quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O Cangaço e suas seduções

O Cangaço foi um fenômeno social ocorrido no Nordeste brasileiro, no final do século XIX e início do século XX, e tem sido, até hoje, um dos temas mais visitados por pesquisadores e artistas que buscam entender e ilustrar as histórias dos bandidos nômades que povoaram o sertão nordestino até os anos 30. Os cangaceiros, figuras encouraçadas e cheias de brilho, andavam em bando armados e espalhavam medo por onde passavam, deixando em seu rastro uma mistura de temor e sedução.

Essas figura duais, mas invariavelmente temidas, sempre se impuseram no imaginário popular como contraventoras e estranhamente generosas. De fato, promoviam saques a fazendas e cidades, atacavam comboios e chegavam a raptar fazendeiros a fim de obterem vantagens, mas aqueles que os respeitavam e seguiam suas ordens não sofriam, pelo contrário, eram ajudados e protegidos. Muitas façanhas ainda douram o imaginário do povo, que conta e reconta episódios heróicos, como se a figura contraventora dos bandidos sertanejos fosse redimida pela coragem e pelo respeito que impuseram.

As diferenças sociais e a falta de proteção das autoridades aos desfavorecidos faziam-nos desprotegidos e submissos aos coronéis que cometiam todo tipo de abuso de poder e fraude política. Segundo Rui Facó, na verdade, Coronéis e Cangaceiros fazem parte de uma mesma realidade. Os coronéis organizavam grupos armados para, através deles, exercerem o poder. Quando esses homens se libertavam do jugo de seus mandantes, passavam a fazer justiça pelas próprias mãos, se transformavam em cangaceiros. Havia ainda, nesse contexto, a figura dos Fanáticos, líderes religiosos que intermediavam a relação dos humildes com Deus. Os principais deles eram cearenses: Padre Cícero e Antônio Conselheiro.
Como viviam de forma irregular e não seguiam as leis estabelecidas pelo governo, os cangaceiros foram classificados como “bandidos” e eram constantemente perseguidos. Para se protegerem, nas fugas estabanadas, usavam roupas e chapéus de couro como forma de defenderem seus corpos da vegetação espinhosa da caatinga. As estratégias de sobrevivência não se restringiam à vestimenta, eles também utilizavam todos os conhecimentos que possuíam sobre o território (fontes de água, ervas, tipos de solo, vegetação) para fugirem ou conseguirem esconderijos que os mantivessem fora do alcance dos perseguidores e com certo conforto. Eles estavam, de fato, fora da lei, porque não seguiam a regra estabelecida na região: a obediência total aos grandes fazendeiros. Alguns de menor prestígio, para fugir dos desmandos dos "coronéis", faziam aliança com cangaceiros e recebiam a proteção deles.

Segundo pesquisas, o primeiro cangaceiro teria sido o Cabeleira (José Gomes), líder sertanejo que viveu em Pernambuco no final do século XVIII e atemorizou o sertão com sua valentia herdada do pai, até ser condenado à morte. Um século depois, o cangaço volta com toda força, conquistando prestígio, com as figuras, hoje emblemáticas, de Antônio Silvino (Manuel Batista de Morais), Lampião (Virgulino Ferreira da Silva) e Corisco (Cristino Gomes da Silva Cleto), o Diabo Loiro.

O mais famoso deles – Lampião – fechou o ciclo da bandidagem sertaneja nômade, ao ser morto, na madrugada do dia 28 de julho de 1938, numa Gruta dos Angicos, em Sergipe, junto com sua Maria Bonita. Suas cabeças foram expostas em praça pública como punição exemplar. Suas façanhas, entretanto, continuaram vivas e, acrescidas da imaginação popular, viraram alvo de historiadores e motivo de romances, poemas, sobretudo do Cordel, peças de teatro, filmes, músicas e diversas manifestações artísticas.

Antônio Amaury Corrêa de Castro, um dos principais pesquisadores do fenômeno, escreveu quatro obras, tentando abranger nuanças diversas do bando de Virgulino: Assim morreu Lampião (1982),Gente de Lampião: Dadá e Corisco. (1985), Gente de Lampião: Sila e Zé Sereno (1985), Lampião: as mulheres e o cangaço (1985). Carlos Alberto Dória dá um enfoque geral em O Cangaço (1981), Rui Facó amplia os bandos e avalia os séquitos em Cangaceiros e Fanáticos (1972), Frederico Bezerra Maciel enfoca a fase áurea de Lampião em Lampião, seu tempo e seu reinado (1980), Frederico Pernambuco dá um enfoque quase poético ao tema em Guerreiros do sol: o banditismo no Nordeste do Brasil (1985) e Aberlardo F. Montenegro mostra cangaceiros e seguidores em suas sagas, no seu Fanáticos e Cangaceiros (1973).

O Cinema, desde 1953, descobriu as seduções do tema, e os telões conheceram os desertores do sertão em O Cangaceiro, dirigido por Lima Barreto e encenado por Vanja Orico, Ricardo Campos e Adoniran Barbosa. Seguiram-se Jesuino Brilhante, o Cangaceiro (1962), dirigido por William Gobert; Lampião, o Rei do Cangaço (1963), dirigido por Carlos Coimbra, tendo no elenco: Vanja Orico, Leonardo Villar, Dionísio Azevedo; Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Gláuber Rocha (1964), Maria Bonita, Rainha do Cangaço (1968), com direção de Miguel Borges, tendo no elenco: Sônia Dutra, Milton Moraes, Jofre Soares; Corisco e Dadá, de Rosemberg Cariry (1996) e Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas (1997). Mencionem-se, ainda, os curta-metragens: Memória do Cangaço Direção: Pedro Paulo Gil; A Mulher no Cangaço (1976) com direção de Hermano Penna.

A Literatura, desde 1876, com O Cabeleira, do cearense Franklin Távora, ficciona a figura do cangaceiro. O livro conta a história de José Gomes, o primeiro cangaceiro, líder sertanejo que viveu em Pernambuco no final do século XVIII. Em 1938, José Lins do Rego abre o ciclo do cangaço em sua produção literária e retoma o tema, com outros “heróis”, em Pedra Bonita (1938); a figura do bandoleiro volta como secundária em sua obra prima Fogo Morto (1943), depois ganha um romance inteiro com Cangaceiros, em 1953. Segundo Anita Martins Rodrigues de Moraes, “os romances de Lins do Rego associam a violência do cangaço à impunidade. A ausência de uma esfera pública constituída aparece como principal causa da violência, pois levaria as pessoas a resolver suas disputas no âmbito pessoal, colocando assim a vingança no lugar da justiça. Os textos de Lins do Rego promovem uma aproximação entre os soldados e os sertanejos armados (os cangaceiros), o que não acontecia nos romances românticos”. Há, ainda, a peça Lampião (1953), de Rachel de Queiroz, O Auto da Compadecida (1955) (levada às telas da rede Globo em 1998 e logo após aos cinemas), de Ariano Suassuna, Sem lei nem rei (1964) de Maximiano Campos, e Os desvalidos (1993), de Francisco Dantas, história de infortúnios, de mal-sinados. Existem inúmeros cordéis, dos quais posso destacar A chegada de Lampião no inferno, de José Pacheco, e A coragem de um vaqueiro em defesa do amor de João Firmino Cabral.

A música também se apropriou do tema; em “Mulher nova, bonita e carinhosa”, de Zé Ramalho e Otacílio Batista, por exemplo, temos uma bela peça musical que conta a história de mulheres sedutoras, entre elas, a de Maria Bonita, mulher do rei do Cangaço: “Virgulino Ferreira, o Lampião / Bandoleiro das selvas nordestinas / Sem temer a perigo nem ruínas / Foi o rei do cangaço no sertão / Mas um dia sentiu no coração / O feitiço atrativo do amor / A mulata da terra do condor / Dominava uma fera perigosa / Mulher nova, bonita e carinhosa / Faz o homem gemer sem sentir dor”


Totonho Laprovítera na trilha nos bandoleiros do Sertão


Totonho Laprovítera, também seduzido pelas histórias e imagens dos bandoleiros do sertão, corporificou-os em telas na exposição “Cangaço”. Conhecido como um artista multifacetado, misto de arquiteto, compositor, escritor e pintor, ele surpreende ao mostrar-se pesquisador cuidadoso e atento ao fenômeno do cangaço. Seu trabalho segue a trilha das imagens conhecidas e acrescenta-lhes vida com seu traço inconfundível, títulos elucidativos e textos acerca do assunto.

Se antes o interesse do Totonho pelo tema se restringia às lendas e histórias contadas sobre essas feras sertanejas, ampliam-se agora suas leituras e ganham plasticidade literalmente. Nesta mostra, os quadros fazem releituras da vida de Lampião e seu séqüito, via fotografias e imagens antológicas. Na verdade, esse ensaio completo sobre o tema é a continuação de um trabalho que já vinha sendo feito de forma mais intuitiva.

Decidido a enveredar pelas matas do sertão na trilha dos bandoleiros que já lhe eram fonte de inspiração, ele buscou documentos, inteirou-se das histórias, depois garimpou biografias e arquivos de imagens para tomar posse das referências visuais. Como artista contemporâneo que tem à mão as ferramentas do seu tempo, aprimorou técnicas tradicionais, como o bico-de-pena com que traçava efígies de figuras do cangaço e chegou, como ele mesmo diz, traçando os passos do seu processo criador, “ao talho do ‘buril’ do computador (instrumental posto a serviço da arte!)”. Daí veio a idéia do confronto entre xilogravura e infogravura e a digitalização de fotografias. Os passos seguintes foram a alteração dos retratos, à mão livre, e a transposição das figuras para as telas. Então as tintas conversaram sobre as telas, fazendo parcerias inusitadas ora com pincel, ora com espátulas, rolhas de cortiça, panos e, claro, as mãos do criador que deu forma e cor às criaturas armadas.

O primeiro quadro, “Lampião”, traz a figura ensombrada de Virgulino Ferreira, seguido de uma imagem do casal “Maria Bonita e Lampião”; neste, os dois parecem perpassados por um jato de luz, e emergem do vermelho como figuras quase etéreas. Ao lado dos dois quadros, há versos do próprio cangaceiro falando de sua coragem e seus amores. A tela seguinte, “Lampião e família”, mostra contornos de uma família reunida para fotografia, porém os rostos ficam escondidos sob a tintas e os traços brancos. “Lampião em 1929” tem fortes efeitos óticos e leva o expectador a imaginar que a figura do cangaceiro plana sobre seu cavalo, com o lado direito do rosto em sombra. As duas seguintes, ambas intituladas “Cangaceiros”, colocam-se ao lado de versos de José Honório da Silva, e a “Maria Bonita”, em jogo claro/escuro é colocada ao lado da canção de “Acorda Maria Bonita / Acorda vem fazer o café / O dia já vem raiando e a polícia já está de pé”, de Antônio dos Santos. As demais telas, “Lampião em Sergipe”, “Lampião e Maria Bonita em 1936”, “Lampião, Maria Bonita e bando”, “Bando de Zé Sereno”, “Maria Bonita e Lampião lendo”, “Nenê acariciando o cão Ligeiro, Luís Pedro, Maria Bonita e cão Guarani”, “Corisco e Dada, Lampião em Juazeiro”, Lampião e bando em Mossoró”, “Cangaceiro”, “Pancada e bando entregam-se à volante de Alagoas”, “Cabeças cortadas”, Maria Bonita e bando” contam histórias por si mesmas: amor, rendição, sofrimento, prazer, companheirismo e força.

Todas as imagens das telas, como já se disse, partiram de referências visuais de coleções e arquivos sobre o cangaço: Benjamin Abrahão, AbaFilm (Fortaleza), Acervo Sociedade do Cangaço (Aracaju), Coleção Frederico Pernambuco de Melo (Recife), José Olavo (Limoeiro do Norte) e Cangaceiro Juriti. As tintas, a técnica e o talento de Totonho, entretanto, recriaram as cenas, deram-lhes vida, através das cores fortes, do jogo claro/escuro, criando focos de luz que destacam nuanças das imagens. Em quase todas as telas percebe-se esse jato de claridade que quer, por força, conduzir os olhos do expectador. Além dessa herança barroca, percebe-se a versatilidade com o uso das cores, ora fortes, ora foscas, claras, em matizes variadas, fazendo sempre sobressair, através de um tom mais forte e vivo, a figura que se quer destacar.

Um detalhe especial dos quadros são as linhas brancas a contornar desordenadamente as figuras, criando um efeito especial de relevo, ao mesmo tempo em que, nos rostos, disfarça a identidade de cada uma. A indumentária, entretanto, é perfeitamente conservada: todas as personagens aparecem bem vestidas, especialmente Lampião, cujo chapéu parece mais ornamentado. Ele mesmo, numa entrevista dada em Juazeiro, quando de sua passagem por lá nos anos 30, declarou que a “aristocracia cangaceira”, além de suas regras, tinha sua moda. As roupas, de acordo com suas declarações, eram inspiradas em heróis e guerreiros, como Napoleão Bonaparte. O que mais chama atenção é que toda a indumentária - chapéus, botas, cartucheiras, ornamentos em ouro e prata e roupas de couro - era desenhada e confeccionada pelo próprio Lampião. Totonho, fez, por isso, questão de conservar detalhes como os anéis nos dedos de Maria Bonita e os enfeites do chapéu e da cartucheira do Rei do Cangaço, como a render-lhe homenagem.

Senhor das técnicas das artes visuais e suas artimanhas, Totonho investiu, ainda, na palavra, território também de sua paixão. Cada quadro aparece, na exposição, ao lado de um texto elucidativo, fazendo o casamento da palavra com a imagem: são versos do próprio Lampião, trechos da entrevista dada por ele nos anos 30, fragmentos dos cordéis de José Pacheco e José Honório da Silva, a canção memorável de Antônio dos Santos, vinhetas informativas e legendas com nomes dos personagens do cangaço.

A arte, mais uma vez, imita a vida, recriando, transfigurando, dando-lhe, talvez, as cores que ela própria não tinha. O Cangaço, nas telas, certamente, tem bem mais glamour do que nas selvas nordestinas. Sobretudo com a roupagem dada pelo talento do Totonho.

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