domingo, 24 de abril de 2011

Os ritos poéticos de Regine Limaverde



Regine Limaverde é poeta de muitas estradas, muitos percursos, alguns desvios. Sim, desvios, porque a prosa também a seduz. E a seduz também o ensaio científico. Mas a poesia é que é seu caminho mais largo para todos os portos e estações, e nela cabem todas as veredas e desvios que a vida prepara.

A poeta, movida integralmente pelos quatro elementos – água, terra, fogo e ar –, construiu sua poética amorosa com raízes bem fincadas e certezas; é mulher-mãe-avó-amiga apaixonada, rendida e, declaradamente, ‘mais coração do que carne e osso’. Essa mesma mulher de raízes presas a terra articula voos por territórios diversos, feito pássaro; vira vulcão e navega mares, mas sempre aporta no cais, pois seu estro é o amor vivido, compartilhado, amor com carnação, beijo e abraço. É pássaro que voa, mas sempre pousa; navio que embarca, mas retorna ao ancoradouro.
Sua poética, mesmo quando evoca saudade, jamais lacrimeja ou tende à escuridão. É de sol e de lua, de luz sempre, sua palavra. Em “Estrela”, o eu lírico diz:

Às vezes a modéstia
e a escuridão
são formas de me vestir.
Se sou noite
é porque assim o quer
minha vida.
Se tenho estrelas?
Ninguém as vê.
Mas sei.
Sou um sol
quando quero.

(“Estrela” p. 49).

Ritos do entardecer, seu livro publicado em 2007, traz no título a conotação de crepúsculo, não no sentido de assinalar a ‘escuridão’ do fechamento de um ciclo temporal, mas tão-somente no de marcar a maturidade existencial da autora e a da sua criação, sua liberdade cada vez mais assumida de não se prender a estéticas ou tendências que possam rotular sua escritura ou sua forma de ser.

Sua pena corre leve e fagueira, comprometida apenas com o fluir das emoções. Foi nesse esteio que ela dividiu os 50 poemas que compõem o volume de versos de que falamos: Ritos do amor; Ritos da vida; Ritos da saudade; Ritos da amizade e Poemas ecológicos. Sem quebra da unidade, ela celebrou o amor em várias vertentes: o amor da fêmea, da mulher, o amor-presença, amor-ausência, amor-saudade, mas sempre o amor, sem travos, sem ranços, sem derramamentos. O amor só lhe é celebração. E nele está largamente a natureza, evocada nos Poemas ecológicos, sedimentando o compromisso da cidadã com seu habitat, mas, sobretudo, garantindo o espaço de coabitação da bióloga e da poeta, suas faces simultâneas.

O amor-erótico, bem mais presente em outras obras suas, reaparece atenuado, mas vívido ainda, em poemas como “Se eu fosse um homem”: “Se eu fosse um homem / beijaria minha mulher / cada vez que a minha lança / nela se escondesse, / para lhe contar da explosão / quando tudo acontecesse.” (p.21); “Permissão”:“ Deixa que teus dedos percorram / minhas terras e reconheçam / o que ainda de belo tenho em / mim: meus rios, cascatas” (p.39); “Constância”: “Meu macho é terra arada / tem o que quero num homem. / Se toca as minhas entranhas, / tristezas e dores somem” (p. 56); e “Momento” (p.64):

Este calor que perturba
meu corpo.
Este coração que já
não aguenta pulsar.
Este rio que jorra
em minhas pernas.
Este desejo de
estar em ti.
Este desejo de sentir-me
em ti.


São chamas e lampejos da fêmea movida pela paixão, que “é vulcão / que explode e vomita / fogo pelas ventas, pelas / mãos e pelo olhar". (“A paixão” p.60).

Formas de amor – luxúria, belo volume ilustrado com fotografias de Zélia Ramos Madeira, retoma o erotismo como leitmotiv mesmo da criação, amalgamando palavras e imagens. As frutas fotografadas, bem como flores, caules , folha, areia e estrela do mar, aparecem em ângulos sugestivos de partes do corpo, apelando, com a cor e a textura que seduzem o olhar, para a exacerbação dos sentidos e o prazer estético da contemplação.

Todos os poemas cantam o toque na pele, o amor carnal, a conjunção dos corpos, em metáforas que condizem com a natureza imagisticamente representada: "subirei colinas / colherei teus frutos // Serei verde, vale, vida"...(p.20); "Sinto-me terra arada (p.22); Que me venhas / primavera colorida /.../cheirando a flores e a vida (p.24); Que eu toda me desabroche / flor pétalas".(p.52). Somam-se figuras recorrentes em sua poética amorosa, como o sol, o húmus, a relva, a concha e o mar, criando uma atmosfera sensual, que remete à Eva no paraíso: “Tenho uma serpente dentro de mim. / Ela me tenta / me faz pecar / me dá prazer, / me mostra caminhos.// Sinto-me Eva no paraíso / nua e gostando...” (p.44). Flor e serpente, em harmonia, celebram o corpo e o prazer, na leveza ou na fúria do amor.


A preocupação com o tempo é também recorrente em sua obra. Em Ritos, ela assinala a irreversibilidade da vida:

Essa coisa que não
volta: visguenta,
brilhante, brilhosa

Esse tempo que se foi,
esse riso que já fui,
essa estrada que pisei

(“O limo do tempo” p. 63)

e demonstra lucidez na consciência do que existe e lhe pertence, mas questiona ‘até quando’ poderá ter o que está, no momento presente, em suas mãos:

Já sei que existe uma canção que
devo perseguir.
Não sei se ainda me resta tempo
para sussurrá-la.

(“Canção do entardecer” p.23).

São elucubrações da maturidade existencial de um ser consciente do seu ‘estar no mundo’. No livro Mais coração do que carne e osso, há vários registros de inquietações acerca da fugacidade do tempo e de todas as coisas, como se pode ler nos versos:

Apressa-te.
Não deixes para amanhã
o que hoje podes fazer.

Vê-me.
Já fui manhã primaveril.
Margaridas tagarelas
salpicavam minhas terras.
O tempo é breve
e parte sem volta.

(Apressa-te” p.21)

O que há amanhã não sei.
A incerteza
é o certo
neste longo deserto
que é a vida.
Nossa desdita
começa ao nascermos.

(“Incerteza” p. 33)

O tempo é meu inimigo.
Ele me excita, me apunhala,
zomba de mim, me faz escrava.
Vinca minha face de rugas,
me faz ser lenta e pequenininha
como gotas de chuva neblinando.

(“Solidão” p. 57)

Já fui segunda-feira
hoje sou domingo.

(“Tempo inimigo” p. 46)

apenas fazendo aqui uma amostragem da recorrência temática.

O que predomina em todas as suas obras, entretanto, é a temática amorosa, como falamos, em todas as instâncias. O movimento afetuoso da fêmea e da mulher-amiga, de que já falamos, é também o da poeta em busca de seu objeto-mor: a palavra. Suas reflexões acerca do ato criador mostram sua consciência da lavra do objeto que dá forma aos seus pensamentos.

Ora o eu poético lembra as evocações de Cecília Meireles no Romance LIII ou Das palavras aéreas, de seu Romanceiro da Inconfidência:

Ai, palavras, ai, palavras,
Que estranha potência a vossa!
Ai, palavras, ai, palavras,
Sois de vento, ides no vento,
No vento que não retorna,
E, em tão rápida existência,
Tudo se forma e transforma!


ora expõe o processo da criação. Vejamos alguns excertos de versos de Regine:

A palavra – faca de dois gumes,
desassossega, alivia.
Pode ser fraca, matar.
Pode ser remédio, curar.

A palavra sai e é punhal e alívio.

Na busca da palavra me perco,
me encontro, me enervo, me
embalo

(“A palavra” p.50)

Foi uma só palavra
e tudo virou tufão.

Uma palavra só
E flores foram arrancadas

(“Palavras”, p. 59)

A palavra: verdade, mentira,
esperança, decepção.
Ela existe e está deitada no papel.

(“Você é a palavra” p. 62)

Em “A natimorta” (p. 66), mais se evidencia a luta travada entre as palavras e as ideias:

Um papel em branco
e a inutilidade
da palavra.
Ela não vem,
ela não chega.
O sentimento é maior que
a idéia.
A idéia
é maior
que o gesto.
O gesto não existe
A palavra morreu sem ter nascido


bem como a frustração diante da folha em branco, do poema que não se fez verbo. Numa perquirição que é desejo de criação, Regine dialoga com Manuel Bandeira ao solicitar de si mesma versos que correspondam à sua vontade de ‘vestir’ com palavras os seus sentimentos:

Um poema que mostrasse
a beleza da lágrima
nos olhos de um bebê.

Um poema que cantasse
o vento que roça de leve
teu corpo amado.

Um poema que gritasse
ao mundo meu amor
por ti.

Um poema que me fizesse
eterna no teu
pensamento.

(“Um poema” p.53).

Leiamos os versos de Manuel Bandeira, em “O último poema”, para comprovar a intertextualidade:

Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


Tal recurso também se evidencia nos versos de “O tamanho do amor” (p.22), quando o eu poético, na tentativa de mensurar o sentimento, divaga na sua incomensurabilidade:

O amor cabe
numa mão.
O amor cabe
num grito.
O amor cabe
numa palavra.
O amor é o céu
e cabe no infinito.

Leiamos os versos de Carlos Drummond de Andrade:


O amor é grande e cabe nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.


Ao final, o leitor não tem dúvida: é o amor o que produz versos, é o amor a razão de tudo. Sem o rito da celebração dele, não há poesia. Nas relações dialógicas, na evocação de saúde para a natureza, no lamento pela passagem fugaz do tempo, no adeus aos amigos que partiram, na celebração das amizades, da saudade ou do homem amado, é o amor a razão primeira e última da criação poética de Regine Limaverde. Sua poesia sintética e substantiva é incisiva: ‘a negação do delírio é a negação da vida’. Sem amor, sem delírio, sem vulcões e explosões, sem mar para navegar, sem cais para retornar, não é possível reinventar a vida nem mover-se. Não é possível criar poesia.