quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Memória e infância nos romances de Milton Hatoum







Milton Hatoum é uma das maiores expressões da literatura brasileira contemporânea. Autor de 3 romances – Relato de um certo oriente (1990), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) –, de uma novela – Órfãos do Eldorado (2008); de um livro de contos – A cidade ilhada (2009) e um de crônicas – Um solitário à espreita (2013) – ele se afirma no cenário das letras com uma obra essencialmente memorialista. Seu universo ficcional tem como microcosmo a cidade de Manaus, um lugar subjetivo, de chegadas e partidas, nunca de permanência, a não ser como espaço de memória, de apego ao que foi e não mais pode ser, mas fica para sempre.

De acordo com Antônio Candido (2002), toda obra literária é construída a partir da memória, da observação ou da imaginação. Nas obras de Milton Hatoum, especificamente, todas as tramas se constroem essencialmente a partir da memória. Seus personagens são seres completos, pois, além do presente, têm sempre um passado recuperado no relato, seja pelas próprias lembranças, seja pelas reminiscências de um narrador onisciente que o evoca as suas recordações. Sylvia Telarolli (2007) assegura que “o autor associa no percurso das personagens a  abordagem de traços definidos por sua feição individual, mas também forjados por características que brotam  da vivência coletiva, seja do universo manauara, seja  das origens vinculadas ao universo cultural do imigrante árabe”.

Trata-se, pois de uma memória coletiva, sobre a qual disserta Halbwachs (1925, apud STOETZEL, 1976, p. 133-134): “Os homens, que vivem em sociedade, usam palavras, cujo sentido compreendem: é a condição do pensamento coletivo. Ora, cada palavra (compreendida) se faz acompanhar de lembranças; e não há lembranças a que não pudéssemos fazer corresponder palavras. Nós falamos nossas lembranças antes de evocá-las; é a linguagem, e é todo o sistema das convenções sociais com ela solidário, que nos permite, a cada instante, reconstruir o nosso passado”. 

Por meio dessa estratégia, os personagens de Hatoum são moldados em sua busca pela identidade. Mostraremos, neste artigo, como a memória perpassa as narrativas do autor e como a recuperação da infância, por meio dela, justifica o comportamento desajustado dos seus personagens na fase adulta em dois dos seus romances: Dois irmãos e Cinzas do Norte .     



Memória e infância nas obras

Em Relato de um certo Oriente, a narradora, uma mulher que, após 20 anos distante, volta de Paris à terra natal para reconstruir suas origens e buscar sua identidade,   faz um relato (de 8 capítulos) em forma de carta ao irmão, tecendo o universo dos imigrantes de origem árabe, conflitos interiores, encontros e desencontros. Ela chega a Manaus na véspera da morte de sua mãe adotiva, Emilie, e esse fato ajuda a tecer seu caminho de volta ao passado, com o resgate das memórias do filho mais velho de Emilie, Emir, o único que conserva a cultura árabe, e vive isolado da família; de Dorner, fotógrafo alemão e grande amigo da família; e da amiga de Emilie, Hindié Conceição. São muitas as vozes que compõem essa narrativa e recuperam as histórias que se cruzam, entrelaçam-se e terminam por se completar.

Dois irmãos é também uma narrativa em primeira pessoa, dessa vez, feita por um personagem secundário, Nael, filho da empregada de uma casa de descendentes árabes. Em busca de sua origem, ele investiga sua paternidade ao contar a história da família de Halim, Zana, Yaqub, Omar e Rânia, expondo a rivalidade entre os irmãos gêmeos, bem como as relações conflituosas pautadas por rejeição e insinuações de incesto. 

Em Órfãos do Eldorado, há a combinação de história e mito, ficção e fábula, lenda e verdade. A narração é feita por Arminto Cordovil que, velho e sozinho, às margens do rio Amazonas, relata a um viajante a trajetória de sua própria vida, que começa marcada pela morte da mãe. Recriminado pelo pai e único herdeiro de uma família rica, ele é criado por Florita, que o aproxima dos índios, seus vizinhos. Desde criança, ele escuta as histórias fantásticas daquele povo e se desvincula da sua própria família.
Ele se apaixona por Dinaura, uma menina criada pelas freiras carmelitas, cuja história guarda um segredo. 

Já o enredo de Cinzas do norte se passa entre os primeiros anos do Golpe Militar de 1964 até a abertura democrática dos anos 1980.  Transcorre na capital amazonense, com passagens pelo Rio de Janeiro e Londres, e não traz nenhuma digressão acerca de descendências árabes. É também um relato memorialístico em três vozes – a de Lavo, o narrador da maior parte do texto; a de Ranulfo, que intercala seus relatos aos escritos do sobrinho e, por fim, uma carta de Mundo revelando seu segredo já nos momentos finais de sua vida. 

A história contrapõe duas famílias, uma rica e a outra pobre. Delineia-se, nesse painel, um arsenal de personagens completos e incompletos em suas formas ficcionais: Mundo, ou Raimundo, sonha ser artista plástico, é apaixonado por desenho desde pequeno e não faz conta de educação formal. Ele vive em conflito com Jano, seu pai, um ricaço português, amigo dos militares, que não aceita que o filho troque os negócios da família pela arte. Ranulfo é o típico boêmio que não se submete a patrão, vive a paixão clandestina com Alícia, mãe de Mundo, que trocou o namorado pobre pelo dinheiro e pelo status de Jano. Ramira é costureira, vive em desavença com o irmão e ajuda a criar o sobrinho a partir da morte dos pais dele num naufrágio. Arana é o artista oportunista; e Lavo, o amigo pobre, mas sensato, forma-se advogado e vive uma vida acomodada, sem ambições.

A cidade ilhada é uma coletânea de 18 contos, a maioria deles com enredo ambientado em Manaus, cidade visitada por estrangeiros e sempre revisitada pelos nativos que vêm e vão. Manaus aparece não como espaço concreto de uma região, mas como ponto de partida e chegada, na verdade um microcosmo do universo em que se movimentam os personagens dos contos; seres enraizados, mas permanentemente em trânsito (SAMPAIO, 2013) no espaço e no tempo. Rio de Janeiro, Paris, Palo Alto, Berkeley, Barcelona, Bombaim e a capital amazonense são cenários móveis, transitórios como as vidas que neles circulam em torno de uma busca ou para resgatar lembranças. Todos estão à procura de algo que reconstitua ou justifique sua própria existência.

Um solitário à espreita, uma coletânea de crônicas dividida em quatro blocos, traz textos anteriormente publicados em jornais e revistas, sobre assuntos variados: a realidade, a linguagem, a literatura, os afetos, a política, sempre prevalecendo o enfoque memorialístico. Muitas foram reescritas, mas permanece a visão de mundo do autor, seu tom por vezes melancólico e pessimista, porém leve e enxuto.

A raiz dos conflitos

    Em todas as obras do autor, como dissemos, está presente o conflito da busca da identidade e o do resgate da essência que se dá na reconstrução do passado pela memória, esse fio cujo mecanismo tem um papel crucial na vida do ser humano. Nos romances Dois irmãos e Cinzas do Norte, a raiz do conflito está na infância, no seu transcurso problemático pela vivência de perdas, rejeições e interditos.
Em Dois irmãos, os gêmeos Yaqub e Omar têm, desde crianças, tratamento diferenciado da mãe, que não disfarça sua proteção pelo Caçula, o último a sair da sua barriga. Na fase adulta, os irmãos desenvolvem personalidades distintas e se tornam inimigos, qual Caim e Abel na história bíblica. Foram crianças criadas de modo diferente, experimentaram vivências culturais diversas, haja vista o período vivido pelo menino Yaqub no Líbano, terra dos seus pais, e os traumas daí advindos.
Como falamos no ensaio Dois irmãos: incesto, rejeição e rivalidade na relação familiar (SAMPAIO, 2007, p. 100), a história da família de Dois Irmãos intertextualiza, inicialmente, a de duas famílias bíblicas: a de Adão e Eva e a de Isaac e Rebeca, ambas extraídas do Gênesis, livro primeiro da Bíblia Sagrada. A primeira história de rivalidade entre irmãos se dá com Caim e Abel; depois com Esaú e Jacó. Zana parece a recriação de Rebeca que, ao privilegiar o filho Jacó, em detrimento do outro filho, Esaú, faze-os inimigos irreconciliáveis. Quando Zana escolhe mandar Yakub para o Líbano e fica com Omar, só acentua a rivalidade entre os dois.
Hatoum faz sua narrativa entrecruzar-se em diversos diálogos intertextuais homo e heteroautorais, passeando pelo mítico ao retomar as histórias bíblicas, (em Dois irmãos), e o mito de Eldorado, (em Órfãos do Eldorado), o que, de acordo com Maria Emília Martins da Silva (2011, p.40), conota uma “tentativa de recobrança do sujeito contemporâneo de sua unidade perdida, que é a origem da sociedade do espetáculo, segundo o teórico Guy Debord”.
Em Cinzas do Norte, os mitos se reatraem. A narrativa da Lavo se entrecruza com cartas, um recurso estratégico de recuperação da memória. No relato, o personagem Raimundo (Mundo) vive em desarmonia com o pai, que não aceita seu comportamento avesso aos seus valores burgueses, tampouco seus pendores artísticos, e tenta moldá-lo à sua semelhança, o que gera a impossibilidade de convivência e culmina na destruição de ambos.
Em Dois irmãos e Cinzas do Norte, pois, os personagens guardam as solidões da infância que, de acordo com Bachelard (2000), permitirão ao sonhador adulto viver suas próprias solidões. De fato, os protagonistas aparecem já na fase adulta, com seus temperamentos em choque, no cerne de desajustes familiares insolúveis, permitindo que o leitor, por meio dos relatos, reconstrua a trajetória deles e busque a criança que foram para compreender o adulto em que se transformaram. Desse modo, ele conhece o menino que fez o homem e que subjaz no discurso do narrador.  Onde reside a fronteira entre o homem e o menino é um dos desafios lançados, afinal, como afirma Heidegger (apud Homi Bahbha, 1998, p.19), “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas, como os gregos reconheceram, a fronteira é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É a rememoração o fio condutor dos enredos dos romances de Milton Hatoum; é por ela que se engendra a criação. Em entrevista a Luiz Henrique Gurgel, o próprio escritor (2008, p.2-4) diz: "Não há literatura sem memória. A pátria de todo escritor é a infância. Acho que o momento da infância e da juventude é privilegiado para quem quer escrever. É onde a memória sedimenta coisas importantes: as grandes felicidades, os traumas, as alegrias e também as decepções. Certamente não estou falando da lembrança pontual e nítida. O que interessa é a memória desfalcada, a memória não lembrada. Isso é bom para a literatura porque aí é que se instala o espaço da invenção."
A construção da memória nos dois romances - Dois irmãos e Cinzas do Norte - se dá pelos mecanismos de  resgate dela: lembrança, esquecimento tempo e espaço, na remontagem do passado, permitindo que o leitor observe e possa usufruir dessa transição temporal entre o menino e o homem maduro.
Assim, é por meio da palavra reconstrutora do passado, que se percebe a desunião e a rivalidade entre os gêmeos de Dois irmãos com origem na infância; o comportamento deles, bem como a personalidade, têm a ver como o modo como foram criados e com os lugares em que viveram. O personagem central de Cinzas do Norte, Raimundo (ou Mundo, como é chamado), desde bem menino sente a incompatibilidade de valores entre ele o pai, o que vai propiciar uma relação tirânica, baseada em desentendimentos e agressões mútuas. Mesmo a mudança do espaço opressor e a morte do pai não o libertam do ódio que passa a alimentar a sua vida.
Em ambos os casos, tais crianças se tonaram adultos infelizes, vingativos e socialmente desajustados.




 REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. Poética do devaneio. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
______ . Poética do espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
HATOUM, Milton. Cinzas do Norte. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
HATOUM, Milton. A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009.
HATOUM, Milton. “Não há literatura sem memória”. [Entrevista concedida a Luiz Henrique Gurgel]. Na ponta do Lápis. Ano IV, n. 8. AGWM Editora e Produções editoriais, p. 2-4, Junho/2008, p. 4. Disponível em: http://www.elfikurten.com.br/2013/05/milton-hatoum-o-arquiteto-da-memoria.html Acesso em 10/01/2014

HALBWACHS, Maurice. Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo: Vértice, 1990.         
SAMPAIO, Aíla Maria Leite. Dois irmãos: incesto, rejeição e rivalidade na relação familiar In: Revista de Humanidades, v.22, nº 2, Fortaleza: Unifor, 2007, p. 98-102.
SAMPAIO, Aíla Maria Leite. Personagens em trânsito, espaços subjetivos e intertextos em “A cidade ilhada”, de Milton Hatoum In: Revista de Humanidades, v.28, nº 1, Fortaleza: Unifor, 2013, p. 33-44.
SILVA, Maria Emília Martins da. Do mítico ao imagético: a espetacularização em Órfãos do Eldorado, de Milton Hatoum In: Revista Kalíope. nº 14. São Paulo, 2011, p.40-51.
 OBRAS DO AUTOR
HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
______ . Dois irmãos. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
______ . Órfãos do Eldorado. São Paulo: Cia das Letras, 2005.
______ . Cinzas do Norte. São Paulo: Cia das Letras, 2008.
______ . A cidade ilhada. São Paulo: Cia das Letras, 2009.

 Aíla Sampaio