiro estilo de época, já que a produção literária desse período foi fruto de esforços individuais. Ainda hoje o próprio Alfredo Bosi, na sua História Concisa da Literatura Brasileira (1987), não fala do Barroco como um estilo realizado no Brasil, mas como ecos acontecidos de forma esparsa e precária.
Em meio ao espírito de ganância e aventura da mentalidade colonialista, quem escrevia, encontrava na literatura “um instrumento para criticar e combater essa mentalidade ou para moralizar a população com os princípios da religião ou dar vazão a sentimentos pessoais” (Cereja,1994). A descoberta de ouro em Minas Gerais, por exemplo, possibilitou o desenvolvimento de um barroco tardio nas artes plásticas, através da construção de igrejas no século XVIII, o que era uma forma de catarse, pois “o homem do barroco deixou nelas a marca de suas angústias, representadas por uma arquitetura cheia de profunda fé, opulenta em ouro e arroubos plásticos, que marcou esta época frenética da nossa história, perpetuando e como que desmentindo a dura realidade do mundo exterior, o fim da opulência da época do ouro do Brasil” (OP cit.).
O termo barroco aos poucos foi tendo sua extensão alargada. Inicialmente designava um estilo das artes plásticas, que em pouco tempo se estendeu ao estilo das letras do século XVII. Logo, barroco passou a significar um tipo de mentalidade, um modo de organização política, uma formação social. Assim, se inicialmente se usava o termo para classificar a pintura, logo passou a significar a literatura, depois a cultura e a sociedade. Hoje, por exemplo, como diz João Adolfo Hansen (1989), fala-se de “época barroca”, “sociedade barroca”, “Estado barroco”, etc. (É, por exemplo, o que se costuma dizer sobre Portugal: “Portugal barroco”, ou seja, o Portugal da União Ibérica (1580) até a morte de D. João V (1750)). E é bem verdade que barroco configura um estilo de existência, uma visão de mundo, um comportamento. Roger Bastide, quando veio ao Brasil para ministrar uns cursos, resolveu ficar por mais tempo e acabou passando aqui a maior parte de sua vida. Ele exaltava as nossas florestas e dizia ver nelas a continuação de templos barrocos. Já Affonso Romano de Sant’ana (1997, p.202) tem uma obra intitulada Barroco, a alma do Brasil em que coloca o futebol brasileiro, “com suas improvisações e dribles surpreendentes” como uma representação do barroco e diz que a encenação que resume as contradições da alma barroca do brasileiro é o desfile do carnaval na avenida, que faz a festa da carne e espera a remissão nas cinzas da quarta-feira.
O fato é que, por assinalar realidades opostas, o barroco se relacionava com a realidade do homem seu contemporâneo, igualmente dual e contraditória. No caso da literatura, a própria linguagem já mostra rejeição a uma visão ordenada das coisas, como a refletir os estados de tensão por que passava a sociedade da época, tão indisciplinada como a arte que produzia. Assim, é natural o alargamento do uso da palavra barroco para designar tudo que é pomposo, opulento e contraditório, inclusive o comportamento e o espírito do homem que viveu o século XVII.

1. Gregório de Matos

O poeta Gregório de Matos (1633-1696), nascido 32 anos após a publicação de Prosopopéia, de Bento Teixeira, obra que didaticamente marca o início do Barroco no Brasil em 1601, encontraria no estilo barroco o casamento perfeito para o seu estilo de vida. Massaud Moisés (1986, p.45) assinala que “ocorreu uma excepcional identificação entre o temperamento artístico dele com a moda literária imperante no tempo, a tal ponto que ele se lhe tornou uma espécie de personificação ou protótipo”.
Ele viveu numa época em que a realidade brasileira experimentava a corrupção do sistema judiciário [Os letrados peralvilhos da colônia faziam réus se tornarem autores e obtinham mercê de ambos. (p. 33)]; a exploração exagerada do comércio [O irmão desse letrado, um mercador avarento, tirava duzentos por cento no que comprava e no que vendia. (p. 33)], além da exploração da cana; uma realidade de violência em que se escravizava e negro, perseguia o índio e quem se rebelasse contra as podres bases dos governos, independente da classe social. Como era um homem impertinente, esclarecido e culto, formara-se em Direito pela Universidade de Coimbra, tempo em que leu Gôngora, Quevedo e Camões, ele mostrava uma visão humanística bem formada, uma preocupação gritante com o destino do povo da Bahia. No livro Boca do Inferno, Ana Miranda esboça variadas vezes os seus pontos de vista a esse respeito, como se pode ver no trecho: Se alguma coisa eu pedia a Deus, não era exatamente o céu, tampouco a riqueza material. Pedia que o mundo se tornasse justo (p. 84). A arma que utilizava para protestar ou louvar era a sua poesia, cujo processo criativo parecia derivar da necessidade de agradar ou desagradar:

Acho que acabou para sempre tua carreira na Relação Eclesiástica, disse Gonçalo Ravasco. Isso ainda veremos. Tratarei de mandar algumas adulações ao arcebispo. Dos meus versos será templo freqüente, onde glórias lhe cante de contino, declarou Gregório de Matos fazendo pantomimas. (p. 126)

Quando João da Madre de Deus informa a dom Antônio de Souza que Gregório lhe manda poemas laudatórios, o governador diz:

Esse é o seu método. Remete os cumprimentos e depois pede mercês. Quase sempre dinheiro. Saúda de espinha recurvada arcebispos, infantes, reis, provedores, ouvidores, desembargadores. E quando não obtém o que deseja, usa de sua mordacidade. (p. 225)

As mulheres

Em relação às mulheres, era demais contraditório: Na verdade, muitas vezes ele tinha sobre [as mulheres] elas pensamentos conflitantes. De amor e ódio. (p. 129)

Ele mesmo revelava que as adorava, mas não tinha consideração por elas: -Anica... Cuidado comigo, está bem? Não sou muito bom para as mulheres. (p. 130)

Tão cheias de contradições eram as suas atitudes, que proclamava querer uma mulher para casar, não lhe importando se era branca, preta, freira, empregada doméstica, carola, meretriz, bela ou deformada... (p. 90) logo ele que havia se casado, pela primeira vez, com dona Michaela de Andrade, uma rica e branca senhora de uma família tradicional portuguesa, da qual enviuvara pouco depois e tivera uma filha. O Pe. Vieira, inclusive, sabendo que ele gastava o dinheiro da mulher na esbórnia, sem que lhe desse alguma assistência, criticava-o, acusando-o de ter casado por interesse.
A prostituta Anica de Melo, sua amante, apaixonada e sonhadora, acolhe-o no seu bordel, quando ele está se escondendo do Braço de Prata, por ter-lhe ridicularizado em sátiras mordazes. Ela sonhava em casar-se com o poeta, mas percebia que, embora dissesse que para ele todas as mulheres eram iguais, não seria jamais capaz de casar-se com uma meretriz:

Ele mentia, pensou Anica de Melo. Demonstrava sempre fazer uma clara divisão entre as mulheres para fornicar e as mulheres para casar. Entre as negras e as filhas de fidalgo. Entre as meretrizes e as donzelas. (p.90)

Todas as moças do bordel queriam ir para a cama com o poeta, pois além de bom amante, ele gostava de contar histórias, recitar poemas. Elas se sentiam valorizadas com suas gentilezas, já que ele passava horas brincando com elas, pregando-lhes adereços em partes do corpo. Pouco importava-lhes que ele saísse divulgando o que fazia, se prevalecendo do fato de, em três dias, já haver fornicado todas. (p.117)

Às vezes, ele até revela a superioridade da meretriz em relação às mulheres “honestas”, mas é fácil perceber que tal ocorre no que se relaciona a sexo, como comprovam as palavras de Anica:

As mulheres que conheciam o amor de cama eram bem diferentes das tagarelas dos lares, quase sempre levianas, ignorantes. Ah, o delicioso coito impuro, cheio de catarro e vinho. Delas, das negras devassas e belas, Gregório de Matos seria escravo. (p. 17)

Embora tenha se casado primeiramente com uma mulher de muitas posses, sua última esposa foi uma negra, viúva e pobre – Maria dos Povos – a quem ele abandonou pouco tempo após o casamento, para cair outra vez na vida mundana, embora se dissesse apaixonado por ela e muita a cantasse em seus versos.


A fama

O seu comportamento excessivo era demais conhecido, a sua fama de mordaz, permissivo e indecoroso corria por toda a cidade, despertando os receios de muitas mulheres, mas povoando o imaginário da maioria delas :

É garboso como um cavalo. Se não tivesse escrito tantos desaforos, tantos desalinhos... suas sátiras falam de noites de desvelo, desvario; sem recatos conta quantas vezes deitou-se e com quem. Com desenfado queixa-se dos viciosos moradores, esquecendo os virtuosos. É um extravagante. (p. 91)

Esse comportamento extravagante assinalado por Bernardina Ravasco, sobrinha do Pe. Vieira que estava sob sua proteção, revela o verdadeiro espírito barroco de Gregório, a sua contradição maior que é ser e não ser fiel a Deus, às mulheres e a ele mesmo, conforme se lê em outra declaração da mesma personagem:

Sei bem que é desembargador, vai tomar ordens sacras, mas tem uma fama... loquaz, sedutor, um letrado que agora está ajoelhado diante da Virgem Maria e em seguida afunda-se no colo das meretrizes. Graduado na universidade da luxúria, que é braba universidade. Tudo com tal publicidade... (p. 91)

Maria Berco, apaixonada, já percebe nas sátiras do poeta uma outra intenção, que não a de ser extravagante gratuitamente: Pensa que o mundo está errado e querendo emendá-lo, torna-o mais vicioso. (p. 92)

A mudança de comportamento

Em alguns momentos, Gregório demonstrava um comportamento romântico:

Sei que existe uma mulher para mim como uma princesa para os meus sonhos. (p. 90)
...tenho meus amores líricos. Estou, mesmo, em busca de um grande amor. Uma mulher que sirva para casar.

Em outros, seu romantismo diluía-se no prazer carnal:

Gregório não conseguiu tirar Maria Berco do pensamento...Estava acontecendo mais uma vez com ele. Ah, por que desperdiçar tantas horas em devaneios? Por que seu coração era tão frágil e fácil de penetrar? E por que seria seu coração ligado tão diretamente ao que levava entre as pernas? (p. 94)

Embora se dissesse apaixonado por Maria Berco, não escondia sua paixão desmedida pelas mulheres, nivelando-as, [viúvas, putas, negras forras, escravas, mulatas, brancas pobres, freiras, mulheres suaves, belicosas, portuguesas, damas pintadas (p. 295)] enquanto instrumentos do prazer carnal. Jurava amor a Maria e, logo depois, caía na esbórnia, entregando-se às meretrizes, esquecendo as juras que fizera.
Em muitos momentos, agia mesmo de forma animal, como se para ele as mulheres fossem objetos que, como dizia “... devem cumprir sua parte: fornicar, fornicar e fornicar”(p. 116). Leia-se a passagem em que ele se sente atraído por uma prostituta nova no bordel, a única que ela inda não havia possuído:

Uma das moças trouxe uma panela de grude para colar as páginas arrancadas. Era a negra novata. Gregório de Matos empurrou as outras moças para fora. Ficou sozinho no quarto com a mulher. Sem falar com ela, sem ao menos perguntar seu nome, tirou a roupa dela e colocou-a, nua, deitada na cama, depois de jogar os livros no chão....Ele agarrou o corpo dela com fervor e possuiu-a muitas vezes seguida, sem dizer uma só palavra. Depois pegou um livro e leu em voz alta enquanto a moça se vestia, um pouco assustada. (p. 158)

E ainda se comportava como um gabola, ao declarar o que fazia publicamente:

Serei perpétuo lambaz do ralo, da roda e grande. Os meus doces empregos. Ah, a abadessa dona Marta! a prelada, porteira do mosteiro de Odivelas. Nunca houve mulheres tão arrebatadas. Faziam de tudo, meu amigo, como nenhuma outra. Em Odivelas galanteei uma freira, da qual não me recordo mais o nome, e quando fomos fazer o que queríamos, a cama pegou fogo... tinha uma outra freira, Arminda, que me recebia enrolada em peles preciosas de animais... Numa ocasião uma freirinha me quis mandar um vermelho e foi impedida por outra freira que disse que eu ia satirizar o peixe. Sabes o que fiz? Satirizei a freira que impediu. (p. 268)

Além das gabolices, o poeta parecia enfastiar-se das conversas, como se lhe interessasse o sexo pelo sexo, apenas:

...mulheres querem tudo sempre bem-arrumado. E não sabem ficar caladas depois de fornicar. Ficam naquele nhenhenhén. Às vezes acho que as mulheres não gostam de fornicar. Fazem-no apenas para conversar depois. (p. 268)

A verdade é que o poeta não conseguia ser fiel ou tornar acreditado o seu amor, pois num passe de mágica transformava seus sentimentos e suas vontades. No final do romance Boca do Inferno, ele se despede de Maria Berco, após conseguir tirá-la da prisão e esperar ansiosamente sua recuperação. Quando ela parte, ele, após falar-lhe de amor e prometer encontrá-la em breve na cidade, escuta o barulho de “tambores, vozes, risos femininos” e diz: O que ouço? Roçagares de saia? Ah, mulheres, minhas pretas. Foi saltitando para a praia.
Maria Berco esperou em vão que Gregório de Matos voltasse à Bahia para encontrá-la, como prometera. Soube após algum tempo que ele havia se casado com Maria dos Povos, com quem teve um filho.
Embora cantasse o amor por Maria dos Povos em seus versos, como dissemos, o poeta logo voltou à mesma vida desregrada, em farras e camas de mulheres, não tardando a deixar sua mulher para virar um andarilho, que perambulava pelo Recôncavo, embriagado, desferindo maldizeres contra os poderosos, o que lhe valeu prisão e degredo em Angola. Não pôde voltar à Bahia nem para morrer.

O cargo

Em relação ao seu cargo na Igreja, Gregório não desenvolve nenhum trabalho, aparece apenas para receber o soldo. Também não parece interessado em mudar de atitude.
Após enfrentar o arcebispo João da Madre de Deus, Gregório insinuou que o religioso estava recebendo benesses do governador, o que o fez irritar-se. Vendo que o poeta se excedera na acusação, Gonçalo perguntou-lhe como estava a situação dele na Relação Eclesiástica e ouviu como resposta:

“Não acredito que esteja muito bem. Mas logo saberemos... acho que João da Madre de Deus não vai ter coragem de me afastar de Relação Eclesiástica”. “Pouco me importa ficar na Sé. Aquele lugar é um presépio de bestas, se não for estrebaria” (p. 103-4)

Irreverente, o poeta tinha consciência de sua indisciplina e não demonstrava nenhuma restrição ao seu modo próprio de ser. Não parecia arrepender-se de sua extravagâncias pois, no seu entender, aquela época era de vícios “E vícios são virtudes”. Justificava sua mordacidade:

“De que pode servir calar? Nunca se há de calar o que se sente? Dizem que sou satírico e louco, de má língua, de coração danado, mas os que não mordem é porque não têm dentes... A mudez canoniza sa bestas. Os padres são uns filhos da puta”(p. 124)

O comportamento permissivo e indecoroso de Gregório não chocaria tanto se não fosse ele um Desembargador da Relação Eclesiástica, que chegou a exercer os cargos de vigário geral e tesoureiro-mor, sem jamais usar roupagem eclesiástica, como era obrigado. Ele escrevia suas sátiras mordazes contra os padres e os políticos, freqüentava bordéis e perdia-se em noitadas de luxúria, sem romper os vínculos com a igreja.
Tentando envenenar o arcebispo, relatando fatos e descrevendo o comportamento de Gregório, o Braço de Prata adverte-o de que o poeta é ambicioso, quer chegar a cargos muito altos, faria de tudo para ser bispo, ou arcebispo. Por isso se mantém na igreja. E questiona a vocação dele, dizendo que quando não está conspirando, o homem vive embriagado nas tabernas, sempre fazendo arruaças (p. 225). Acrescenta que expulsar Gregório de Matos da Sé seria moralizar a igreja.
Sabendo que o Pe. Vieira o tem em muita consideração, o arcebispo procura Gregório e dá-lhe um ultimato: ou muda de comportamento e recebe as ordens sacras, ou sai da Sé. Gregório diz que não pode mudar, pois é a sua natureza, e que:

Ser mau secular não é tão culpável e escandaloso como ser mau sacerdote. Não posso votar a Deus o que me é impossível cumprir pela fragilidade do meu caráter. (p. 229)

Na verdade, Gregório reconhece suas limitações de caráter e considera hipócritas as instituições religiosas, motivo pelo qual não quer compactuar com elas. Isso se evidencia quando recusa receber as ordens sacras e diz: a troco de não mentir... perderei todos os tesouros e dignidades do mundo” (p. 229). Perde o cargo de Desembargador Eclesiástico, mas não se violenta, tentando ser o homem correto que jamais poderia ser.
Embora autêntico, possuidor de idéias de justiça e crédulo da palavra de Deus, Gregório proferia blasfêmias, demonstrando uma personalidade controversa, e uma postura indecorosa, desleixada e desprovida de respeito: Ora, por que Deus pouparia os filósofos ou os santos do sofrimento? São gente como nós.. Não fazem eles seu cocô matinal?...

Dizia que ninguém escapa de cumprir as necessidades fisiológicas, inclusive Deus: Deus caga. E caga na nossa cabeça /.../ Sabes que Jesus era sodoma? (p.163)

Pior era subverter o conteúdo das orações, mesmo em momentos de grande desespero, entremeando-as com palavras de baixo calão e inserindo termos indizíveis:

Prepara-te para morrer, amigo. Reza comigo, eu fodia, tu fodias. Ave Maria cheia de Graça. Meu Deus, eu pequei, não tirei o barrete quando passou a procissão. Perdoai-me, Senhor (p. 270)

Eram realmente inconciliáveis os objetivos do poeta que, segundo Ana Miranda, proclamava não ter tido outras pretensões na vida, senão as de formar-se em direito canônico e fornicar todas as mulheres. Todas elas (p.89).
Na opinião de Varnhagen, a obra e as atitudes de Gregório expressavam a psicologia de um homem vadio e desclassificado. Depois, Sílvio Romero, com uma visão mais determinista, as entendeu como resultante da mistura racial. Posteriormente, José Veríssimo as avaliou como resultantes da psicopatologia, já que se tratava de um nevropata, um neurótico; e, Araripe Jr., no final do século XIX, analisou-as como resultante de uma associação do clima tropical, que “obnubila”, desperta a tara do homem, que então já se havia transformado num fauno obcecado pelo sexo, um tarado “ressentido” e “pessimista”; e, ainda, depois, como resultante da crise econômica da Bahia no final do XVII, que faria de Gregório um homem do “ressentimento” contra a ascensão burguesa e um homem do “pessimismo” por causa da perda da posição aristocrática (apud Hansen,1989).
Independente das justificativas que se possam dar para tão contrastante produção literária, o fato é que, hoje, Gregório de Matos goza do prestígio a que faz jus sua obra, cuja totalidade só veio a lume entre os anos de 1923 e 1933, quando Afrânio Peixoto, através da Academia Brasileira de Letras, a reuniu em seis volumes com o título de Obras. Tal demora deveu-se ao fato de o poeta ter publicado poucos poemas em vida e de não haver assinatura em seus escritos.Tomás Pinto Brandão, em visita ao poeta, escondido na Praia Grande, diz ter anotado cópia de vários poemas e que os distribuiria para serem lidos para as amantes, na cama. E pergunta a Gregório por que não os assinava, ao que o poeta responde: Para não ser queimado (p. 297).
Tal atitude gerou problemas de autoria, já que, comprovadamente, havia-se constatado plágios de textos de escritores famosos na época, como Gôngora, por exemplo. No livro de Ana Miranda há o registro de que João de Lencastre, (sucessor e sobrinho do governador da Bahia, Tucano, o político mais satirizado e responsável pelo degredo do poeta), pediu ao povo baiano que registrasse num livro as poesias de Gregório. O livro ficava aberto numa sala do palácio e havia, às vezes, filas de pessoas com sátiras e poemas líricos nas mãos, ou de cor, para serem transcritos. Diz ainda Ana Miranda que poucos sabiam se tais escritos eram realmente de Gregório de Matos, mas como ele fora o grande mestre nas sátiras, na imprecações, na dessacralização, na profanação e no amor, achavam lógico que fossem dele.
Seja qual for o motivo, o fato é que Gregório parece não ter tido a preocupação com o seu nome na posteridade. Numa demonstração de que pouco lhe importava o destino de seus versos, talvez construídos, como falamos, de acordo com suas conveniências, ele mesmo afirmava: Escritos vão e vêm. São feitos para o vento e o fogo. (p. 96).

A modernidade de Gregório

Por conta da sua decepção com a igreja ou com os homens, Gregório acabou se identificando com a época medieval das cantigas de escárnio e maldizer. Tanto, que foi o primeiro poeta satírico brasileiro, e, embora tenta escrito uma poesia lírica e sacra de boa qualidade, é pela verve ácida que o poeta mais aparece, sobretudo por resgatar esse gênero, que não se coadunava com o estilo vigente. Sua sátira foge dos padrões preestabelecidos pelo Barroco, constituindo uma poesia realista e brasileira, com uma percepção crítica da exploração colonialista empreendida pelos portugueses na colônia. Além disso, usa uma língua portuguesa diversificada, cheia dos termos portugueses introjetados pela colônia. Essa diversificação fica patente, também, na presença de muitos termos indígenas e africanos, não ausentes de palavrões, gírias e expressões locais. Talvez tenha sido a primeira manifestação nativista de nossa literatura e o início de um longo despertar da consciência crítica nacional, que levaria ainda um século para abrir os olhos, como afirma Massaud Moisés (1986).
Na verdade, Gregório demonstra irreverência em todas as suas vertentes: como pessoa, ao chocar os valores e a falsa moral da sociedade baiana de seu tempo, com seus comportamentos considerados indecorosos; como poeta lírico, ao seguir e quebrar os modelos do barroco europeu; como poeta satírico, ao lançar mão de um vocabulário de baixo calão. Criticou as contradições e falsidades da sociedade, ignorando o poder das autoridades políticas e religiosas, o que lhe rendeu perseguições, exílios e a proibição até de morrer em seu estado natal.
O fato é que, hoje, tem sua obra reconhecida como um projeto literário que não só abriu uma tradição literária entre nós, superou os limites do movimento, o que – reconheçamos – o faz precursor da poesia moderna.

2. Ó comportamento barroco

Maria Berco, casada com o velho João Berco, cego e avarento, que lhe tirara do orfanato, sente-se apaixonada e imensamente atraída por Gregório de Matos, que lhe corresponde em todos os sentimentos. Embora essa paixão não cheque a se realizar, Maria passa por momentos de muita tentação, sente-se uma pecadora e chega a flagelar-se. Tal atitude resume o espírito barroco imperante nas pessoas, que se dividiam entre os prazeres carnais e o medo de pecar e ir para o inferno:

Não merecia nada mais do que o inferno. E agora seu corpo a queria lançar no abismo do adultério.Era preciso esquecer Gregório de Mtos. Deus a enviara àquela missa onde o padre admoestara contra a traidora...Maria Berco abriu os olhos, estava diante de um espelho. Viu a si mesma montada numa besta com sete cabeças e dez chifres... Abrasada acordou. Levantou-se da cama e foi ao espelho... Pegou um chicote e voltou para o quarto...Despiu-se da roupas de baixo. Viu-se nua, uma imagem difusa no vidro, deformada... Jamais se desnudara na frente de um homem. E poucas vezes diante de si mesma. A nudez era pecado... pegou e chicote e flagelou-se... tinha de esquecer Gregório de Matos. (p.153)

Mas o comportamento barroco não se restringe à figura irreverente de Gregório ou Maria Berco. O próprio Antônio Vieira (1608-1697), embora padre e pregador veemente da palavra de Deus, era a favor de atitudes drásticas para defender os direitos do povo, sobretudo dos índios e dos judeus. No livro Boca do Inferno, era acusado de conspirar contra o governo, era considerado o carrasco (p. 81) do governador Antônio de Souza, que queria vê-lo morto por ser ardiloso, traiçoeiro e promotor de ciladas (p. 145), embora o considerasse já um velho alquebrado, de asa partida (p. 57).
Irmão de Bernardo Ravasco e tio de Gonçalo Ravasco, jovem que apagava com sangue as nódoas das injúrias passadas (p. 47), um dos encapuzados da emboscada contra o alcaide-mor Francisco de Teles Menezes, defendia os seus e os demais homiziados, no direito de lutar com todas as armas contra as arbitrariedades do governo. O colégio dos jesuítas era o lugar de conspiração e o refúgio para os assassinos perseguidos, que cometiam crimes em nome da defesa do povo baiano. Ser a favor da morte para defender a vida não deixa de ser uma contradição e assinalar um comportamento dúbio. Vejamos o momento em que Vieira tenta tirar o sentimento de culpa do irmão por ter tramado o assassinato do alcaide:

A virtude está subordinada aos interesses do reino. A religião já não significa alheamento ao mundo, não para mim. O maior pecado é a omissão. Portanto, não sofras com o que está acontecendo.... Como piedoso homem choras teus meles mas, se não houvessem feito o que foi feito, o inimigo desenfreado já não se contentaria apenas com a cidade e seus cabedais, porém com grande ousadia havia de se apossar das almas da gente sem haver quem lhe pusesse freio a tanto desaforo. Estás acudindo nossa santa fé católica e por lealdade à Coroa te arriscas. (p. 47)
A morte de tal figura, como tantas mortes, traria mais benefícios que faltas. (p. 67)

O comportamento barroco que se percebe em Maria Berco, por seu dilema entre a carne e o espírito; em Gregório, através de seus excessos e de suas indisciplinas, e que se perfigura em atitudes contraditórias do Padre Vieira, é extensivo à população e até a alguns padres que se comportavam de forma paradoxal:

De noite, aqueles mesmo freqüentadores de missas andavam em direção aos calundus e feitiços. Homens e mulheres... Deliravam, dançavam de maneira que muitos acreditavam ver dentro deles o próprio Satanás. Quando se confessavam na Igreja, escondiam isso dos padres, apesar de não ser raro ver-se um sacerdote em tais cerimônias. (p. 14)

Aliás, o comportamento dos padres é completamente diverso do que defendia a igreja católica, numa demonstração de que o voto de castidade, pelo menos ali no estado da Bahia, não podia ser cumprido. Em várias passagens da obra de Ana Miranda isso fica evidenciado:

Encostado à janela Gregório de Matos observava uma negra que passava seminua, descendo a ladeira com um altivo movimento nos quadris. Um padre a acompanhava... “Lá vai o frade fornicão”, disse Gregório de Matos. Frade descalço pregando de meia. São uns velhacos. Recebem putas nos conventos, saem à noite em diligências sedutoras, às vezes disfarçados, transformam igrejas em alcovas. Na manhã seguinte acompanham a procissão com hipocrisia, açoitando-se diante de todos, ainda com os odores da ardente noite anterior... E vêm com lérias nos sermões a recomendar cilícios. Os valores da alma estão enterrados. (p.102)
Um dos padres que visitava a viúva era o abade do convento. Dele se dizia que roubava as rendas da instituição para acudir ao sustento vicioso (p. 92)

O Padre Eusébio de Matos, irmão de Gregório e excelente pregador, ardentemente admirado pelo Pe. Vieira, é expulso da Companhia de Jesus por conta do seu envolvimento declarado com mulheres e pelo fato de ter vários filhos bastardos.
Tais permissividades, segundo o poeta Gregório de Matos, em justificativa sobre os seus excessos, não era culpa de quem as cometia, mas da própria cidade que favorecia as tentações através do grande número de mulheres à disposição:

Achava que a culpa de seus pecados não era sua. Na cidade havia muitas mulheres disponíveis... segundo o poeta, todas eram, especialmente as viúvas, as abandonadas pelos maridos, as casadas com “broxas e capados”, que não gastavam a cera por não pegar o pavio. As disponíveis, quase sempre mulheres mais velhas. (p.127)


Conclusão

A própria Ana Miranda defende o poeta, dizendo que Boca do Inferno não era Gregório de Matos. Era a cidade. Era a colônia. Então não era barroco só o poeta, mas toda a colônia, desde que consideremos o conceito de “barroco”, como nome de uma arte e de um comportamento próprios de sociedades de Corte monárquicas e absolutistas e que ele seja entendido fundamentalmente como “ostentação”, “acúmulo”, “jogo de palavras”, “deformação”, “excesso”, “ludismo”, “niilismo temático”. Sobretudo como a engenhosidade de uma tendência que faz com que o caminho mais reto entre dois pontos pareça uma curva, recuperando as palavras de João Adolfo Hansen (1989).


Bibliografia


BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1987.
CEREJA, William. A literatura brasileira. Rio de Janeiro: Atual, 1999.
HANSEN, João Adolfo. A sátira e o engenho. Gregório de Matos e a Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MOISÉS Massaud. A literatura Brasileira através dos textos. 12ª ed. São Paulo: Cultrix. 1986.
MIRANDA, Ana. Boca do Inferno. 4a ed. São Paulo: Companhia das Letras. 2000.
SANT’ANA, Afonso Romano de. Barroco, a alma do Brasil. Rio de Janeiro: Bradesco Seguros/Comunicação Máxima, 1997
WÖLFFLIN, Heinrich. Renascença e Barroco, São Paulo: Editora Perspectiva,1989.

DÔRA, A PERSONIFICAÇÃO DA DOR

Resumo

Falaremos acerca da personagem Maria das Dores (Dôra), protagonista do romance Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz, inicialmente, reconstruindo sua imagem física e seus traços comportamentais, possíveis de verificar através das diversas situações vivenciadas e das relações estabelecidas com as outras personagens. Sua postura diante da diversidade de circunstâncias com que se depara aparece não por meio de descrições, mas de sua própria atuação. Em seguida, traçamos sua trajetória de dor, iniciada no parto da mãe e no estigma do nome, e perpetuada até o momento em que ela perde o seu verdadeiro amor e retorna às suas raízes.

Palavras-chave: Romance, personagem protagonista, traição, amor, dor.

Considerações iniciais

Embora sejam seres essencialmente de linguagem, fictícios, edificados a partir da memória e da imaginação do escritor, alguns personagens parecem saltar do papel e adquirir vida no mundo real. O leitor constrói uma imagem através da realidade, que figura apenas como um dado inicial, já que é ela o espaço em que as virtualidades imaginadas podem se tornar concretas (CÂNDIDO, 1976).
Tal ocorre em Dôra, Doralina, romance de Rachel de Queiroz, publicado em 1975. O discurso constitui-se de um relato memorialista da personagem protagonista, que conta a sua história, e se apresenta com uma existência quase palpável. Ela narra os fatos, tecendo um retorno ao passado e resgatando, a partir de suas vivências, outras personagens que, inevitavelmente, participaram da sua vida.
A exposição de uma história já transcorrida evidencia que o passado é contado no momento presente, depois de tudo consumado.

Felizmente já faz tempo. Pensei que ia contar com raiva no reviver das coisas, mas errei. (p. 9)

A narradora se transporta em flash back, voltando somente no final, ao ponto de onde iniciou o relato:

O círculo se fechou, a corda mordeu o rabo: eu acabei voltando para a Soledade. (p. 232)

A antecipação do final, própria das narrativas cíclicas, não compromete o interesse do leitor, que se envolve na ânsia de descobrir como e por que a personagem chegou àquele estado.
O fato de a história já ter sido concretizada no tempo imprime grande força realizadora e remete o leitor à certeza de que o narrador domina até os menores detalhes, ganhando, por isso, intensa credibilidade. Lucácks (1965), a esse respeito, diz que “o caráter de passado é um meio de composição fundamental, prescrito pela própria realidade do trabalho de articulação e ordenamento da matéria”. Em Dôra, Doralina, só o essencial é narrado; a seleção dos momentos parece já ter sido feita pela própria vida. A verdade da personagem é, assim, plenamente assegurada.

Essa empatia com a personagem protagonista induziu-nos à necessidade de compor a sua imagem física, sua forma de ser e de agir, bem como despertou a curiosidade de traçar o seu percurso de dor iniciado no seu próprio nome e concretizado na sua história. É isso que tentamos fazer neste trabalho, oportunamente utilizando passagens da obra e confrontando-as com a nossa análise, no intuito de comprovar o que dizemos.

A personagem Dôra

Narradora e protagonista da história, Dôra ultrapassa os limites da ficção e torna difícil flagrar os limites que separam com nitidez a realidade da fantasia (BRAIT, 1990). Tentaremos, através das possibilidades oferecidas pelo texto, delinear alguns dos seus traços físicos e comportamentais, através de descrições feitas por outras personagens ou de atitudes em que transparece sua maneira de ser e de agir ante as situações vivenciadas.

Características físicas

Poucos traços físicos da personagem são revelados. Alguns aparecem através da voz de outras personagens, como é o caso de Xavinha, agregada de sua casa, que se refere ao corpo de Dôra como raquítico, difícil de realçar uma roupa, referindo-se a ausência de seios.

Sr. Brandini, quando Dôra aceita o papel de atriz em sua Companhia de Teatro, refere-se a ela como magricela, característica que se adequa perfeitamente ao papel de moça ingênua que ela vai representar.
Outras vezes essas mesmas características são colocadas por ela própria, quando, comparando-se à robustez de Senhora, se percebe inferior:

[...] meus fiapos de perna, as ancas finas, o peito batido, o cabelo estirado [...] era sempre a menor da classe, magrela e calada... (p. 23)

Quando Dona Loura, em visita à Fazenda, elogia Dôra e diz a Senhora que, colocando cinco quilos no corpo, Dôra se transformaria numa moça linda, Senhora, com os “olhos frios”, decreta que desafia quem puder fazê-la robusta e acrescenta que já perdeu as esperanças, como se a visse irreversivelmente como uma moça sem qualquer atrativo.
Dôra é, dessa forma, descrita como uma moça pequena, magra, que tem os cabelos compridos e estirados. Nada mais é acrescentado sobre o seu tipo físico. Ela mesma diz:

Talvez eu não fosse bonita, era só engraçadinha. (p. 94)

No final da obra, depois de anos transcorridos, quando encontra Maria Milagre, ela escuta os mesmos comentários, em relação ao seu corpo, de quando era menina, o que nos mostra que não houve transformação em seu aspecto físico no decorrer da história.

Modo de ser e de agir

As atitudes e reações que Dôra vai mostrando nos vários momentos narrados permitem que o leitor perceba os traços de sua personalidade. Apesar de confessar-se tímida, ela se revela uma mulher de luta. Vejamos os momentos em que a sua personalidade se destaca:

• Dôra x Senhora

A difícil relação com a mãe sugere certa rivalidade entre ambas como se, por vezes, medissem forças. Dôra, muito cedo, passa a chamar a mãe pelo nome próprio de “Senhora” ou faz referência a sua pessoa através do pronome pessoal “Ela”, o que marca um corte no laço maternal:

Aos poucos, quase sem querer, fui me acostumando a dizer o nome dela como todo mundo. [...] Por esse tempo eu já tinha deixado de chamar Senhora de “mãe”. Ainda não tomara coragem pra dizer “Senhora” como nome próprio, na vista dela __ dizia “a senhora", o que era diferente. Mas de mãe não a chamava... Nas ausências, quando dava um recado para os outros ou contava um caso em que Senhora comparecia, eu dizia “Ela”. (p. 16)

A não aceitação do nome por parte de Dôra é um dos pontos de discórdia entre as duas. Senhora justifica a escolha de Maria das Dores como decorrência de uma promessa para não morrer de parto. A revelação do motivo da escolha do nome sai com um certo travo, transparecendo a idéia de que Senhora atribui à filha, indiretamente, a culpa de quase ter acabado com a sua vida.

__ O nome foi promessa. [...] Me vali de Nossa Senhora das Dores para não morrer de parto. Não sei se você sabe, mas você quase me matou. (p. 13)

Outra atitude insolente, que mostrava a desconsideração de Dôra por Senhora era a recusa em lhe pedir a bênção. Por mais que a mãe exigisse essa atitude de respeito, comum na época e no ambiente em que viviam, ela respondia que não era negra cativa para ser obrigada a pedi-la, além de saber que a bênção caíra em desuso. O que ela não queria, na verdade, era consolidar qualquer vínculo com Senhora, já que não a considerava apenas uma mãe biológica.
A figura do pai, cujas informações lhe chegam através de pedaços de conversas, é outro motivo para desentendimento entre elas. Senhora nunca se dispõe a falar sobre ele, como se não encarasse a curiosidade da filha como um fato natural. A rivalidade, iniciada provavelmente através da figura dele, se acentua com a presença de Laurindo, pois Senhora não escondia a afeição pelo genro. Dôra não queria dividi-lo com a mãe e desconfiava da possibilidade de interesse de um pelo outro; mas, no fundo, não queria acreditar.

Quando, numa noite de insônia, ouve a voz do marido no quarto da mãe, certifica-se da traição e percebe como impossível qualquer possibilidade de convivência pacífica. A discórdia entre as duas é contínua. Tudo o que Dôra conquistava era através de muita luta. Apesar dos protestos da mãe, por exemplo, ela consegue fazer com que o velho Delmiro se instale na fazenda, argumentando que parte daquela terra lhe pertence.

Com Senhora, sempre me tinha parecido desde pequena, que eu tinha de brigar até pelas horas de sono. (p. 28) /.../ Tive a briga com Senhora e garanti a tapera de Delmiro. (p. 38)

Quando Laurindo morre, logo após a descoberta do seu caso com Senhora, Dôra resolve ir embora. A mãe exige que ela vá de preto, para evitar a língua do povo, mas ela não dá importância e vai de azul, consciente da atitude transgressora que encara e do seu significado:

Tirei o luto para a viagem. Senhora protestou ao me ver com o meu costume azul.
__ Você faz questão de causar escândalo. Cerrei a boca com força, não respondi, mas não mudei de roupa. Atravessei toda Aroeiras vestida de azul. (p. 63)

A ralação entre mãe e filha é substituída pela imposição de personalidades igualmente fortes que disputam algum domínio. O vínculo sanguíneo não atenua o ressentimento que uma tem pela outra, ao contrário, agrava-o na disputa de territórios comuns: a fazenda, a memória do pai/marido, Laurindo.

• A insubmissão a Laurindo

Laurindo, sendo o único homem da casa, era demasiadamente respeitado pelas mulheres, que faziam questão de atender a todas as suas vontades. Dôra fazia questão de não pertencer a esse grupo, embora ele fosse seu esposo:

Ele o senhor macho naquela casa de mulheres [...] era o filho querido, o sinhozinho a quem todo o mulherio fazia os gostos, correndo. [...] Talvez só eu não corresse. Às vezes até me impacientava aquele paparico das mulheres com Laurindo. [...] Então eu fingia que não ouvia quando ele varejava de casa adentro me chamando, demorava para atender. Deixasse ele ver que eu, eu pelo menos, não era negra de ninguém. (p. 49)

Dôra rebate veementemente a perseguição do marido a Delmiro. Quando Zeza a avisa que ele matou a marreca-viuvinha do velho e a trouxe para o almoço, ela reage com firmeza e mostra-se indignada com a atitude do marido, tomando o partido do forasteiro.

Outro momento em que ela se rebela às vontades de Laurindo é quando ele a procura na cama e ela, sem mais suportá-lo após a descoberta de sua infidelidade, se recusa a tê-lo na cama.

Para Dôra, Laurindo passa a ser apenas o homem que se casou com ela; a prova para Senhora de que era capaz de arranjar alguém que a desejasse. Nunca atentou, porém, para as suas obrigações de esposa. Embora confesse que à época em que o conheceu sentiu-se envolvida e achou-o bonito, admite que tudo decorreu de seus horizontes estreitos, de sua vida limitada à fazenda; na sua pouca vivência e no seu desconhecimento do mundo lá fora, ela não tinha qualquer parâmetro para comparação e o elegeu como ideal.

• O grito de independência

A descoberta da traição e, depois, a viuvez, deram respaldo para que Dôra decidisse ir embora para Fortaleza. A sua resolução decorreu de um incontido desejo de independência e liberdade. Só isso poderia atenuar a mágoa que a consumia; ela já não suportava dividir o mesmo espaço com a mãe, sua maior rival.

Ela passa a não mais se importar com os valores impostos na sua educação. Sente-se apta para fazer a sua opção de vida e entra para uma Companhia de Teatro mambembe, passando a ser atriz com o nome artístico de Nely Sorel. Quando alguém atenta para uma possível reação de Senhora, ela se posiciona, com soberba, que é uma mulher independente, que não deve satisfação à mãe.

Ao se sentir dona dos seus próprios desejos e de suas decisões, ela inaugura uma nova fase na sua vida. Fazendo parte da Companhia de Teatro, viaja por todo o país, aberta para experiências totalmente novas. Procura conhecer de perto as relações homem/mulher e se permite ceder as suas curiosidades. Aceita jantar e passear de carro com um admirador, sabendo impor os limites; inclusive se dispõe conhecer a garçonnière (p.106) de um deles e, segura do que não quer, foge sem que nenhuma relação se concretize. O que a impulsiona é a ânsia de conhecer a vida.
No trato com os homens, ela foi aprendendo a criar mecanismos de defesa. Chega a se surpreender com a reação que tem, quando um estranho vai, à noite, procurá-la em sua rede. Reage sem escândalo e tem a iniciativa de calar sobre o assunto. Vejamos como ela mesma passa a sentir a medida do seu crescimento:

Fosse meses antes, aquele ataque noturno na certa tinha me assombrado, me insultado, talvez até me feito correr pra longe.[...] Mas a vida nova ensina depressa e eu tinha aprendido muita coisa na Companhia. [...] Nisso tudo o que quero dizer é que antes de entrar na Companhia, tinha o meu corpo como se fosse uma coisa alheia, que eu guardasse depositada [...] Só que agora o meu corpo era meu. (pp.116-17)

Dôra percebe que perdeu os resquícios do comportamento puritano da “filhinha da dona da fazenda” e se assume como mulher, dona da própria vida.

• O Comandante, um amor (quase) bandido

A valentia que Dôra tinha para enfrentar Senhora e a insubmissão a Laurindo transformam-se conscientemente em passividade e subserviência, quando ela descobre o amor verdadeiro. O amor pelo Comandante domina todas as suas reações e ela passa a viver em função dele:

Nada me interessava muito, eu só via as coisas pela metade, por cima, guardando tudo para ver direito mais tarde, com o Comandante... (p. 161)

Ela, inclusive, não hesita em renunciar à profissão de atriz quando o Comandante assim decide; não se questiona pela mudança, não se importa com o que possam pensar. Os seus desejos passam a ser os dele. Quando ele comunica a Brandini que Dôra não trabalhará mais como atriz porque não suportaria ver sua mulher rebolando em cima do palco, ela não reage, coloca-se do lado dele e diz, inclusive, que não se sentia à vontade na profissão. Depois, confessa ao leitor, através do seu relato, os seus verdadeiros sentimentos:

(Isso que eu dizia não era bem a verdade, não era. Acho, ao contrário, que já levasse muito gosto naquela vida de Companhia) [...] Mas só se eu fosse uma louca e tentasse botar na balança – num prato o Comandante, no outro a Companhia. (p. 166)

Dôra aceita o Comandante como ele é: machista, ciumento, bêbado, agressivo, contraventor. O amor dela, entretanto, não é cego, ela sabe de tudo. Revela inclusive que tinha medo quando ele bebia e se tornava violento, provocador; diz que ele gostava de andar armado e se tornava perigoso quando passava dos limites com o álcool, o que acontecia com certa freqüência.

Ela tem tanta certeza de que a “turma” com quem ele anda é contraventora, que quando sabe da morte de Bigode, um tira abusado que o Comandante conheceu na prisão e que depois se matriculou na Academia em que ele trabalhava, desconfia de que o marido tenha alguma coisa a ver com o fato, o que ele nega. Por não esboçar nenhuma irritação com as suspeitas dela, acaba confirmando-as.

Dôra não esconde que sabe tudo sobre a profissão dele; guarda em casa muitas caixas de produtos contrabandeados e até o ajuda a esconder a arma clandestina que ele possui, numa conivência assumida, quando a polícia vai à casa deles em revista. Depois que ele volta da prisão, efetivada por suspeita de contrabando, ela não demonstra qualquer reação, preferindo omitir-se a qualquer julgamento de sua conduta moral. Ela mesma revela que não entendia, não queria entender, porque não tinha importância nenhuma o acontecido; só queria tê-lo de volta. Confessa, inclusive, que não se engana, aceita-o inteiramente por amor:

Ai, eu fazia um Deus daquele homem, podia estar muito errada, não sei. Afinal o amor é isso mesmo, a gente pegar um homem ou uma mulher igual aos outros, e botar naquela criatura tudo que nosso coração queria. Claro que ele ou ela podem não valer tanta cegueira, mas o amor quer se enganar [...] pra mim ele era um deus, chegou deus, viveu deus [...] (p.211)

O Comandante chega até a machucá-la fisicamente, mas ela não esboça nenhuma reação. Com ciúmes, ele bate no seu rosto e deixa nódoas roxas no seu corpo, mas nada disso abala o sentimento incondicional que ela nutre. A esse respeito, Ovídio (2002 p.45) em sua sabedoria milenar, comenta que há mulheres, cuja insolência do parceiro, em vez de afastá-las, atraem-nas, sem que por isso possam ser chamadas de masoquistas; em vez de aviltadas, elas se sentem felizes em terem ao seu lado um homem forte, capaz de dominá-las.

No caso da Dôra, subentende-se que essa submissão tem uma íntima ligação com a sua sexualidade. O Comandante a fez descobrir-se como fêmea. Ele a dominava na vida como a dominava na cama. As iniciativas eram dele; ela, sempre pronta, à espera, obedecia. Bastava o amor que a movia. Vejamos como ele, já doente, ainda queria uma relação sexual. As palavras finais confirmam que, antes, ele era quem tinha as rédeas da situação:

E ele começou a falar na voz que só tinha para mim, e a certas horas era quase tímido, baixinho, carinhoso :
__ Tire essa roupa, venha para a cama...
__ Mas meu bem, você está doente...
Ele insistia, me puxava, com mãos incertas tentava desabotoar os botões do meu vestido...
[...] tirei depressa a roupa, me deitei do outro lado da cama, ajudei o pobre do meu amor a se despir também. Quando nos abraçamos, a pele dele ardia junto da minha... e ele teve um risinho humilde:
__ Ah, hoje só você... Hoje eu não tenho forças para nada.
Fiz tudo o que ele queria __ só eu, como ele disse. (p. 245)

Dôra foi amada pelo Comandante, talvez como nunca tivesse sido na vida; ele a fez Doralina e isso justifica, por si, a relação. Ela assume sua submissão a ele, mas não se pode dizer que houve uma involução no seu comportamento. Quando ela cuida dele bêbado, e compara a situação aos tempos das bebedeiras de Laurindo, percebe-se claramente a dimensão do seu sentimento atual: “era muito grande a diferença entre a obrigação e a devoção”.

No “Livro de Senhora”, ela enfrenta a mãe e Laurindo, embora a situação de filha e esposa sustentem uma certa submissão, já que esses papéis, sobretudo no ambiente em que ela vivia, eram socialmente símbolos de valores a serem preservados. No “Livro da Companhia” ela mostra como, através da viuvez, esses valores podem ser quebrados: não era a mocinha, filha de Senhora, que saía pelo Brasil numa Companhia de teatro, não era uma mulher abandonada pelo marido; era uma viúva, mulher dona de sua vida, portanto. Ao conhecer o Comandante, não existem mais valores a serem quebrados ou preservados; existe o amor que está acima de tudo. A sua submissão é, portanto, uma opção de vida. Observe-se, neste trecho, a harmonia do relacionamento:

O Comandante tinha entendido – e isso era o milagre dele, me entendia sempre, adivinhava o que eu ainda ia fazer, como se para ele estivesse escrito num livro. (p.234)

Para ela, ele era mais que um ser humano, era “um touro, um cavalo de raça, um peixe grande no mar” (p. 239), ela vivia em estado de encantamento, contemplando-o, tocando em suas mãos, seus cabelos, deslumbrada com tanta beleza e com a felicidade de tê-lo. Ela ouvia-o “como se escutasse música” (p.168), extasiada de paixão. A subserviência dela, em nenhum momento pressupõe fraqueza. O desejo de agradá-lo a fazia feliz:

se eu pudesse eu é que dava dinheiro a ele, cozinhava, lavava e passava pra ele, lhe engraxava os sapatos, fazia as coisas mais humildes que eu nunca tinha feito na vida nem pra mim mesma! (p.148)

Ovídio (2002) coloca a condescendência como uma das artes de amar. Observemos suas palavras:

Se sua amiga o contradisser, ceda; é cedendo que você sairá vencedor da luta. Limite-se a fazer o papel que ela lhe impuser./.../ Que a expressão do seu rosto siga a dela. (p.59)

Defensor da submissão em nome do amor, Ovídio (2002) prega a perpétua admiração do amante pelo amado e a dedicação como meios de conquista intermitente. Também coloca o sexo sem pudor como forma de aproximação ainda maior. O amor de Dôra pelo Comandante tinha toda essa sabedoria, como se intuitivamente, ela tivesse descoberto a fórmula da felicidade. Pouco lhe importava questionar a relação de poder. Seu trunfo era ser feliz ao lado do homem amado.

• Dôra assume o Condado de Senhora

Depois da morte do Comandante, só uma coisa resta a Dôra: voltar para a fazenda e assumir o seu lugar, o lugar que fora de Senhora. O vínculo com as raízes reacende-se na necessidade de sobreviver. Encontra tudo decaído, deteriorado, exatamente como ela própria se sente: sozinha no mundo, qual a Soledade abandonada, indo de “água abaixo”.

Ela, madura e dona de sua própria história, deixa transparecer que tem a mãe como exemplo. Sem a presença dela, encontra, finalmente, seu lugar no mundo: Sõ guando retorna, sentindo já fria a cinzs de Senhora, ela dem4nstra gue o que sempre, talvez, tenha guericlo, era o lugar dela

No remate das contas, eu era a filha de Senhora e tinha o exemplo de Senhora. E a casa dela, a terra dela, a marca das suas pisadas para eu pisar. E sem ela atravancando a casa e me tomando a entrada de todas as portas __ sem ela __ lá é que era o meu lugar. (p. 235)

Dôra sempre admirou a mãe e quis impor o respeito que via estampado no rosto dela. Sempre cobiçara sua beleza e sua posição altiva. Tanto é verdade, que ela se sente feliz quando um amigo do Comandante a trata por “senhora”; chega mesmo a refletir: “ou era o título da outra que eu cobiçava?”.
Sentindo-se viúva do Comandante, Dôra faz questão de vestir luto e passa a entender a significação que isso tinha para a mãe:

[...] no sertão achei o preto obrigatório. Era o meu documento de viuvez, ou mais que isso; aquela roupa preta era a carta de marido que eu assinava para o Comandante. (p. 236) [...] O luto, ali, ainda era o passaporte da viúva, me garantia o direito de viver sozinha, sem ninguém me perturbar em nada, de mandar e desmandar no meu pequeno condado [...] o condado de Senhora. Sendo que agora a senhora era eu. (p. 236-7)

Mas a sua viuvez doía “como fogo vivo”, diferente da de Senhora para quem ela era um estado natural de vida; uma forma de sem impor perante a sociedade.
Mesmo assim, é Senhora o seu espelho e, igual a ela, passa a viver am função da terra:

Procurava a todo instante me lembrar de como Senhora fazia; e tudo se repetia agora como no tempo dela, porque mesmo que eu quisesse não sabia fazer nada diferente, e então era a lei dela que continuava nos governando. [...] E aos poucos eu também ia endurecendo, na couraça do meu vestido preto... (p. 239)

Ela se apossa da Soledade com um apego material que a dispersa do mundo interior que se encontra aniquilado. Lá, até a solidão é diferente, porque é conhecida, como ela fala, é antiga e já estava no seu próprio sangue. E nenhum lugar era mais adequado do que a fazenda, que, além de sua, trazia no nome, Soledade, a significação do deserto, da tristeza característica do total abandonado, exatamente como se encontra Dôra, “com a carne esfolada sangrando”.

A rivalidade, certamente, residia no fato de serem parecidas e quererem disputar o domínio dos mesmos espaços, o amor das mesmas pessoas. Com Senhora viva, Dôra ficava em desvantagem, pois era sua mãe, a autoridade da terra que administrava, mesmo sendo Dôra a dona da metade. Era a guardiã das lembranças do pai e, certamente, o alvo do maior interesse de Laurindo.

A personificação da Dor

Observamos que Dôra, em toda sua trajetória, é marcada por uma espécie de predestinação para a dor. Poderemos, seguindo a narrativa, comprovar que tal estigma a acompanha a partir do seu próprio nome __ o que se torna extensivo a sua experiência de vida. É bastante oportuno citar o que diz Monteiro (1991, p. 31) ao comentar o acento diferencial no nome Dôra, que, à época, já havia sido abolido por lei:

[...] a ausência dele (do acento diferencial) faria que o nome Dôra pudesse ser lido como Dora (ó). Rachel de Queiroz quis associar o nome da personagem às conotações do vocábulo dor e, para tanto, a vogal tônica de Dora teria que ser fechada.

Ele comprova sua análise com as primeiras palavras do romance:

Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida é toda um doer. (p. 9)

Maria das Dores é um nome repudiado pela personagem. A fria relação com a mãe a faz supor que a escolha do mesmo foi uma espécie desabafo, como se a mãe, ao nomeá-la, tivesse desejado proclamar ao mundo que aquela criança era as suas dores.
Embora Senhora tenha uma justificativa plausível, que o nome veio em função de uma promessa para não morrer de parto, a simbologia dele não é arbitrária (como não é a do próprio nome de Senhora e o do Comandante). Dôra é, talvez, o que Senhora considera uma “pedra no seu sapato”, já que, em nenhum momento, demonstra amor pela filha.

A dor física

Além do sofrimento que atingia a alma, Dôra experimentou, também, a dor física. Tinha problemas com a vesícula:

Uns dias depois o dor veio de novo com febre e vômitos. E aí fui ao médico nas Aroeiras ... o meu mal era vesícula, algum resto da inflamação do ano passado... (p. 51)

Em função das crises, tanto buscou alívio nas gotas prescritas de Atroveran, que até o remédio foi perdendo e efeito no seu organismo:

[...] engoli o cálice com dois dedos de água e as trinta gotas do remédio, me deitei, esperei, mas não tive o alívio que esperava, fiquei rolando na cama com aquela pontinha do lado, pensando se Laurindo não tinha razão e eu já estava era mesmo viciada e o remédio perdendo o efeito. (p. 52)

Mas não foi a dor física que mais perseguiu Dôra, foram as dores da vida, as marcas de suas irrealizações ou de suas perdas.

As dores da vida

No início do romance, quando se dispõe a narrar a sua história, como lemos há pouco, Dôra já introduz a dor como algo natural à vida: “doer dói que a vida é toda um doer”. Teçamos o trajeto das situações mais difíceis, das quais se originaram todos os seus padecimentos:

• A perda do filho

Dôra tinha um desejo inconfessável de ter um filho. Chegou a engravidar de Laurindo, mas a fruto não vingou. Esse assunto é poucas vezes referido, como se ela nunca estivesse pronta para falar:

Mais de uma vez eu disse que se tivesse uma filha punha nela o nome de Alegria. Mas não tive a filha. [...] Afinal, nem filha nem filho __ um que veio foi achado morto; me dormiram, me cortaram, me tiraram, estava morto lá dentro, ninguém o viu. Mas isso eu falo depois, numa hora em que doer e menos ou não doer tanto. (p. 9)

Como se comprova, o nome que ela escolheria para a sua filha tem uma significação oposta à do seu, como se ela não desejasse nunca para seus filhos a frieza da relação que mantinha com Senhora; nem o sofrimento que a acompanhou a partir do nascimento, quando lhe atribuíram, como de forma premonitória, o nome de Maria das Dores.

A renúncia à maternidade, embora apareça de forma sublimada, deixa entrever um sutil lamento:

Dor se gasta. E raiva também, e até ódio. Aliás se gasta a alegria... Filha, filho, falar franco, eu raramente me lembro do filho perdido. Mas tenho inveja das outras com seus filhos, netos e genros. (p. 9)

Ela sabe que o tempo é o maior aliado para arrefecer os males. Mas, por mais que se resigne, a dor de não ter sido mãe fica clara.

• O desprezo da mãe

Dôra perdeu o pai ainda criança e Senhora nunca lhe demonstrou nenhum carinho. Menina, ainda, era cuidada pelas empregadas da casa, sequer teve uma ama só para si, como as outras meninas também filhas de fazendeiros. Era levada ao Colégio por Antônio Amador, o vaqueiro da fazenda e, freqüentemente se sentia como uma estranha na própria casa, tal o descaso da mãe com as suas opiniões ou vontades. O amor materno inexistia, provavelmente desde o doloroso parto, o que, de certa forma, foge à norma de um amor que é tido “quase” sempre como irrestrito. Badinter (1980, p. 15) diz que a tendência natural é achar que “a maternidade e o amor que a acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. [...] Toda exceção à norma será necessariamente analisada em termos de exceções patológicas”, mas que a maternidade, por si, não é condição para a incondicionalidade do amor, já que a mulher, antes de mulher e mãe, é um ser como qualquer outro, com qualidades, defeitos e limitações.

As atitudes de Senhora, de fato, não se adequam a uma situação familiar normal; excedem à norma do amor materno incondicional preconizado na própria natureza feminina. Ela demonstrava atitudes propositais, para machucar a filha, como se não se importasse com a mágoa que pudesse causá-la. Quando Dôra teve o aborto, Laurindo vendeu um gado (de propriedade dela) para cobrir as despesas. Só depois ela veio a descobrir que a sua melhor vaca de leite havia sido adquirida pela mãe:

Tinham vendido três reses solteiras, sim, mas a quarta era a minha melhor vaca de leite... por nome Garapu. /.../ E o engraçado era que o comprador do lote todo – quer seria? __ era Senhora mesma. Os bichos de abate revendeu ao magarefe, mas a Garupu ficou no curral da Fazenda, sua.[...] E eu fiquei sentida, fiquei danada, sei lá. Me doeu... (p. 50)

Depois, o relacionamento da mãe com o seu marido extravia toda possibilidade de convivência e a fere de modo irreversível. Mais uma vez a mãe atravessa o caminho da filha como uma rival. Badinter (1980, p. 22) nos adverte que “vemos sempre como uma aberração, ou um escândalo a mãe que não ama seu filho”. Mas acrescenta que o amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento humano, é incerto, frágil e imperfeito. Neste caso, Senhora é tão vítima da situação quanto Dôra, já que ambas são humanas e imperfeitas, o que, de nenhum modo, atenua o conflito gerado pela situação.

É tão forte a certeza de Dôra quanto à frieza da mãe, que ela preferiu a distância absoluta à convivência, o que a fez, cada vez mais, aniquilar qualquer sentimento filial. Quando recebe a notícia da morte de Senhora, ela se mostra indiferente e quase aliviada. Observemos:

Pois a mesma Senhora, que eu pensei que ia carregar comigo pelos séculos e séculos, nem precisou morrer para ir passando. [...] Quando veio a notícia da morte de verdade quase dei um suspiro aliviada. (p. 11)

A ausência do amor da mãe foi uma das marcas mais profundas da vida da personagem. Sobretudo porque ela concebia a figura de mãe como raiz, matriz de sua existência, como o é normalmente. Essa concepção sobre o amor materno aparece esporadicamente durante a narrativa, sempre que ela se refere a algum sentimento em que não se impõem condições. Quando fala do asqueroso tira de nome Bigode, diz que, mesmo ele sendo mau-caráter, a mãe deveria amá-lo porque “mãe é mãe”. No momento em que se refere ao seu amor pelo Comandante, consciente de que ele é um contraventor, ela arremata, como para justificar a sua total aceitação dos defeitos dele: “amor de mãe não é assim?”

No caso, não foi esse tipo de amor o que Dôra recebeu da mãe, aliás, ela nem recebeu amor. Senhora foi uma mãe indiferente, ou, mais que isso, uma mãe que não demonstrava sentimentos pela filha, a não ser de mágoa ou de despeito velado. Entretanto, Badinter (1980, pp.15-6), como temos mostrado, não toma essa ausência do amor materno como uma anormalidade, embora seja essa a tendência das opiniões; ela afirma que “o amor, no reino humano, não é uma norma. Nele intervêm numerosos fatores que não a respeitam e que o inconsciente da mulher predomina amplamente sobre os seus processos hormonais.” Assim, Senhora, no território da psicologia, não se constitui o protótipo da mãe desnaturada, é uma mulher insegura que se afirma pela arrogância e pela negação de toda ameaça aos seus frágeis alicerces. Seja como for, ela se torna a razão da maioria das dores da filha, já que o amor materno não se afigurou, em nenhum momento, inscrito em sua natureza, como ocorre na maioria dos casos.

• A traição

O casamento com Laurindo, aos 22 anos, foi, para Dôra, um meio de afirmação perante Senhora e representava uma forma de mostrar que era capaz de ser vista, amada, como nunca fora, como a mãe jamais acreditou que a filha seria:

Era a primeira vez que uma coisa para mim vinha de graça, sem que eu lutasse por ela, pois tudo partia dele: ele que me procurava com a mão e com os olhos. [...] Ele que me dava as sua promessas e a sua pessoa. (p.28)

Como sempre se sentira sem graça: “eu mesma não tinha grandes esperanças de me casar, [...] namorado nunca achei” (p.21); e sentia-se só, como uma hóspede em sua casa, sem pai, sem avô nem avó, sem tio nem madrinha, Laurindo significava a possibilidade de ter alguém só seu:

Imagine se eu ia dividir a menor parte, quer do namoro, quer de Laurindo com Senhora ou com ninguém! (p.28)

Ela se irritava às vezes com os paparicos das mulheres da casa com Laurindo, sobretudo com os cochichos de Senhora com ele. No fundo, ela preferia não perceber o que se passava à sua frente:

Eu confesso que [...] achava que podia levar tudo do meu gosto, viesse Xavinha com as suas histórias, sentisse Laurindo me escorregar pelos dedos sem que eu tivesse como prender a criatura. [...] E assim ia notando mas não me alarmava – ou não me alarmava muito. [...] E as distâncias que Laurindo ia tomando de mim eu, inocente, achava que devia ser “coisa de homem”. (p. 44)

Como tinha a convicção de que “casamento era para sempre”, Dôra não se abalava com a frieza do marido nem com a sua própria. Ia consentindo essas atitudes como comuns à rotina de qualquer relação.

A certeza da traição, entretanto, acontece. Em uma noite em que Dôra, com dores na vesícula, recusa Laurindo e diz ter tomado um remédio para dor, que logo a faria dormir, ela acorda com o tropel do jumento de Delmiro e vai abrir a porta para receber as dádivas que ele gentilmente lhe traz. É quando ouve vozes no quarto da mãe e se certifica da dupla traição:

[...] quando de repente se ouviu um som abafado, um som de voz no quarto defronte – que era o quarto de Senhora, pegado à sala. [...] E escutei a fala dela: – Vá embora! E depois a voz de Laurindo protestando: – Ela tomou o remédio, não tem jeito de acordar.

Delmiro não sei se escutou tão bem como eu, mas vi que entendeu. E eu, saí correndo pelo terreiro, descalça e de pijama, no pavor de que os dois me descobrissem. Do lado de lá dos quartos do paiol, cai sentada num monte de tijolo e rompi num choro fundo que era mais um soluço fundo – eu tremia com o corpo todo e me vinha aquele engulho violento. Eles dois, eles dois. (p. 53)

Após a descoberta, Dôra fica dois dias de cama, sem querer falar com ninguém. Laurindo, sem nada saber, viaja a trabalho e retorna, depois de três dias, quando ela, indiferente, delega à mãe os cuidados com o cansaço e a alimentação dele. Passa a recusá-lo na cama, mas desconfia de que ele procure “outros consolos” dentro de sua casa e esconde a cabeça no travesseiro para não ouvir nada, numa atitude resignada e, ao mesmo tempo, humilhante.
Quando Laurindo é encontrado morto, e ela fica lado a lado com a mãe a contemplar o cadáver, percebe claramente os sentimentos dela por ele:

Nós ficamos as duas ajoelhadas, de um lado e do outro do corpo; nem eu nem ela chorávamos; mas respirávamos com força, como se a nós duas faltasse o ar, como dois que brigam parando para um momento de descanso. [...] E Senhora não tirava dele os seus olhos, mas também não o tocava – segurava a própria garganta com as duas mãos. Como sufocando um grito. (p. 57)

Com a morte do marido e a lembrança da traição que confirmava a total impossibilidade de permanecer morando com a mãe, Dôra resolve ir embora da fazenda, já que a ferida aberta não é capaz de fechar. Ela revela que tirou o luto, na impossibilidade de tirar a própria pele, arrancar os cabelos. A relação com a mãe chega ao mais extremo silêncio, que a partir da despedida (que nem houve) se torna definitivo.

Não marcaram os três anos, dois meses e dezessete dias de seu casamento, nem a perda do marido; a sua marca mais profunda foi a atitude da mãe, em fazer-se também mulher do genro, como para mostrar que ela, Dôra, não tinha nada de exclusivamente seu: o pai morrera sem que ela pudesse guardar sequer uma recordação de carinho; a mãe não lhe tinha afeto; o marido que lhe coubera nunca fora de fato seu, dividia-o com a própria mãe. Foi tão forte o impacto da certeza dessa traição, que seus estilhaços continuaram em Dôra como se seu corpo permanecesse em carne viva:

Queria não pensar em nada, nada daquilo passado, nunca mais. Doía ainda, como doía de noite! Eu chegava quase a meter os pés da cama e sair gritando – doía, mas tinha que sarar. (p.83)

Ela mesma confessa que, embora depois de todo o ocorrido Laurindo só mereça o esquecimento e a petulância, não foi sempre assim; ela nutriu sentimentos por ele e se sentia atraída, embora logo admita que tudo foi possível porque ela não teve chance de encontrar alguém com quem pudesse pelo menos compará-lo.

Essa revelação nos mostra que, à época da dupla infidelidade, ela gostava dele, ou vivia essa ilusão. Só o verdadeiro amor, o amor do Comandante, a fez ouvir “o nome de Laurindo como um nome de uma história contada por outra pessoa.”(p.11)
Quanto à Senhora, nem a morte fez estancar sua mágoa. Quando o Comandante a repreende pela insensibilidade diante da notícia da morte da mãe, ela confabula que não quer jamais falar a verdade de sua relação com a mãe ao Comandante, não quer abrir a ferida já fechada. Só o tempo e a dor maior, a perda de seu grande amor, pôde transformar a sua mágoa em indiferença:

Senhora. Passo às vezes um mês, mês e meio – e sem ninguém falar nela passo muitos meses, ah, passaria até anos sem me lembrar de Senhora. Mas teve um tempo em que ela me doía e me feria e ardia como uma canivetada aberta. (p.10)

• A falta do pai

O pai sempre foi, para Dôra, a significação do amor filial que ela não encontrava na mãe. Ele morreu quando ela ainda era criança, não lhe deu tempo nem para guardar na memória alguma recordação. Há um desejo incontido de reconstruir a imagem dele.
Na discussão sobre a escolha do seu nome, Dôra expõe a sua curiosidade em saber como o pai a chamava. Senhora não se manifesta. É Xavinha quem fala.

– Seu pai levantava você nos braços, bem alto, e lhe chamava Doralina – “Doralina minha flor:” – Lhe fazia cócegas, você dobrava a risada, era tão pequenininha que ainda estaria dizendo “angu”, “angu”. (pp.19-20)

A falta do pai doía tanto em Dôra quanto o desinteresse da mãe quando ela manifestava a vontade de saber algo sobre ele. Quando Laurindo resolve passar a dormir de rede e Dôra o acomoda no quarto ao lado, Senhora leva para compor a mobília, um cabide de pé que fora do marido e solta, sem querer, que ele era tal e qual, adorava dormir de rede.
Ouvindo a despretensiosa declaração da mãe, Dôra fica ressentida: se nstra ressentida:

O que mais me doía era que os casos e as lembranças de meu pai eu só apanhava assim atirados aos retalhos, que eu ia remendando, sempre com cada fa1ha enorme entre um e outro; por muito que eu pedisse e rogasse quando pequena, me sentasse aos pés dela no chão, suplicando “me conta coisas de meu pai”, Senhora se recusava e o mais que concedia era assim: “Seu pai era um homem muito bom, mas morreu muito moço e me deixou com uma carga por demais pesada nas costas. Não tem nada que contar, a vida de to do mundo é igual”. Crescendo foi que aprendi a ficar de orelhas arrebitadas, pronta para apanhar e esconder comigo, como quem furta, algum pequeno sucedido, recordação, palavra dele, a cor dos olhos, um ar de riso, o número do sapato... (p. 45)

Como não conseguia saber detalhes sobre o pai, Dôra procurava meios de se aproximar do seu passado, através do que era possível resgatar:

[...] de dia gostava de me fechar na alcova, sozinha e pensar no meu pai, ali, como ele era no seu retrato da sala, com o bigode retorcido, a gravata grande com um alfinete de coral rodeado de brilhantes miúdos. (p. 13)

É também outro motivo de mágoa quando Senhora dá esse alfinete a Laurindo, sem importar-se com o fato de ser sua filha a maior interessada na posse da jóia e, neste caso, a pessoa mais apropriada para dar o presente ao marido. Dôra toma essa atitude como um acinte, uma provocação.

Talvez Senhora se recusasse a dividir as lembranças do marido por ciúme. Ele, pelo pouco que se sabe, tinha um grande apego à filha e isso a desafiava, sobretudo porque Dôra era o avesso do que ela era: não tinha a sua beleza, não se curvava às suas vontades, mas havia sido muito amada pelo pai, a quem mal conhecera, mas por quem nutria amor, o amor que nem dava à mãe, nem dela recebia.

• A dor da separação

A dor mais forte, a última e definitiva, fez com que Dôra visse o seu círculo se fechar. A morte do Comandante, o seu grande amor, leva-a a escolher a única forma possível de continuar viva: a opção pela solidão, o rompimento com o mundo que foi partilhado com ele. O Rio de Janeiro passa a ser um lugar símbolo do abandono, já que em nenhum momento ela vivera lá sem a presença dele ao seu lado. Ela decide voltar para a fazenda Soledade como uma forma de reencontrar-se já que a sobrevivência era uma fatalidade, não uma escolha.

No primeiro momento, ela pensou que fosse morrer, dilacerada pela certeza de que aquele homem forte, bonito, idealizado como um deus não existia mais. Depois, entregou-se à inevitabilidade da vida e seguiu seu percurso por puro instinto:

A gente não se enterra em cova de ninguém. Fiquei por ai, dormindo sozinha, comendo sozinha, andando à toa pelo meio dos outros, boiando na corrente como uma casca seca. (p. 235)

A falta dele a habitava e invadia sua alma até atingir a própria carne. Ela sabia que não havia remédio, nenhum recurso possível para aliviar a dor.

Vivia ainda tão cheia dele e ainda tão no espanto da falta dele que a dor daquela falta me roia constante como quem tem fome. [...] eu tinha era que procurar alguns momentos de pensamento livre, tirar a dor dele de cima de mim, tomar aspirina, passar linimento, pra não ter que sair gritando... (p. 237)

Dôra sabia que doeria para sempre, porque a ausência era um fato consumado, definitivo, fora das suas forças:

Nada que eu fizesse, nada nem chorar, nem me rasgar, nem ficar louca e bater com a cabeça na parede, nem cortar as veias – nada era capaz de provocar reação nenhuma nem provocar qualquer resposta, a mais distante. [...] O mais que eu fizesse – se eu fosse dona do mundo não adiantava; se eu fosse o papa não adiantava. Não tem mágica nem milagre nem poder que adiantasse. (p. 238)

Como a personagem mesmo revela, nada era capaz de consolá-la ou pelo menos suavizar o seu desencanto. A saída do Rio de Janeiro e a volta à fazenda foram as únicas decisões capazes de atenuar o peso da ausência dele. Ela deriva para o trabalho, para a possibilidade de reconstruir a Soledade e, através do renascimento de todas as coisas, ela própria redescobrir-se. Assim, o pasto extinto era replantado, os velhos iam morrendo e os novos assumiam seu lugar: o filho de Antônio Amador era o novo vaqueiro; nascia o bezerrinho, neto de sua vaca Garapu. Com Senhora morta, ela era senhora de sua vida, de suas decisões, de sua terra, de suas lembranças, de sua dores, sobretudo.

Nada, entretanto, estancava seu sofrimento; atenuava-o o trabalho, a obstinação em continuar sua história já que ela não estava sob seu arbítrio, mas nas horas em que se via só, com as suas recordações e a certeza da impossibilidade de recuperar o amor perdido para sempre, voltava a doer a ferida que ela guardava em carne viva.

Dormindo, acordada, rolando na cama. [...] Dormindo, acordada, sonhando. [...] E revivia, e relatava e relembrava, naquela horas sozinha eu não podia abafar. (p. 239)

A dor personificou-se nela, adquiriu a imagem dela, se apoderou de sua carne e de sua alma, criou forma, mas não a destruiu. Coexistiram.

Considerações finais

Como vimos, Dôra é uma personagem marcada pala dor. Perde o pai muito criança e é criada pela mãe – uma mulher dominadora, seca, que em vez do amor maternal lhe oferece a indiferença. Elas não se amam, mal se suportam numa competitividade pouco natural. Dôra talvez desejasse ter a força da mãe; ela a admira, acha-a robusta, rosada, enquanto ela sente “um fiapo de gente” e tem, em casa, a posição de uma hóspede. Do outro lado, Senhora, quem sabe, desejasse a juventude da filha; não queria dividir com ela sequer as recordações do marido. Firmava-se numa postura de superioridade como se Dôra, por ser a mais nova e igualmente dona da fazenda, ameaçasse a sua posição.

Laurindo escolheu Dôra para casar-se pela idade e, principalmente, como diziam as más línguas de Aroeiras, porque, escolhendo Senhora, ele teria direito apenas a um pedaço daquela terra. Mas era Senhora, imediatamente, a dona do poder e, por isso, ele precisava ter as duas. Senhora aceitava, porque lhe era cômodo; tinha o seu homem, que era o homem da sua filha, com quem sempre parecia competir, mas permanecia com a sua liberdade e não perdia a proteção do título de viúva. Mas Dôra sabia que merecia mais do que aquele amor de conveniência; casou-se com ele por falta de opção, para mostrar à mãe que existia quem a desejasse. O casamento, entretanto, foi uma decepção; sequer o filho que geraram chegou a nascer.

Mas é a decepção que dá impulso para que Dôra lute e consiga a sua liberdade. A Companhia de Teatro foi o passo seguro para a sua independência. Ela passa a saber o que quer e, sobretudo, o que não quer. Deseja um amor e não qualquer um, como o daqueles homens que se aventura a conhecer. Sabe conviver com o espírito malandro de Seu Brandini, sem que isso a incomode; torna-se atriz, enfrentando as adversidades da profissão, e não perde a sua essência de mulher correta, com princípios bem definidos, embora não queira se ater a nenhum questionamento a respeito do certo e do errado. A fase da Companhia é de liberdade e aprendizagem. O passado permanece como uma pontada bem do lado, que ela vai driblando sem anestesia.

Com o Comandante, Dôra abre mão da independência conquistada em nome do amor. A moça que enfrentava a altivez de Senhora e que não se submetia aos desmandos do primeiro marido, renuncia à profissão que confessadamente lhe agradava e se entrega de corpo e alma a um homem machista, contraventor, com vícios e ímpetos de violência. Ela cala, mas o seu silêncio é expressivo, conveniente. Nesse homem tão cheio de defeitos, ela encontrou o amor e a pessoa amada é o Deus terreno de todo ser humano. Ele lhe deu o amor que o pai não pode dar e que fez tanta falta, o mesmo amor que a mãe e o primeiro marido lhe negaram. Dôra jogou tudo para o alto, porque todo o resto ficava minúsculo diante da sensação de amar com loucura e ser correspondida. Ela não se despersonalizou, porque soube pesar bem os seus desejos e, se cedeu, foi porque foi forte. Os fracos (ou as falsas fortalezas) não são capazes. Se ela se tornou submissa e passiva, foi conscientemente Deveria conhecer as suas necessidades e carências como mulher e fêmea.

Com a perda definitiva desse amor, uma metade foi extraviada. Mas ela não foi destruída; doeu tanto que ficou dormente. A sua chance de se reedificar é no reencontro de suas raízes, é assumindo o lugar que Senhora lhe tirou, enquanto viva. Reconstruindo a fazenda, ela toma posse do condado de sua mãe e passa a ter a posição que outrora, inconscientemente, ambicionou. Só, mas com a certeza de ter-se dado a chance de conhecer a vida e o amor verdadeiro. Ela é a própria personificação da dor, porque a conheceu na carne; sobretudo porque viveu e, como dizia o Comandante, “a vida é toda um doer”.

Dôra á uma personagem complexa, na classificação de Forster (apud CÂNDIDO, 1976), diríamos esférica, já que tem dinamicidade e apresenta diversas qualidades e tendências. O leitor não pode prever que Dôra, a filha de Senhora, tenha coragem de virar atriz e sair pelo país numa trupe mambembe, recebendo presentes de admiradores e até se dispondo a conhecer a garçonnière de um deles; nem que ela vá se ligar a um homem como o Comandante, numa entrega total. Ela diz sim, somente quando quer. É a amiga fiel de Seu Brandini e de Estrela, mas fez questão de ser uma pedra no caminho de Senhora e soube dizer não a Laurindo, quando ele a queria na cama e ela não o desejava. Foi a moça recatada da Soledade, mas foi também a amante fogosa do Comandante sem que sequer fizesse questão de oficializar o casamento. E Dôra é convincente, tanto no riso quanto nas lágrimas.

Rachel de Queiroz atingiu, com a criação de Dôra, a plenitude da personagem feminina iniciada em Conceição (protagonista de O Quinze) e finalizada em Maria Moura (protagonista do Memorial de Maria Moura), como afirmou Lourdinha L. Barbosa (1999). Suas personagens são tão fortes, tão frágeis, tão “humanas” como todas as grandes mulheres do mundo.

Referências bibliográficas

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BARBOSA, Maria de Lourdes Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: Caminhos e descaminhos. São Paulo: Pontes, 1999.
BRAIT, Beth. A personagem. 4a. ed. São Paulo: Ática, 1990.
CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de ficção. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. São Paulo: Ática, 1990.
OVÍDIO. A arte de amar. Porto Alegre: L&PM Editores, 2002
LUCÁCKS, Georg. “Narrar ou Descrever?”. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
QUEIROZ, Rachel de. Dôra, Doralina. 18a. ed. São Paulo: Siciliano, 1992