quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro

TRAPIÁ (de origem tupy tarapi’á)s.f. catauari, catauré – Árvore pequena da família das caparidácias, de propriedades medicinais, cujas folhas têm pérolas lanceoladas e cujo fruto é uma baga globosa com sementes de testa dura e lenhosa. (Em Pedra Branca-Ce, há um açude com esse nome e em Pernambuco há uma cidade com o nome Vila Trapiá)

O AUTOR:

Caio Porfírio Carneiro nasceu em Fortaleza-Ce, a 07 de junho de 1928, onde trabalhou como jornalista e bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Ao lado de Moreira Campos, Eduardo Campos e Fran Martins, expoentes do Grupo Clã, Caio Porfírio é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará, como assinala Nilto Maciel. Mudou-se para São Paulo em 1955, onde trabalhou, inicialmente, na imobiliária de um irmão e foi redator de programas da Rádio Piratininga. Durante anos, trabalhou na Editora Clube do Livro Ltda. Em 1963, assumiu a função de secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBESP). Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do PEN CLUBE-SP, da Academia Paulistana da História, da Academia de Letras do Brasil (Brasília), da Unión Cultural Americana (Buenos Aires) e sócio correspondente da Academia Cearense de Letras. É colaborador de vários suplementos do País, com ficção e crítica literária. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e o árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias. Embora seja também romancista, poeta, novelista e crítico literário, foi no conto que ele se afirmou o como um dos mais importantes representantes do gênero na literatura brasileira contemporânea. Está vivo e em plena atividade.

Suas obras se caracterizam pela síntese, pela sutileza e pela sobriedade da linguagem. Caio Porfírio exercitou vários gêneros literários, transitando pelo regional, pelo urbano, e pelo enigmático. Na forma dos contos, vai rompendo, nas obras seguintes, a estrutura tradicional vista em Trapiá e ousando com enredos não-lineares, fragmentados; intercalação de foco narrativo e outros procedimentos de vanguarda, como, inclusive, a incorporação de técnicas de outros textos, como os do teatro e das orações religiosas.

Contos:
Trapiá (1961);
Os Meninos e o Agreste (1969);
O Casarão (1975),
Chuva - Os Dez Cavaleiros (1977),
O Contra-Espelho (1981)
Dez contos escolhidos (1983)
Viagem sem Volta (1985),
Os Dedos e os Dados (1989),
A Partida e a Chegada (contos e narrativas)(1995)
Maiores e Menores (2003)
Romances:
O Sal da Terra (1965)
Uma Luz no Sertão (romance-reportagem) (1973/2007)
Novelas
Bala de Rifle (novela policial)(1965),
Três Caminhos (1988)
Dias sem Sol (1988)
A Oportunidade (1986).
Ensaios:
Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira)
A vocação nacional da UBE – 62 anos (Histórico da UBE desde a sua fundação) (2004)
Literatura juvenil:
Profissão: esperança (1986)
Quando o Sertão Virou Mar...,(1986)
Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra (1987)
Cajueiro Sem Sombra (1997)
Poesia
Rastro Impreciso (1988)
Reminiscências (memorialismo)
Primeira Peregrinação (1994)
Contagem progressiva (1988)
Mesa de Bar (1997)
Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o 3º milênio) (2002)
Miscelênea (literária)
Gramíneas (2006)

O Estilo do autor: Quase todos os livros de contos de Caio apresentam características de romance. Em Trapiá, , por exemplo, todas as histórias têm como cenário a pequena cidade de Trapiá e os vilarejos e sítios bem próximos, personagens reaparecem, revezando-se a cada conto, dando a impressão de que todos se conhecem. Nesse, como em outros livros seus,.os enredos são construídos com uma linguagem sintética e precisa; os personagens têm voz e certa densidade, pois observam, constatam, agem e, muitas vezes surpreendem. Cyro de Matos observa que o estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana, forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um a pensar sobre a complexidade do mistério da existência”. De fato, o narrador, sempre em 3ª pessoa nos contos de Trapiá, contam acontecimentos da vida seres sofridos, mas esperançosos, valentes, resistentes aos sofrimentos das secas ou das enchentes, das humilhações ou da solidão, da pobreza material, das perdas.
Ainda de acordo com Matos, “nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções para sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência”. Embora apareçam os coronéis, os barqueiros, o pai ignorante e honesto, o empregado matreiro, não há estereótipos marcados. Também não falta a dimensão humana desses seres de papel que vivem sem muita escolha. Com estilo próprio, Porfírio recorta ‘momentos’ para desenvolver suas histórias e, muitas vezes, dá ao leitor a chance de terminá-las com sua imaginação. Os diálogos são enxutos, bem contextualidados, sempre fiéis ao nível de linguagem dos personagens.

A OBRA:


TRAPIÁ é o primeiro livro de Caio Porfírio Carneiro, cearense de Fortaleza (07/06/1928), radicado em São Paulo desde 1955. É uma coletânea composta por 11 contos, todos regionalistas. O primeiro texto – “Como nasceu Trapiá” – não é um conto, mas uma explicação sobre o surgimento da cidade que será cenário das narrativas, todas histórias da “terra áspera, calcinada, de coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida”(Matos).
Tempo: Não há tempo psicológico em nenhuma narrativa, embora, em muitos contos não percebamos o tempo cronológico seqüenciando a narrativa. É Matos quem diz que isso decorre da técnica do contraponto. O narrador não descuida do leitor e expõe os fatos de modo que ele não se desinteresse pelas histórias relatadas, sempre mantendo os personagens em ação, mesmo dentro do drama que vivem. Em “Come gato”, um dos contos mais longos, com partes numeradas, como a dividir as cenas, percebe-se a simultaneidade das situações.

Espaço:.
O espaço da maioria dos contos é a cidade de Trapiá e seus arredores, que aparecem como cenário ou apenas nas referências dos personagens: Taimbé, Coité, Pitombeira, Serra do Machado, Brejo da Ema, Canta Galo, Fazendas Queimadas, Cerrado e Contendas, todos lugares imaginários, situados no sertão, na caatinga, todos terra calcinada. Ao narrador parece não importar muito retratar as paisagens e os ambientes, pois as descrições são mínimas. A repetida referência ao vento Aracati remete imediatamente o leitor atento ao Ceará. Aliás, a presença do vento é uma constante nos contos de Trapiá. O último do volume, como a confirmar, é intitulado justamente “Ventania”.

Estilo de época: Pós-modernismo - Na arte, os anos 60 marcam o momento da transição da vanguarda para a contemporaneidade. O atestado de óbito da Modernidade. Os procedimentos da arte passam dos polêmicos questionamentos dos suportes tradicionais ao fim do suporte como elemento essencial da obra de arte. É o momento da arte conceitual que vai dominar na década seguinte. Uma arte mais fria, cerebral, menos engajada, voltada para interrogar sua própria natureza. Uma manifestação que aconteceu em vários Países , quase ao mesmo tempo, inclusive no Brasil. Os artistas plásticos abandonam os museus, as galerias, saem da solidão dos ateliês e se misturam na multidão. É a poética do gesto, da ação, da coletividade, a utopia da arte / vida como participação do espectador na realização da obra de arte. No Brasil a Tropicália, de Hélio Oiticica, foi uma das manifestações mais polêmicas, ao lado de Terra em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a
Peça O Rei da Vela, de Osvald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez.

É a década dos Happenings, surgidos com a Pop arte, uma espécie de teatro instantâneo, uma mistura de artes visuais, música e dança, que convida o espectador a participar da obra ou da ação, uma forma de tirá-lo da passividade, fazendo-o reagir à provocação do artista e do cotidiano político social. Para Jean Jacques Lebel, autor de vários happenings em Paris: “Nosso primeiro objetivo é transformar em poesia a linguagem que a sociedade de regionalista que surgiram no Romantismo; a narrativa fantástica, que se configurou como gênero também no séc. XIX, o ultra-realismo, que nada mais é, do que o velho Naturalismo; as crônicas memorialistas que já existiam, mas não eram consideradas
literárias alcançaram esse status; as narrativas políticas e intimistas iniciadas no Modernismo intensificaram-se e, com a legitimação da pluralidade e a ficcionalização de variados gêneros, surgiu o romance-reportagem, trazendo a linguagem do jornalismo para a literatura num diálogo promissor.

Caio Porfírio não se restringiu a nenhuma tendência específica: exercitou o conto regionalista e o urbano, o romance-reportagem, a poesia, a novela, a crônica memorialista, enfim, diversos gêneros e tendências, com estilo próprio, sem ater-se a experimentalismos radicais ou reverenciar ‘revoltas artísticas’, embora, em suas obras seguinte à Trapiá, tenha utilizado técnicas diversas, inclusive de vanguardas.

Contexto histórico:
Trapiá surge no ano em que os soviéticos enviam Iuri Gagárin ao espaço. Independente desse marco, a década de 60 é marcada pela revolução comportamental, com o surgimento do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais. O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja Católica. Surgem movimentos de comportamento como os hippies, com seus protestos contrários à Guerra Fria, à Guerra do Vietnã e o racionalismo. Esse movimento foi também a chamado de contracultura. Ocorre Revolução Cubana na América Latina, levando Fidel Castro ao poder. Tem início também a descolonização da África e do Caribe, com a gradual independência das antigas colônias.

Foi um período marcado, pelo menos os 5 primeiros anos, por um sabor de inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais, e no âmbito da política é evidente o idealismo e o entusiasmo no espírito de luta do povo. Foi inaugurada Brasília, a nova capital do país, por Juscelino Kubitschek. Jânio Quadros sucede Juscelino e renuncia cerca de sete meses depois, sendo substituído pelo então vice-presidente João Goulart. De 1966 a 1968 (porque 1969 já apresenta o estado de espírito que definiria os anos 70), as coisas mudam: experiências com drogas, perda da inocência, revolução sexual e protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Sob o pretexto das tendências comunistas de Jango, ocorre o golpe militar de 1964, que depõe Goulart e institui uma ditadura militar. No final da década, tem início o período conhecido como "milagre econômico". Em 1969, integrantes da ALN e do MR-8 seqüestram o embaixador norte-americano Charles Elbrick, exigindo como resgate a libertação de 15 prisioneiros políticos. Após isso, diplomatas da Alemanha e do Japão também são seqüestrados no Brasil.

Na verdade, a segunda metade dos anos 50 já prenunciava os anos 60: a literatura beat de Jack Kerouac, o rock de garagem à margem dos grandes astros do rock (e que resultaria na surf music) e os movimentos de cinema e de teatro de vanguarda, inclusive no Brasil. A década de 1960 é marcada pela velocidade das vanguardas artísticas, que têm Nova Yorque como capital cultural do século XX. Dentre as manifestações artísticas como Minimalismo, Op Arte, Arte cinética, Novo Realismo e Tropicália, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida pelos norte americanos foi a vanguarda mais decisiva da década. Sem programa preestabelecido, sem manifesto, utilizando-se do repertório do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente transformada em tendência internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.

No Brasil estudantes em passeata enfrentam a repressão militar; em abril de 1968, a polícia mata o estudante secundarista Edson Luiz no Rio de Jane iro e em dezembro o golpe mortal do governo militar, o Ato Institucional Nº.5. O auge da repressão. Ninguém mais se sentia seguro. A arte foi proibida na rua, exposições fechadas, como a Bienal Nacional em Salvador e artistas presos ou vivendo na clandestinidade ou no exílio. Fecharam-se as cortinas e o espetáculo passou a ser encenado na obscuridade. Até hoje a arte brasileira vive o prejuízo desses anos de sansão e petrificação da cultura brasileira

Personagens:
Coronéis, arrieiros, viúvas, velhos solitários, mulheres que engravidam todos os anos, crianças, sobretudo meninos, com a infância maçada pela pobreza e pelo sofrimento; a maior parte, gente humilde do interior, que trabalha na terra áspera, em comboios, canoas.

Foco narrativo:
Todos os contos são narrados na 3ª pessoa verbal; têm, portanto, os fatos relatados por um narrador observador, que não tem total domínio dos acontecimentos. Note-se que, o tempo todo, intercalam-se os discursos diretos e indiretos, o que faz com que a ação dos personagens tenham bastante importância no desenvolvimento da trama, retirando ar possibilidade de onisciência narrativa.

Características da obra Trapiá:
Regionalismo: Nota-se, nos contos de Trapiá, um retorno de Porfírio à sua região nordestina que, nesta obra, é, certamente, fonte de inspiração para suas histórias. Ele, entretanto, ultrapassa essa dimensão do tão-somente regional e atinge o universal ao enredar suas verdades, tristezas e dores, da mesma forma que fez Guimarães Rosa. Algumas expressões típicas: “casa do sem jeito”, “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”,“canarana”, “mofumbó”, “varejão”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”(no sentido de pasto), “baticun”, “capionga”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” “bichinho”, “socar-se”, “rachar de peia”, “oitão”.
O uso da linguagem coloquial: recurso que dá verossimilhança à fala dos personagens e marca a simplicidade deles: tou, tar (estou, está); té logo, neu (em eu/em mim); Inhor sim (sim, senhor); desafasta, tu não anda; vosmecê; queu (que eu); cê, pegou ele; eu é Olavo. Como a coadunar perfeitamente forma e conteúdo, além da paisagem sertaneja e histórias de sua gente, os contos resgatam não apenas a fala coloquial e as expressões típicas, mas reproduz imagens através do léxico que nomeia objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), costumes (cavalo de talo de carnaúba, lava pés antes de deitar) e vegetação (cumaru, mata-pasto, pitombeira, oiticica, pega-pinto, cansansão, gerimataia), como num painel da cultura local.
Sutileza e sobriedade de linguagem - A utilização de termos e expressões típicas da região retratada na obra ocorre de maneira comedida; pois aparecem incorporados ao discurso dos personagens, bem contextualizados, não incorrendo, por isso, o contista, em exageros que tornem os textos cansativos.
Síntese – Conciso em suas colocações e econômico com as palavras, Porfírio mostra, já no primeiro livro, conhecimentos da técnica narrativa. Ele arma as histórias, como se armasse um bote e, ao enredar o leitor na fala dos personagens, nos movimentos e constatações deles, surpreende-o com finais inesperados, seja pela trivialidade ou pelo inusitado que causa surpresa ao leitor (então o coronel sabia de tudo em, “Milho empendoado”?). Essa sua capacidade de síntese e equilíbrio não tira a intensidade de seu discurso, nem deixa lacunas desnecessárias entre o leitor e a história que lê.

Intertextualidade homo-autoral: os contos dialogam um com o outro. Como se passam, todos, basicamente, na mesma localização – entre a cidade de Trapiá e circum-vizinhanças - os personagens se repetem, transitam em uma e outra história, como se compusesse, cada unidade,.o núcleo de um enredo maior. Como vivem na mesma região, os personagens se conhecem, transitam pelos mesmos espaços e, embora vivam histórias autônomas (para entender um conto não se precisa ter lido outro) têm-se a impressão de estar diante de um quase-romance, dada a unidade na diversidade de casos.
Vejamos alguns exemplos: no conto “O canoeiro”, quando ele narra o crime cometido pelo Pereira, no enredo de “A dívida”, confirmando, inclusive, os defeitos do Queiroz. É como se a ação dos dois contos fossem simultâneas. Já “Milho empendoado”, o Coronel Camilo fala sobre a visita que fará ao amigo Firmo, que perdeu a esposa Dona Amélia; na narrativa de “Macambira”, encontramos esse mesmo Seu Firmo, resistindo à seca, conservando seu patrimônio e vivendo sua solidão de viúvo; falando sobre a resistência à seca, um dos personagens faz menção ao Cel. Camilo e sua fazenda. O Coronel Aparício que manda o cabra Tacanha agredir Seu Leocádio em “Come Gato” é o mesmo do conto “Padrinho”, que nega ajuda ao empregado para socorrer a criança no meio da noite. Em “Ventania”, o velho Aristides dá notícia da morte do Lino da Serrrota ao amigo Sabino, o mesmo Cel. Lino que é levado na canoa por Chico, no conto “Canoeiro”.

TEMAS: solidariedade (“Mata-Pasto”,“Come Gato”); ignorância (“O Pato do Lilico”); astúcia e prepotência dos coronéis (“Milho Empendoado” e “O padrinho); a afeição (Velha Candoca em “Candeias”); solidão na velhice (“Ventania”) e ódio revertido em amor (“O Gavião”). A morte é uma constante, nos contos, por doença, afogamento, assassinato, mordida de cobra, mostrando a precariedade do homem diante da sua maior certeza. O tema é, na verdade, o ser humano em sua capacidade de amar e desamar, em sua solidão, sua dor, sua humildade e seu orgulho, num calidoscópio de sensações e sentimentos que compõe a diversidade humana.

ENREDOS -
Nas onze histórias de Trapiá, de acordo com Matos, percebem-se nuanças clássicas do “realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso”
Como nasceu Trapiá – Texto de abertura, escrito pelo próprio autor, contando a origem do vilarejo de Trapiá, antigamente apenas um descampado, com uma oiticica e um trapiá plantados, exatamente onde cruzavam os caminhos da “Vila Coité ao Serrote do Machado e da Fazenda Taimbé no rumo dos cafundós do sertão”. Retirantes da seca do Pernambuco, da seca de 77 construiram casebres nessa caatinga, onde foi morte e dependurado na oiticica o cangaceiro Nestor Amarício.

Milho empendoado
– Chico, empregado da casa do coronel Camilo, sem recursos para alimentar a mulher ‘de cria’ rouba galinhas do quintal do patrão para que a sogra faça as canjas de que ela necessita. A velha Rita, no diário ritual de jogar milho para as aves, reclama do marido, citando os inusitados nomes das sumiram (Pedrés, Capão, Indiano), dando pela falta de mais uma. O velho, entretanto, entretido com os problemas das terras, faz ouvido de mercador, até o dia em que designa Chico para cuidar do sumiço das galinhas, tendo a sutileza de desviar as desconfianças para o vizinho, Doroteu. No final, entretanto, surpreende o leitor ao revelar à mulher que “não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar suas aves”.

O pato de Lilico – Em um dos raros passeios à cidade, o menino Lilicoo se desliga do pai, enquanto ele faz a entrega da carga que fora levar, e vai à praça admirar as crianças que estão a brincar. Açoitado por elas, é socorrido por um rico senhor que, compadecido com dua humildade, leva-o a uma loja de brinquedos onde tem um boneco de Papai Noel, e o presenteia com um pato de brinquedo. Quando o menino retorna, o pai não acredita que o ele tenha recebido o brinquedo de presente e, em sua ignorância e estupidez, pensa revoltado que o menino havia roubado o objeto e toma-o do filho, que faz o longo trajeto até a sua casa o tempo todo chorando. A criança não consegue mostrar sua inocência, pois o pai não quer ouvi-lo. Já em casa, quer puni-lo com uma surra, mas a mãe o impede.Ele quebra o brinquedo e pisa com raiva, enquanto a mulher na cozinha diz para o filho se calar, e recomenda-o nunca mais repetir o erro, pois “Nosso Senhor o castigará”.

O Gavião – Um menino se revolta, porque um gavião rouba e devora seu canário de estimação, e insiste para que o pai o mate. Depois de várias tentativas frustradas, o menino passa a descobrir a astúcia e a beleza da ave e a admirá-la. Deseja, então, possuir uma, também para provar aos amigos sua coragem. Um dia, o pai mata a ave e o chama para vê-la abatida e, enfim, vingar a morte do canário. O menino fica imensamente ressentido, pois o seu ódio já havia se transformado em amor.

A dívida – Pereira, após brigar com Queiroz na feira da cidade e feri-lo com uma faca, foge com a mão ferida e procura abrigo na casa do amigo Gerardo, que fica fora da cidade. Gerardo o recebe surpreso, as vê-lo esfarrapado e sangrando, esbaforido da correria, ouve o seu relato e fica sabendo que o amigo, ao cobrar uma dívida do Queiroz que há meses lhe comprou uns bezerros, é agredido, xingado e reage tomando a faca do devedor e derrubando-o. Certo de que matou o homem, Pereira se angustia e pede ajuda. Gerardo vai à cidade apurar os fatos e pedir ajuda ao ‘doutor Soares’, de quem o criminoso é eleitor. Enquanto isso, o Pereira fica imaginando para onde será ‘degredado’ pelo político e passa a sonhar em enriquecer na Serra do Machado e voltar triunfante à cidade natal, com todos à sua volta fazendo reverência. Ao retornar da cidade, Gerado o avisa de que o Queiroz foi apenas ferido e que o ‘doutor Soares já o advertiu de que deverá pagar a dívida. Pereira, já envolvido com o sonho de viver e enriquecer na Serra, demonstra decepção.
Come gato – O narrador traça duas histórias paralelas: a do menino Olavo, que vive a constante humilhação de ser chamado de “Come Gato”, quando passa pela rua, e a do Seu Leocádio, que vive as contendas políticas com seu adversário, o Cel. Aparício. Seu Leocádio é o único que trata o pobre Olavo, que mora num quartinho nos fundos de uma oficina, com respeito, chamando-o pelo nome, e oferecendo-o comida. Sabendo que Seu Leocádio foi agredido dentro de sua própria casa pelo Tacanha, capataz do Cel. Aparício, Olavo vai à sua procura e o mata com uma faca, dizendo que “”Em coronel Leocádio ninguém encosta a mão”. Impune em seu heroísmo anônimo, Olavo retorna à cidade e tudo volta ao normal: Seu Leocádio está na calçada, paparicado pelos correligionários e contando a ‘vingança’, os meninos correndo atrás dele e chamando-o de Come gato e, finalmente ele sendo recebido pelo velho, que o oferece comida com a delicadeza de sempre. A história, intercalada em 8 blocos narrativos, parece ilustrar ações simultâneas. Ao mostrar a solidariedade do menino sujo com o velho que lhe é generoso, ultrapassa-se o realismo do menino miserável para torná-lo herói, ainda que anônimo.

Mata-Pasto–
Chico, empregado do Coronel Henrique, acostumado a capinar o mata-pasto e tirar as cobras, vive a maturar a idéia de um dia, à noite, entrar no quarto da velha Clotilde e furtar a lata que ela guarda cheia de dinheiro. “Dez anos trabalhando como burra sem mãe” e nada tinha. Um dia, aproveitando que o patrão deixara de cortar o pasto e podia se esconder, resolve agir: inventa para a mulher que vai visitar uma tia doente na cidade e fica de tocaia no meio do mata-pasto, acompanhando o movimento da casa, vê Cel Henrique chamar os netos para dormir, depois lavar os pés na bacia, derramar a água, escuta as ordens de Dona Clotildes para Lourdes e, enquanto calcula sua entrada na casa para roubar a lata com dinheiro e enterrá-la debaixo do pé de oiticica, sente uma picada no pé direito. Começa a delirar e desmaia, pois, na verdade, foi picado por uma cobra. Os outros empregados, de manhã cedo, encontram o corpo e levam-no para a casa do Coronel, que não entende o que Chico fazia ali naquela noite. Joana, a esposa, chega chorosa. Após alguns dias, por ironia do destino, Dona Clotilde manda um presente para a viúva: a lata com suas economias – trezentos mil réis – para ajudá-la a continuar a vida.

Macambira – O velho Firmo, viúvo de Dona Amélia, resiste à seca, tentando conservar seu patrimônio, sem ceder às ofertas de compra; recusa-se a ir morar com os filhos em São Paulo e vive com o olhar perdido no poente, conversando em silêncio, trocando o nome da empregada Raimunda pelo da esposa Falecida. Vive a examinar o tempo, do seu alpendre, falando com quem passa pela estrada e tomando conta do que é seu. Conserva seu gado com muitos gastos, e aprende a conviver com a solidão, alimentado pelas lembranças da casa cheia e esperando a chuva, suportando o casarão vazio e o vazio de sua vida, “porque um homem não se dobra... nem quando perde a mulher”

O padrinho – O miserável Chico, vendo a filha muito doente em uma rede, e a esposa grávida a pedir socorro e implorar-lhe para pedir ajuda ao patrão, vai, no meio da noite, bater na porta do Coronel Aparício. Aborrecido, o velho o atende e nega a ajuda, ordenando-lhe que deixe para quando o dia amanhecer. Compadecido com a situação da filha e da mulher, ele resiste à vontade de esperar o dia amanhecer e vai à cidade pedir um remédio ao farmacêutico, com quem já tem dívida. Após a cobrança, é atendido, mas, quando chega ao seu casebre, percebe a presença da vizinhança e fica sabendo que a filha morrera. Avisa ao patrão, padrinho da menina morta, esquecido da humilhação, mas ele mal escuta, apenas o dispensa do dia de trabalho. Dias depois, sua mulher dar luz à outra menina e ele, humildemente, volta ao Coronel Aparício para avisá-lo e convidá-lo, outra vez, para padrinho da criança.

Candeias – O afoito menino Rafael, em suas vadiagens pelo açude da cidade, acaba morrendo afogado e ficando preso nas raízes da Oiticica. Pedro e Zeca, numa canoa, com candeias na mão, tentam resgatar o corpo do menino, enquanto a mãe, o irmão e amigos, esperam o resultado da ação. Enquanto isso a Velha Candoca, com quem Rafael implicava mandando os companheiros sujar os panos do coradouro e chamando-a de “velha cachimbeira”, recorda a noite chuvosa em que o marido morreu afogado e sente dó do que aconteceu com o menino. Quando encontram o corpo menino morto, da sua calçada, acompanha o cortejo com o olhar, imaginando que “ na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, e se comove, enchendo os olhos de lágrimas, pois nunca mais ouviria a provocação: Velha cachimbeira!

O canoeiro -Outro personagem com nome Chico, dessa vez um canoeiro, vive a atravessar o rio para levar pessoas e mercadorias à cidade de Trapiá. No período da cheia, os outros canoeiros se recolhem e ele, herdeiro da ‘valentia’ do pai, aproveita para trabalhar mais e juntar dinheiro para comprar uma canoa maior. Aumenta bastante o preço da travessia, cobrando pelo perigo que enfrenta. Ele se recusa a baixar o preço, inclusive para uma senhora que quer atravessar com o neto para ver a filha que está muito doente. Numa madrugada chuvosa, procuram-no em casa para atravessar o rio com o corpo de um coronel morto e sua viúva. Seriam duas viagens, pois teria que voltar para atravessar outros parentes que iam assistir ao enterro. Quando descobre que estão sem dinheiro, recusa o serviço, mas é convencido a fazê-lo para receber o dinheiro depois. Comovido, ela acaba dispensando o pagamento à viúva e diz que fez por caridade, embora ela continue a prometem que mandará o filho recompensá-lo. Após a cheia, as pessoas se recusam a fazer o transporte com ele, relembrando como ele subiu os preços na época em que só havia a canoa dele para fazer o trajeto. Sem clientes, gastando o dinheiro que economizara, ele se surpreende como uma visita: o filho do Seu Lino (o morto). Mesmo em situação difícil, ele recusa-se a receber o pagamento, pois já empenhara a palavra, mas aceita que ele compre a canoa grande com que tanto sonhava, para pagá-lo aos poucos. Causa admiração em todos da vila, faz o transporte de graça durante um dia, mas, no outro, volta à ativa com seu temperamento irredutível, cobrando caro pelo serviço. Outra vez encontra a mulher e o neto, de volta para atravessar o rio, e, ao saber que a filha dela morrera, nada lhe cobra. Orgulhoso em sua canoa nova, diz a ela que era amigo do Seu Lino e recebe os pêsames dela.

Ventania – O velho Aristides, apegado à sua fazenda Cerrado, continuava a briga anscestral pela posse da manga, mantendo, por isso, a velha rixa com o vizinho. Irritado com uma notícia que recebe do vaqueiro Nena, não comunicada ao leitor, ele chama o compadre Sabino e entrega-lhe o gado. Deitado na sua rede no alpendre do casarão, administrava sua fazenda e não cedia sua terra ‘para o que pediam’. Ruminava seu apego ao Juazeiro, olhando a ventania e dizia que abria mão de tudo, menos daquela árvore: “O meu juazeiro ninguém derruba”. Numa manhã, a velha Tereza o encontro morto em sua rede. Os coronéis de outras fazendas (personagens de outros contos) vão ao enterro e toda a gente dos arredores fica conversando sobre os feitos do velho. Dias depois, a velha Tereza, sem suportar a solidão no casarão, vende as terras ao vizinho e vai embora para a cidade. O Juazeiro é, então, derrubado para as obras da manga, e os dois empregados que fazem o serviço – Zé de Góis e Mundoca – comentando o capricho que o velho Aristides tinha com aquela árvore, cavam a terra e encontram uma lata enferrujada. São interrompidos pelo chefe do serviço e guarda-na para abrir depois. O leitor não conhece o conteúdo da lata, mas fica imaginar... e passa a saber que era a botija a razão do apego do velho à arvore.

BIBLIOGRAFIA:

CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e Editora, São Paulo, 2003.
GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.
MATTOS, Cyro de. Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro In: Jornal da poesia
MACIEL, Nilto. “Os enigmas de Caio Porfírio Carneiro”.In:www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2093 - 175k –
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
Consulta ao site: pt.wikipedia.org/wiki/Anos_60 - 51k Acesso em 23/08/2008


OBRA: Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro

TRAPIÁ (de origem tupy tarapi’á)s.f. catauari, catauré – Árvore pequena da família das caparidácias, de propriedades medicinais, cujas folhas têm pérolas lanceoladas e cujo fruto é uma baga globosa com sementes de testa dura e lenhosa. (Em Pedra Branca-Ce, há um açude com esse nome e em Pernambuco há uma cidade com o nome Vila Trapiá)
O AUTOR:

Caio Porfírio Carneiro nasceu em Fortaleza-Ce, a 07 de junho de 1928, onde trabalhou como jornalista e bacharelou-se em Geografia e História pela Faculdade de Filosofia de Fortaleza. Ao lado de Moreira Campos, Eduardo Campos e Fran Martins, expoentes do Grupo Clã, Caio Porfírio é um dos mais fecundos cultores do conto no Ceará, como assinala Nilto Maciel. Mudou-se para São Paulo em 1955, onde trabalhou, inicialmente, na imobiliária de um irmão e foi redator de programas da Rádio Piratininga. Durante anos, trabalhou na Editora Clube do Livro Ltda. Em 1963, assumiu a função de secretário administrativo da União Brasileira de Escritores de São Paulo (UBESP). Sócio titular do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, do PEN CLUBE-SP, da Academia Paulistana da História, da Academia de Letras do Brasil (Brasília), da Unión Cultural Americana (Buenos Aires) e sócio correspondente da Academia Cearense de Letras. É colaborador de vários suplementos do País, com ficção e crítica literária. Assinou a apresentação de dezenas de obras, dos mais diversos gêneros Alguns dos seus livros alcançaram várias edições. O romance O Sal da Terra foi traduzido para o italiano e o árabe e adaptado em roteiro técnico para o cinema. Contos seus estão incluídos em duas dezenas de antologias. Embora seja também romancista, poeta, novelista e crítico literário, foi no conto que ele se afirmou o como um dos mais importantes representantes do gênero na literatura brasileira contemporânea. Está vivo e em plena atividade.

Suas obras se caracterizam pela síntese, pela sutileza e pela sobriedade da linguagem. Caio Porfírio exercitou vários gêneros literários, transitando pelo regional, pelo urbano, e pelo enigmático. Na forma dos contos, vai rompendo, nas obras seguintes, a estrutura tradicional vista em Trapiá e ousando com enredos não-lineares, fragmentados; intercalação de foco narrativo e outros procedimentos de vanguarda, como, inclusive, a incorporação de técnicas de outros textos, como os do teatro e das orações religiosas.
Contos:
Trapiá (1961);
Os Meninos e o Agreste (1969);
O Casarão (1975),
Chuva - Os Dez Cavaleiros (1977),
O Contra-Espelho (1981)
Dez contos escolhidos (1983)
Viagem sem Volta (1985),
Os Dedos e os Dados (1989),
A Partida e a Chegada (contos e narrativas)(1995)
Maiores e Menores (2003)
Romances:
O Sal da Terra (1965)
Uma Luz no Sertão (romance-reportagem) (1973/2007)
Novelas
Bala de Rifle (novela policial)(1965),
Três Caminhos (1988)
Dias sem Sol (1988)
A Oportunidade (1986).
Ensaios:
Do Cantochão à Bossa Nova (ensaio sobre música popular brasileira)
A vocação nacional da UBE – 62 anos (Histórico da UBE desde a sua fundação) (2004)
Literatura juvenil:
Profissão: esperança (1986)
Quando o Sertão Virou Mar...,(1986)
Da Terra Para o Mar, do Mar Para a Terra (1987)
Cajueiro Sem Sombra (1997)
Poesia
Rastro Impreciso (1988)
Reminiscências (memorialismo)
Primeira Peregrinação (1994)
Contagem progressiva (1988)
Mesa de Bar (1997)
Perfis de Memoráveis (autores brasileiros que não alcançaram o 3º milênio) (2002)
Miscelênea (literária)
Gramíneas (2006)

O gênero ‘conto’: Na estrutura do conto, há um só drama, um só conflito. Rejeita as digressões e as extrapolações, pois busca um só objetivo, um só efeito. Com isso, a dimensão do conto é reduzida: o autor usa a contração, isto é, a economia dos meios narrativos. Essa preferência pela concisão e a concentração dos efeitos torna o conto uma narrativa curta. Uma característica importante é que ele termina justamente no clímax, ao contrário do romance, em que o clímax aparece em algum ponto antes do final.
O espaço físico da narrativa normalmente não varia muito devido à própria dimensão do conto. A variação temporal não importa: o passado e o futuro do fato narrado são irrelevantes. Caso seja necessário, o contista condensa o passado e o expõe ao leitor em poucas linhas.
Devido a essas características (pequena extensão e pouca variação espacial e temporal) o número de personagens que participam do conto é pequeno. Também não há espaço para personagens complexas: a ênfase é colocada em suas ações e não em seu caráter.
É claro que essas características do conto podem variar de uma época para outra, mas essas variações ocorrem em maior ou menor grau, constituindo sempre uma estrutura básica que configura o gênero.

Características do conto:
Narrativa concentrada e limitada ao essencial; Apresenta os elementos básicos da narrativa: fatos, personagens, tempo e lugar; O enredo apresenta normalmente a seguinte estrutura: apresentação, complicação, clímax e desfecho; Número reduzido de personagens; Tempo e espaço bastante delimitados; Pode apresentar narrador-observador ou narrador-personagem; inguagem predominantemente de acordo com o padrão culto, formal ou informal, da língua.

O Estilo do autor: Quase todos os livros de contos de Caio apresentam características de romance. Em Trapiá, , por exemplo, todas as histórias têm como cenário a pequena cidade de Trapiá e os vilarejos e sítios bem próximos, personagens reaparecem, revezando-se a cada conto, dando a impressão de que todos se conhecem. Nesse, como em outros livros seus,.os enredos são construídos com uma linguagem sintética e precisa; os personagens têm voz e certa densidade, pois observam, constatam, agem e, muitas vezes surpreendem. Cyro de Matos observa que o estilo enxuto e sintético de Caio Porfírio Carneiro projeta densidade humana, forçando o leitor participar da história, tornar-se cúmplice do destino dos personagens com sua feição sofrida. A intensidade que emerge do discurso feito com observações lúcidas sustenta certa atmosfera que evolui em seus ângulos críticos na medida em que a história caminha para o desfecho imprevisível. O epílogo força qualquer um a pensar sobre a complexidade do mistério da existência”. De fato, o narrador, sempre em 3ª pessoa nos contos de Trapiá, contam acontecimentos da vida seres sofridos, mas esperançosos, valentes, resistentes aos sofrimentos das secas ou das enchentes, das humilhações ou da solidão, da pobreza material, das perdas.
Ainda de acordo com Matos, “nestes contos não se vê a intenção do escritor em fixar tipos, linguagem, valores e costumes de determinada região, transpondo os elementos para o literário em seu espaço documental típico. O contista não experimenta a linguagem, embora se mostre íntimo do território humano que projeta, pouco a pouco, no texto enxuto. Não chega a forçar em algum momento as emoções para sustentar o drama. A cumplicidade que emerge do leitor em torno de alguns dos personagens decorre da capacidade que tem Caio Porfírio Carneiro de alcançar sentimentos verdadeiros, que são de nós humanos, com nossas permanentes comoções. A matéria desses contos não é outra senão a criatura humana nos incidentes, encontros e desencontros da existência”. Embora apareçam os coronéis, os barqueiros, o pai ignorante e honesto, o empregado matreiro, não há estereótipos marcados. Também não falta a dimensão humana desses seres de papel que vivem sem muita escolha. Com estilo próprio, Porfírio recorta ‘momentos’ para desenvolver suas histórias e, muitas vezes, dá ao leitor a chance de terminá-las com sua imaginação. Os diálogos são enxutos, bem contextualidados, sempre fiéis ao nível de linguagem dos personagens.
A OBRA:

TRAPIÁ é o primeiro livro de Caio Porfírio Carneiro, cearense de Fortaleza (07/06/1928), radicado em São Paulo desde 1955. É uma coletânea composta por 11 contos, todos regionalistas. O primeiro texto – “Como nasceu Trapiá” – não é um conto, mas uma explicação sobre o surgimento da cidade que será cenário das narrativas, todas histórias da “terra áspera, calcinada, de coronéis, arrieiros, velhos solitários, gente humilde do interior, meninos com a infância sofrida”(Matos).
Tempo: Não há tempo psicológico em nenhuma narrativa, embora, em muitos contos não percebamos o tempo cronológico seqüenciando a narrativa. É Matos quem diz que isso decorre da técnica do contraponto. O narrador não descuida do leitor e expõe os fatos de modo que ele não se desinteresse pelas histórias relatadas, sempre mantendo os personagens em ação, mesmo dentro do drama que vivem. Em “Come gato”, um dos contos mais longos, com partes numeradas, como a dividir as cenas, percebe-se a simultaneidade das situações.

Espaço:. O espaço da maioria dos contos é a cidade de Trapiá e seus arredores, que aparecem como cenário ou apenas nas referências dos personagens: Taimbé, Coité, Pitombeira, Serra do Machado, Brejo da Ema, Canta Galo, Fazendas Queimadas, Cerrado e Contendas, todos lugares imaginários, situados no sertão, na caatinga, todos terra calcinada. Ao narrador parece não importar muito retratar as paisagens e os ambientes, pois as descrições são mínimas. A repetida referência ao vento Aracati remete imediatamente o leitor atento ao Ceará. Aliás, a presença do vento é uma constante nos contos de Trapiá. O último do volume, como a confirmar, é intitulado justamente “Ventania”.

Estilo de época: Pós-modernismo - Na arte, os anos 60 marcam o momento da transição da vanguarda para a contemporaneidade. O atestado de óbito da Modernidade. Os procedimentos da arte passam dos polêmicos questionamentos dos suportes tradicionais ao fim do suporte como elemento essencial da obra de arte. É o momento da arte conceitual que vai dominar na década seguinte. Uma arte mais fria, cerebral, menos engajada, voltada para interrogar sua própria natureza. Uma manifestação que aconteceu em vários Países , quase ao mesmo tempo, inclusive no Brasil. Os artistas plásticos abandonam os museus, as galerias, saem da solidão dos ateliês e se misturam na multidão. É a poética do gesto, da ação, da coletividade, a utopia da arte / vida como participação do espectador na realização da obra de arte. No Brasil a Tropicália, de Hélio Oiticica, foi uma das manifestações mais polêmicas, ao lado de Terra em Transe filme experimental barroco de Glauber Rocha e a
Peça O Rei da Vela, de Osvald de Andrade, dirigida por José Celso Martinez.

É a década dos Happenings, surgidos com a Pop arte, uma espécie de teatro instantâneo, uma mistura de artes visuais, música e dança, que convida o espectador a participar da obra ou da ação, uma forma de tirá-lo da passividade, fazendo-o reagir à provocação do artista e do cotidiano político social. Para Jean Jacques Lebel, autor de vários happenings em Paris: “Nosso primeiro objetivo é transformar em poesia a linguagem que a sociedade de regionalista que surgiram no Romantismo; a narrativa fantástica, que se configurou como gênero também no séc. XIX, o ultra-realismo, que nada mais é, do que o velho Naturalismo; as crônicas memorialistas que já existiam, mas não eram consideradas
literárias alcançaram esse status; as narrativas políticas e intimistas iniciadas no Modernismo intensificaram-se e, com a legitimação da pluralidade e a ficcionalização de
variados gêneros, surgiu o romance-reportagem, trazendo a linguagem do jornalismo para a
literatura num diálogo promissor.
Caio Porfírio não se restringiu a nenhuma tendência específica: exercitou o conto regionalista e o urbano, o romance-reportagem, a poesia, a novela, a crônica memorialista, enfim, diversos gêneros e tendências, com estilo próprio, sem ater-se a experimentalismos radicais ou reverenciar ‘revoltas artísticas’, embora, em suas obras seguinte à Trapiá, tenha utilizado técnicas diversas, inclusive de vanguardas.

Contexto histórico: Trapiá surge no ano em que os soviéticos enviam Iuri Gagárin ao espaço. Independente desse marco, a década de 60 é marcada pela revolução comportamental, com o surgimento do feminismo e dos movimentos civis em favor dos negros e homossexuais. O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja Católica. Surgem movimentos de comportamento como os hippies, com seus protestos contrários à Guerra Fria, à Guerra do Vietnã e o racionalismo. Esse movimento foi também a chamado de contracultura. Ocorre Revolução Cubana na América Latina, levando Fidel Castro ao poder. Tem início também a descolonização da África e do Caribe, com a gradual independência das antigas colônias.
Foi um período marcado, pelo menos os 5 primeiros anos, por um sabor de inocência e até de lirismo nas manifestações sócio-culturais, e no âmbito da política é evidente o idealismo e o entusiasmo no espírito de luta do povo. Foi inaugurada Brasília, a nova capital do país, por Juscelino Kubitschek. Jânio Quadros sucede Juscelino e renuncia cerca de sete meses depois, sendo substituído pelo então vice-presidente João Goulart. De 1966 a 1968 (porque 1969 já apresenta o estado de espírito que definiria os anos 70), as coisas mudam: experiências com drogas, perda da inocência, revolução sexual e protestos juvenis contra a ameaça de endurecimento dos governos. Sob o pretexto das tendências comunistas de Jango, ocorre o golpe militar de 1964, que depõe Goulart e institui uma ditadura militar. No final da década, tem início o período conhecido como "milagre econômico". Em 1969, integrantes da ALN e do MR-8 seqüestram o embaixador norte-americano Charles Elbrick, exigindo como resgate a libertação de 15 prisioneiros políticos. Após isso, diplomatas da Alemanha e do Japão também são seqüestrados no Brasil.
Na verdade, a segunda metade dos anos 50 já prenunciava os anos 60: a literatura beat de Jack Kerouac, o rock de garagem à margem dos grandes astros do rock (e que resultaria na surf music) e os movimentos de cinema e de teatro de vanguarda, inclusive no Brasil. A década de 1960 é marcada pela velocidade das vanguardas artísticas, que têm Nova Yorque como capital cultural do século XX. Dentre as manifestações artísticas como Minimalismo, Op Arte, Arte cinética, Novo Realismo e Tropicália, a Pop Arte surgida na Inglaterra, mas apropriada e difundida pelos norte americanos foi a vanguarda mais decisiva da década. Sem programa preestabelecido, sem manifesto, utilizando-se do repertório do cotidiano do consumo e da cultura de massa, foi rapidamente transformada em tendência internacional. Isso mostrou o poder cultural dos americanos.
No Brasil estudantes em passeata enfrentam a repressão militar; em abril de 1968, a polícia mata o estudante secundarista Edson Luiz no Rio de Jane iro e em dezembro o golpe mortal do governo militar, o Ato Institucional Nº.5. O auge da repressão. Ninguém mais se sentia seguro. A arte foi proibida na rua, exposições fechadas, como a Bienal Nacional em Salvador e artistas presos ou vivendo na clandestinidade ou no exílio. Fecharam-se as cortinas e o espetáculo passou a ser encenado na obscuridade. Até hoje a arte brasileira vive o prejuízo desses anos de sansão e petrificação da cultura brasileira
Personagens: Coronéis, arrieiros, viúvas, velhos solitários, mulheres que engravidam todos os anos, crianças, sobretudo meninos, com a infância maçada pela pobreza e pelo sofrimento; a maior parte, gente humilde do interior, que trabalha na terra áspera, em comboios, canoas.
Foco narrativo: Todos os contos são narrados na 3ª pessoa verbal; têm, portanto, os fatos relatados por um narrador observador, que não tem total domínio dos acontecimentos. Note-se que, o tempo todo, intercalam-se os discursos diretos e indiretos, o que faz com que a ação dos personagens tenham bastante importância no desenvolvimento da trama, retirando ar possibilidade de onisciência narrativa.
Características da obra Trapiá:
Regionalismo: Nota-se, nos contos de Trapiá, um retorno de Porfírio à sua região nordestina que, nesta obra, é, certamente, fonte de inspiração para suas histórias. Ele, entretanto, ultrapassa essa dimensão do tão-somente regional e atinge o universal ao enredar suas verdades, tristezas e dores, da mesma forma que fez Guimarães Rosa. Algumas expressões típicas: “casa do sem jeito”, “potoca’, “de vera”, “tapuru de gente’, “mucuim do inferno”, “embiocado”,“canarana”, “mofumbó”, “varejão”, ton-fraco de capote”, “neu”, “desbilotada” “maluvido”, “manga”(no sentido de pasto), “baticun”, “capionga”, “mode”, “cachimbeira”, “gasguito” “bichinho”, “socar-se”, “rachar de peia”, “oitão”.
O uso da linguagem coloquial: recurso que dá verossimilhança à fala dos personagens e marca a simplicidade deles: tou, tar (estou, está); té logo, neu (em eu/em mim); Inhor sim (sim, senhor); desafasta, tu não anda; vosmecê; queu (que eu); cê, pegou ele; eu é Olavo. Como a coadunar perfeitamente forma e conteúdo, além da paisagem sertaneja e histórias de sua gente, os contos resgatam não apenas a fala coloquial e as expressões típicas, mas reproduz imagens através do léxico que nomeia objetos (bilros de almofada, cabresto, cangalha, grajaú), costumes (cavalo de talo de carnaúba, lava pés antes de deitar) e vegetação (cumaru, mata-pasto, pitombeira, oiticica, pega-pinto, cansansão, gerimataia), como num painel da cultura local.
Sutileza e sobriedade de linguagem - A utilização de termos e expressões típicas da região retratada na obra ocorre de maneira comedida; pois aparecem incorporados ao discurso dos personagens, bem contextualizados, não incorrendo, por isso, o contista, em exageros que tornem os textos cansativos.
Síntese – Conciso em suas colocações e econômico com as palavras, Porfírio mostra, já no primeiro livro, conhecimentos da técnica narrativa. Ele arma as histórias, como se armasse um bote e, ao enredar o leitor na fala dos personagens, nos movimentos e constatações deles, surpreende-o com finais inesperados, seja pela trivialidade ou pelo inusitado que causa surpresa ao leitor (então o coronel sabia de tudo em, “Milho empendoado”?). Essa sua capacidade de síntese e equilíbrio não tira a intensidade de seu discurso, nem deixa lacunas desnecessárias entre o leitor e a história que lê.

Intertextualidade homo-autoral: os contos dialogam um com o outro. Como se passam, todos, basicamente, na mesma localização – entre a cidade de Trapiá e circum-vizinhanças - os personagens se repetem, transitam em uma e outra história, como se compusesse, cada unidade,.o núcleo de um enredo maior. Como vivem na mesma região, os personagens se conhecem, transitam pelos mesmos espaços e, embora vivam histórias autônomas (para entender um conto não se precisa ter lido outro) têm-se a impressão de estar diante de um quase-romance, dada a unidade na diversidade de casos.
Vejamos alguns exemplos: no conto “O canoeiro”, quando ele narra o crime cometido pelo Pereira, no enredo de “A dívida”, confirmando, inclusive, os defeitos do Queiroz. É como se a ação dos dois contos fossem simultâneas. Já “Milho empendoado”, o Coronel Camilo fala sobre a visita que fará ao amigo Firmo, que perdeu a esposa Dona Amélia; na narrativa de “Macambira”, encontramos esse mesmo Seu Firmo, resistindo à seca, conservando seu patrimônio e vivendo sua solidão de viúvo; falando sobre a resistência à seca, um dos personagens faz menção ao Cel. Camilo e sua fazenda. O Coronel Aparício que manda o cabra Tacanha agredir Seu Leocádio em “Come Gato” é o mesmo do conto “Padrinho”, que nega ajuda ao empregado para socorrer a criança no meio da noite. Em “Ventania”, o velho Aristides dá notícia da morte do Lino da Serrrota ao amigo Sabino, o mesmo Cel. Lino que é levado na canoa por Chico, no conto “Canoeiro”.
• TEMAS: solidariedade (“Mata-Pasto”,“Come Gato”); ignorância (“O Pato do Lilico”); astúcia e prepotência dos coronéis (“Milho Empendoado” e “O padrinho); a afeição (Velha Candoca em “Candeias”); solidão na velhice (“Ventania”) e ódio revertido em amor (“O Gavião”). A morte é uma constante, nos contos, por doença, afogamento, assassinato, mordida de cobra, mostrando a precariedade do homem diante da sua maior certeza. O tema é, na verdade, o ser humano em sua capacidade de amar e desamar, em sua solidão, sua dor, sua humildade e seu orgulho, num calidoscópio de sensações e sentimentos que compõe a diversidade humana.
• ENREDOS - Nas onze histórias de Trapiá, de acordo com Matos, percebem-se nuanças clássicas do “realismo, com observações exatas nas cenas sobre seres e objetos da realidade imediata, a estrutura tradicional da narrativa curta fragmenta-se no lugar de ser desmembrada linearmente. A ação dos personagens que, em pequenos blocos cruzam e se entrecruzam no desenvolvimento da trama, retiram qualquer possibilidade de onisciência narrativa, da qual aflora o drama sem desprezar a ternura. O recurso da síntese manipulado pelo contista consegue no final imprevisível o efeito intenso”
• Como nasceu Trapiá – Texto de abertura, escrito pelo próprio autor, contando a origem do vilarejo de Trapiá, antigamente apenas um descampado, com uma oiticica e um trapiá plantados, exatamente onde cruzavam os caminhos da “Vila Coité ao Serrote do Machado e da Fazenda Taimbé no rumo dos cafundós do sertão”. Retirantes da seca do Pernambuco, da seca de 77 construiram casebres nessa caatinga, onde foi morte e dependurado na oiticica o cangaceiro Nestor Amarício.

Milho empendoado – Chico, empregado da casa do coronel Camilo, sem recursos para alimentar a mulher ‘de cria’ rouba galinhas do quintal do patrão para que a sogra faça as canjas de que ela necessita. A velha Rita, no diário ritual de jogar milho para as aves, reclama do marido, citando os inusitados nomes das sumiram (Pedrés, Capão, Indiano), dando pela falta de mais uma. O velho, entretanto, entretido com os problemas das terras, faz ouvido de mercador, até o dia em que designa Chico para cuidar do sumiço das galinhas, tendo a sutileza de desviar as desconfianças para o vizinho, Doroteu. No final, entretanto, surpreende o leitor ao revelar à mulher que “não pegou o ladrão, mas acabou com o roubo, quando mandou o suspeito vigiar suas aves”.
O pato de Lilico – Em um dos raros passeios à cidade, o menino Lilicoo se desliga do pai, enquanto ele faz a entrega da carga que fora levar, e vai à praça admirar as crianças que estão a brincar. Açoitado por elas, é socorrido por um rico senhor que, compadecido com dua humildade, leva-o a uma loja de brinquedos onde tem um boneco de Papai Noel, e o presenteia com um pato de brinquedo. Quando o menino retorna, o pai não acredita que o ele tenha recebido o brinquedo de presente e, em sua ignorância e estupidez, pensa revoltado que o menino havia roubado o objeto e toma-o do filho, que faz o longo trajeto até a sua casa o tempo todo chorando. A criança não consegue mostrar sua inocência, pois o pai não quer ouvi-lo. Já em casa, quer puni-lo com uma surra, mas a mãe o impede.Ele quebra o brinquedo e pisa com raiva, enquanto a mulher na cozinha diz para o filho se calar, e recomenda-o nunca mais repetir o erro, pois “Nosso Senhor o castigará”.
O Gavião – Um menino se revolta, porque um gavião rouba e devora seu canário de estimação, e insiste para que o pai o mate. Depois de várias tentativas frustradas, o menino passa a descobrir a astúcia e a beleza da ave e a admirá-la. Deseja, então, possuir uma, também para provar aos amigos sua coragem. Um dia, o pai mata a ave e o chama para vê-la abatida e, enfim, vingar a morte do canário. O menino fica imensamente ressentido, pois o seu ódio já havia se transformado em amor.
A dívida – Pereira, após brigar com Queiroz na feira da cidade e feri-lo com uma faca, foge com a mão ferida e procura abrigo na casa do amigo Gerardo, que fica fora da cidade. Gerardo o recebe surpreso, as vê-lo esfarrapado e sangrando, esbaforido da correria, ouve o seu relato e fica sabendo que o amigo, ao cobrar uma dívida do Queiroz que há meses lhe comprou uns bezerros, é agredido, xingado e reage tomando a faca do devedor e derrubando-o. Certo de que matou o homem, Pereira se angustia e pede ajuda. Gerardo vai à cidade apurar os fatos e pedir ajuda ao ‘doutor Soares’, de quem o criminoso é eleitor. Enquanto isso, o Pereira fica imaginando para onde será ‘degredado’ pelo político e passa a sonhar em enriquecer na Serra do Machado e voltar triunfante à cidade natal, com todos à sua volta fazendo reverência. Ao retornar da cidade, Gerado o avisa de que o Queiroz foi apenas ferido e que o ‘doutor Soares já o advertiu de que deverá pagar a dívida. Pereira, já envolvido com o sonho de viver e enriquecer na Serra, demonstra decepção.
Come gato – O narrador traça duas histórias paralelas: a do menino Olavo, que vive a constante humilhação de ser chamado de “Come Gato”, quando passa pela rua, e a do Seu Leocádio, que vive as contendas políticas com seu adversário, o Cel. Aparício. Seu Leocádio é o único que trata o pobre Olavo, que mora num quartinho nos fundos de uma oficina, com respeito, chamando-o pelo nome, e oferecendo-o comida. Sabendo que Seu Leocádio foi agredido dentro de sua própria casa pelo Tacanha, capataz do Cel. Aparício, Olavo vai à sua procura e o mata com uma faca, dizendo que “”Em coronel Leocádio ninguém encosta a mão”. Impune em seu heroísmo anônimo, Olavo retorna à cidade e tudo volta ao normal: Seu Leocádio está na calçada, paparicado pelos correligionários e contando a ‘vingança’, os meninos correndo atrás dele e chamando-o de Come gato e, finalmente ele sendo recebido pelo velho, que o oferece comida com a delicadeza de sempre. A história, intercalada em 8 blocos narrativos, parece ilustrar ações simultâneas. Ao mostrar a solidariedade do menino sujo com o velho que lhe é generoso, ultrapassa-se o realismo do menino miserável para torná-lo herói, ainda que anônimo.
Mata-Pasto – Chico, empregado do Coronel Henrique, acostumado a capinar o mata-pasto e tirar as cobras, vive a maturar a idéia de um dia, à noite, entrar no quarto da velha Clotilde e furtar a lata que ela guarda cheia de dinheiro. “Dez anos trabalhando como burra sem mãe” e nada tinha. Um dia, aproveitando que o patrão deixara de cortar o pasto e podia se esconder, resolve agir: inventa para a mulher que vai visitar uma tia doente na cidade e fica de tocaia no meio do mata-pasto, acompanhando o movimento da casa, vê Cel Henrique chamar os netos para dormir, depois lavar os pés na bacia, derramar a água, escuta as ordens de Dona Clotildes para Lourdes e, enquanto calcula sua entrada na casa para roubar a lata com dinheiro e enterrá-la debaixo do pé de oiticica, sente uma picada no pé direito. Começa a delirar e desmaia, pois, na verdade, foi picado por uma cobra. Os outros empregados, de manhã cedo, encontram o corpo e levam-no para a casa do Coronel, que não entende o que Chico fazia ali naquela noite. Joana, a esposa, chega chorosa. Após alguns dias, por ironia do destino, Dona Clotilde manda um presente para a viúva: a lata com suas economias – trezentos mil réis – para ajudá-la a continuar a vida.
Macambira – O velho Firmo, viúvo de Dona Amélia, resiste à seca, tentando conservar seu patrimônio, sem ceder às ofertas de compra; recusa-se a ir morar com os filhos em São Paulo e vive com o olhar perdido no poente, conversando em silêncio, trocando o nome da empregada Raimunda pelo da esposa Falecida. Vive a examinar o tempo, do seu alpendre, falando com quem passa pela estrada e tomando conta do que é seu. Conserva seu gado com muitos gastos, e aprende a conviver com a solidão, alimentado pelas lembranças da casa cheia e esperando a chuva, suportando o casarão vazio e o vazio de sua vida, “porque um homem não se dobra... nem quando perde a mulher”
O padrinho – O miserável Chico, vendo a filha muito doente em uma rede, e a esposa grávida a pedir socorro e implorar-lhe para pedir ajuda ao patrão, vai, no meio da noite, bater na porta do Coronel Aparício. Aborrecido, o velho o atende e nega a ajuda, ordenando-lhe que deixe para quando o dia amanhecer. Compadecido com a situação da filha e da mulher, ele resiste à vontade de esperar o dia amanhecer e vai à cidade pedir um remédio ao farmacêutico, com quem já tem dívida. Após a cobrança, é atendido, mas, quando chega ao seu casebre, percebe a presença da vizinhança e fica sabendo que a filha morrera. Avisa ao patrão, padrinho da menina morta, esquecido da humilhação, mas ele mal escuta, apenas o dispensa do dia de trabalho. Dias depois, sua mulher dar luz à outra menina e ele, humildemente, volta ao Coronel Aparício para avisá-lo e convidá-lo, outra vez, para padrinho da criança.
Candeias – O afoito menino Rafael, em suas vadiagens pelo açude da cidade, acaba morrendo afogado e ficando preso nas raízes da Oiticica. Pedro e Zeca, numa canoa, com candeias na mão, tentam resgatar o corpo do menino, enquanto a mãe, o irmão e amigos, esperam o resultado da ação. Enquanto isso a Velha Candoca, com quem Rafael implicava mandando os companheiros sujar os panos do coradouro e chamando-a de “velha cachimbeira”, recorda a noite chuvosa em que o marido morreu afogado e sente dó do que aconteceu com o menino. Quando encontram o corpo menino morto, da sua calçada, acompanha o cortejo com o olhar, imaginando que “ na certa estaria deformado, inchado, sem o sorriso moleque”, e se comove, enchendo os olhos de lágrimas, pois nunca mais ouviria a provocação: Velha cachimbeira!
O canoeiro -.Outro personagem com nome Chico, dessa vez um canoeiro, vive a atravessar o rio para levar pessoas e mercadorias à cidade de Trapiá. No período da cheia, os outros canoeiros se recolhem e ele, herdeiro da ‘valentia’ do pai, aproveita para trabalhar mais e juntar dinheiro para comprar uma canoa maior. Aumenta bastante o preço da travessia, cobrando pelo perigo que enfrenta. Ele se recusa a baixar o preço, inclusive para uma senhora que quer atravessar com o neto para ver a filha que está muito doente. Numa madrugada chuvosa, procuram-no em casa para atravessar o rio com o corpo de um coronel morto e sua viúva. Seriam duas viagens, pois teria que voltar para atravessar outros parentes que iam assistir ao enterro. Quando descobre que estão sem dinheiro, recusa o serviço, mas é convencido a fazê-lo para receber o dinheiro depois. Comovido, ela acaba dispensando o pagamento à viúva e diz que fez por caridade, embora ela continue a prometem que mandará o filho recompensá-lo. Após a cheia, as pessoas se recusam a fazer o transporte com ele, relembrando como ele subiu os preços na época em que só havia a canoa dele para fazer o trajeto. Sem clientes, gastando o dinheiro que economizara, ele se surpreende como uma visita: o filho do Seu Lino (o morto). Mesmo em situação difícil, ele recusa-se a receber o pagamento, pois já empenhara a palavra, mas aceita que ele compre a canoa grande com que tanto sonhava, para pagá-lo aos poucos. Causa admiração em todos da vila, faz o transporte de graça durante um dia, mas, no outro, volta à ativa com seu temperamento irredutível, cobrando caro pelo serviço. Outra vez encontra a mulher e o neto, de volta para atravessar o rio, e, ao saber que a filha dela morrera, nada lhe cobra. Orgulhoso em sua canoa nova, diz a ela que era amigo do Seu Lino e recebe os pêsames dela.
Ventania – O velho Aristides, apegado à sua fazenda Cerrado, continuava a briga anscestral pela posse da manga, mantendo, por isso, a velha rixa com o vizinho. Irritado com uma notícia que recebe do vaqueiro Nena, não comunicada ao leitor, ele chama o compadre Sabino e entrega-lhe o gado. Deitado na sua rede no alpendre do casarão, administrava sua fazenda e não cedia sua terra ‘para o que pediam’. Ruminava seu apego ao Juazeiro, olhando a ventania e dizia que abria mão de tudo, menos daquela árvore: “O meu juazeiro ninguém derruba”. Numa manhã, a velha Tereza o encontro morto em sua rede. Os coronéis de outras fazendas (personagens de outros contos) vão ao enterro e toda a gente dos arredores fica conversando sobre os feitos do velho. Dias depois, a velha Tereza, sem suportar a solidão no casarão, vende as terras ao vizinho e vai embora para a cidade. O Juazeiro é, então, derrubado para as obras da manga, e os dois empregados que fazem o serviço – Zé de Góis e Mundoca – comentando o capricho que o velho Aristides tinha com aquela árvore, cavam a terra e encontram uma lata enferrujada. São interrompidos pelo chefe do serviço e guarda-na para abrir depois. O leitor não conhece o conteúdo da lata, mas fica imaginar... e passa a saber que era a botija a razão do apego do velho à arvore.

BIBLIOGRAFIA:
CARNEIRO, Caio Porfírio. Trapiá, 4ª, edição, Ribeirão Gráfica e Editora, São Paulo, 2003.
GOMES, Celuta e AGUIAR, Thereza da Silva. Bibliografia do conto brasileiro, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 1969.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 1987.
MATTOS, Cyro de. Trapiá, de Caio Porfírio Carneiro In: Jornal da poesia
MACIEL, Nilto. “Os enigmas de Caio Porfírio Carneiro”.In:www.cronopios.com.br/site/ensaios.asp?id=2093 - 175k –
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974.
Consulta ao site: pt.wikipedia.org/wiki/Anos_60 - 51k Acesso em 23/08/2008