quinta-feira, 23 de junho de 2011

O livro de Marta e seus bilhetes de amor




Quem é Marta? A mulher de maiô, ou a cinéfila que nunca perde uma sessão das 18:30, uma musa delirante ou apenas um pretexto para escrever alguns bilhetes. Sim, Marta não tem carne, é palavra, grito, vocativo.

Rodrigo Marques escreveu o Livro de Marta, subintitulou-o de Bilhetes de amor quebrado, e deixou o leitor na expectativa de algumas páginas confessionais. Mas não. Marta é um pretexto pra falar de tédio e de amor; de um trote ou de uma blitz; de uma sessão de cinema ou de uma ida à papelaria; são poemas de desejo, de semáforos, piercing e shoppings. O rigor formal existe, é, aliás, bem evidente, e é igual para tratar dos assuntos.

Entre versos livres e sonetos, o poeta constrói um estilo próprio, sem intenções de vangauardear, mas tão somente tirar a poesia do marasmo. Nada de mais; nada de menos. Ruy Vasconcelos fala de um traço arcaizante na obra. Sim, o poeta prefere bilhetes a e-mails e exercita o soneto. Visita Camões num intertexto surpreendente; lembra Mar portuguez, de Fernando Pessoa, em seu “Mar rústico”; provoca Marta, sonegando-lhes os versos que Pablo Neruda fez a Matilhe Urutia, sua amada:

Não és Matilde
Não és o mar
Nenhum dos cem sonetos de amor fez-se para ti
sequer uma barcarrola pousou no céu...
(p.23).

O poeta cita Dante Milano e Ribeiro Couto, mas não parece beber nas fontes deles. Não é tradicional, mas não parece fazer, de propósito, tentativa de inovar. Tansfigura naturalmente a linguagem; sem ironia com as formas fixas, também sem apologia a elas, Rodrigo tem a consciência exata de suas pretensões:

meu mar é muito pouco
para quem sabe nadar
no entanto é meu;
comprei-o na loja ao lado da tabacaria,
completo:
sem cais e por rimar.
(p.22).

Não é poeta por acaso ou circunstância. É poeta de construção e consciência, que traduz a concisão em nova fórmula poética: os bilhetes. Leiamos mais dois deles:

À contra-mão de mim,
O ônibus passa,

E se atrás,
Viaja o corpo de Marta,

E se ainda, nesse corpo,
Viaja encarnado uma parte minha
Uma perna, um braço, uma mão,

Escuto,

Longe,

A cidade estacionar-se

(LINHA, p.38)

Para que fazer unhas no salão mais caro
Se arranhas em mim os pesares,
As tardes, as frases,
Se deixas em mim um cheiro falso de esmalte?
(FAZENDO UNHAS NO SALÃO MAIS CARO, p. 29)

A poesia está em efervescência, não sucumbiu ao descaso do mercado editorial. Distintas experiências estéticas em livros, variadas propostas e os mesmos objetivos: partilhar olhares transfiguradores do mundo, mergulhos no visível e no invisível, catarse e confirmação da existência. Num momento plural, de eliminação de fronteiras entre popular e erudito, sobrepõe-se o ecletismo e a desnecessidade de rótulos. Rodrigo sabe disso.

A poesia em Concerto




O poeta Alves Aquino, encarnado no personagem Meia-Tigela, lançou, em 2010, o livro Concerto nº1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema, cujo subtítulo, “Combinação de realidades puramente imaginadas” traduz o movimento dialético que compõe sua criação, conjugando tradição e modernidade, realidade e imaginação. É, como a Bíblia, dividido em livros, mais precisamente, em 4, cada um com 4 subdivisões. Os números assumem importâncias e simbologias que, certamente, se explicarão ao final do seu projeto.

O nome do autor abre espaço para que o leitor se perceba num território estranho, mas a alcunha que se supõe pejorativa vai, aos poucos, ganhando outras significações. Está-se diante de algo diferente, não há dúvida quando se começa a folhear o volume. A respeito da previsível interpretação de poeta de meia-tigela como um poeta de pouco valor, ou de produção insuficiente, os editores da Revista Mamífero, oportunamente esclareceram

“[...] o pseudônimo 'Poeta de Meia-Tigela' não é uma autodeterioração ou subvalorização do que [ele]escreve. Sua origem tem 'um cunho social' com o qual se identifica, visto que o termo representa 'a metade da ração oferecida ao serviçal, enquanto seu senhor ganhava a tigela inteira'. Outra razão do pseudônimo é criar um personagem que seja o próprio autor e personagem de si mesmo, como o João Grilo ou Cancão de Fogo. Enfim, o uso do epíteto não é um distintivo de humildade; ao contrário, traz o Poeta um projeto ambicioso de encarnar um múltiplo personagem, criando uma bandeira dupla, uma apresentação automática para a sua obra, expressando algo inusitado. Para ele, essa é a origem que interessa, já que implica numa adesão ideológica e emocional". ("Um Poeta de Meia-Tigela", Revista Para Mamíferos N. 01, Fortaleza, 2009 - editores: Glauco Sobreira, Jesus Irajacy, Nerilson Moreira, Pedro Salgueiro, Raymundo Netto e Tércia Montenegro).

Lembrei-me outra vez de Fernando Pessoa que, no poema “Tabacaria”, diz: “Quando quis tirar a máscara, estava pregada à cara”. Personagem e pessoa se fundem, amalgamados numa poética movimentada, a que ele mesmo chama de Concerto. A obra em apreço - Concerto nº1nico em mim maior para palavra e orquestra. Poema - é parte de uma composição quartenária. Quatro movimentos, pois, comporão a totalidade do projeto de composição do Concerto e a cada um deles é, previamente, “atribuído um elemento, bem como uma função psíquica, no intuito de estabelecer – dentro da totalidade, uma personalização e individuação dos seus momentos constitutivos”, como explica o próprio autor no final do livro.

Contemplamos, no volume citado, o 1º Movimento - Quarto Minguante (1/4), cujo elemento é terra, e cuja função psíquica é o pensamento. As outras 3 virão, posteriormente, quem sabe em formato idêntico, para compor o Concerto completo: 2º movimento, fogo e sensação; 3° movimento, ar e sentimento; 4º movimento, água e intuição.

Essa ordenação, esses liames tão arquitetados, demonstra um trabalho consciente, mais que isso, uma proposta de Obra Ampla. A miscelânea de formas, em versos livres ou metrificados, o que varia de acordo com o conteúdo, obriga o leitor a ativar-se e a interagir com os textos. A ordem é estabelecida, mas logo se foge dela. Assim, em ritmo sempre inusitado, os textos se sucedem, revisitando o clássico e as mais variadas vanguardas, sem, entretanto, moldar-se a qualquer delas. Do Concretismo, se absorve a palavra-coisa, o aproveitamento do branco da página; da poesia-práxis, o movimento, a ação imposta à palavra; do poema-processo, a desnecessidade da palavra, o poema-imagem... mas é inútil ao leitor a criação de expectativa em relação ao que virá depois.

A pluralidade de estilos conjuga-se ao diálogo perene entre as artes, de modo que a música que compõe todo o concerto está em consonância com as imagens, os poemas e a teatralização. O poeta narra, disserta, compõe versos, fazendo dialogarem Homero, Dante, Goethe, John Mílton, Dostoiévski, ora com sinceridade, ora com ironia, brincando com as palavras ou levando-as bem a sério, articulando um estilo pessoal, embora bebido de muitas fontes.

Concerto não é, pois, uma viagem, um lance intuitivo, mera aventura com a palavra e suas possibilidades. É um projeto de composição ambicioso, com trabalho de linguagem e articulação entre o clássico e o popular; a brincadeira e a verdade. Palavras e cálculos matemáticos, lirismo e antilirismo, construção e desconstrução fazem a caleidoscópica poética de Meia-Tigela, sem dúvida, sangue novo para tirar da inércia a fina veia da poesia brasileira contemporânea.

Dois poemas do Concerto:

Sim! Déspota deposto, adeus ao trono,
Adeus ao cetro, adeus poder benquisto!
Fui Outro e a contragosto virei isto,
Este, só, sem padrinho, sem patrono.

Pior: eu e Abadon neste abandono.
Ao redor o reinado carcomido
De antigo rei, também ele podrido.
Ato nenhum de amor em seu abono.

Nada tem quem de tudo já foi dono.
Se não cai, encanece meu cabelo.
No velho espelho — um velho — e horror é vê-lo.
Que de melhor me ocorre é sentir sono.

Parabéns para mim: completo um cron. O
próprio Tempo, ao ver-me, se estarrece:
“Que me ultrapassa em séculos, quem esse?”.
Nada-perene, sou não ser. Outono.

(Extraído do "CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA E ORQUESTRA", 1º Movimento, Livro 1, Seção 1)

Que dizer há muito,
Mas dizer sem boca.
A garganta é rouca
Para tal assunto.

Assunto, coitado,
Que fica onde está.
Nenhum verso dá
Conta do recado.

Recado sisudo
Que morre na toca.
A palavra é pouca,
Não toca o profundo.


(Extraído do "CONCERTO Nº 1NICO EM MIM MAIOR PARA PALAVRA E ORQUESTRA", 4º Movimento, Livro 1, Seção A)

Aíla Sampaio

70 poemas para orvalhar o outono




O livro comemorativo dos 70 anos do poeta Barros Pinho traz 70 poemas selecionados de oito livros de sua autoria, e uma fortuna crítica respeitável acerca de sua produção literária: Linhares Filho e Ubiratan Aguiar apresentam a obra na qual estão, também, inseridos artigos assinados por Pedro Paulo Montenegro, Antonio Carlos Vilaça, José Alcides Pinto, Francisco Carvalho, Adriano Espínola, F. S. Nascimento, Pedro Lyra, Sânzio de Azevedo, Caio Porfírio Carneiro, Artur Eduardo Benevides, Antonio Girão Barroso, entre outros críticos que se debruçaram sobre a sua criação.

A beleza do volume se coaduna com a preciosa seleção de poemas, representativos, pois, de toda a sua poética, que tem como linhas condutoras duas figuras essenciais: o menino e o rio. Ainda que ele diga

setenta anos
muito tempo
para ser menino
não se agita mais
a água da infância
a vida só o papel
timbrado na sombra
onde se escreve o ontem
em páginas brancas
na face da espera
(p. 29),

faz rediviva sua infância a cada verso, renascendo ‘no papel’, entre linhas e entrelinhas, pois que, homem feito de linguagem, não sabe ser senão reinventando-se pela palavra.

O menino perdido no tempo cronológico aparece cada vez mais vivo no tempo da memória:

a infância corre
na correnteza do rio

o sonho não sabe
o rumo dessas águas
seria o mar
ou o mar seria apenas
uma solução geográfica

sabe-se
que só nós meninos
o rio se encanta
até voar como pássaro

nasce em mim o desejo de escrever

o rio inteiro a correr
sobre o papel da palavra
sintaxe de sol
antes dos olhos
se abastecerem de fadiga
(p.52).

A travessia do rio é a travessia da vida que se rende a soluções geográficas apenas, racionais, desprovida de sonhos. Na alma do poeta, entretanto, ‘se pode voar como pássaro’, na possibilidade de vencer a correnteza do tempo e recuperá-la, ainda que encantatoriamente, na poesia.

Esse rio que atravessa a escritura do poeta é um rio atávico, cuja localização espacial – a Parnaíba – funciona como eixo, tronco de sua árvore genealógica. O homem que por razões diversas deixa sua terra de origem vive em duplo exílio: o físico e o psicológico, pois que, longe de sua taba, não encontra seu verdadeiro rosto senão no olhar para trás e no permanente saudosismo que o afaga:

meu avô morreu
na chapada da distância

procurando a lua de olhos
vivos no rio o rio mais
longe de sua vontade

as mãos sem carne
os pés sem perfume
a rastejar fantasmas

na superfície das pedras
o engenho abrigo do tempo
moendo moendo seus ossos
(p.64).

As reminiscências, cavadas pela saudade, pelo acúmulo e pela intensidade, tornaram-se mais constantes na estação do outono, com que o poeta metaforiza sua entrada nas 70 décadas de existência, mas a saudade ancestral (que o acomete) está nele desde sempre:

guardo há muito tempo
na gaveta da vida
uma solidão disfarçada
um triste acanhado
pelos cantos dos olhos no calendário
(p.83).

Sua poética presentifica ausências. No outono, a palavra desgoverna-se para romper os silêncios e orvalhar-se em confissão: há saudade, há solidão, há ‘vontade de dizer / o que não se diz pela metade’ (p.83). E o poeta diz dos seus naufrágios, das celebrações, diz, sobretudo, do seu cansaço de tantas ausências:

carrego madrugada
no canto dos olhos

nos meus ombros
depositaram noites
que não querem ser dia

nos cabelos guardo
a ilusão ou o sonho
dos que sonharam

nas mãos trago
pedaços de sol
só para distribuir

n’alma a ausência
cansada de bater
nos dique da vida
(p.127).

Mas não é de tristeza a poesia de Barros Pinho. Tampouco é meramente confessional. Não há lágrimas, mas celebração:

recordo
a adolescência
nas árvores
de minha cidade”
(p. 160).

Sua saudade da terra é a saudade de todo exilado (não apenas de corpo, mas de coração) e as dores de que ele fala são dores sem nacionalidade definida.

O rio foi o começo de tudo, foi o espasmo ante o icognoscível. Depois veio o amor com suas estradas impossíveis de não percorrer:

o rio encheu os olhos
do menino
só de espanto
a menina
encheu-lhe a vida
de paralelas”
(p.130).

Assim o menino se fez homem, sendo universal ao cantar sua aldeia (Tolstói) ou, qual Caeiro/Pessoa, cantando seu rio: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. Tal qual diz o poeta em seu outono:

“não conhecia
o mar
o rio de minha
cidade era meu oceano”
(p.153).

Hoje, depois de tanta estrada e poesia, depois de tantas travessias de rios e mares, continua menino o homem que reconfigura o Natal; continua menino o poeta que orvalha seu outono com poesia...com certeza, continua a procurar São Jorge nas luas de suas e de tantas outras terras. Seus sonhos não se evaporaram, tampouco as folhas caídas que ele cata e recupera a cada verso que escreve...


A poesia harpa da manhã
Acende o orvalho a orvalhar
O lírio do pássaro
No lírico segredo do outono

(“Orvalho para orvalhar o outono”, p. 29-30)

Parabéns ao poeta que sabe o segredo não apenas do outono, mas de todas as estações da poesia!

Aíla Sampaio