quinta-feira, 11 de outubro de 2007

“Boquinhas pintadas”: Uso do kitsch como estética de desconstrução?

Introdução

O romance "Boquinhas pintadas", do escritor argentino Manuel Puig, cujo estilo é marcado pelo kitsch, tem provocado interpretações as mais variadas. A fragmentação e o excesso de lugar comum, para alguns, constituem falta de estilo; para outros, podem ser interpretados como uma forma transgressora de ver o mundo e conceber a arte. É, pois, o kitsch, na obra de Puig, uma forma pensada de desconstrução dos padrões literários ou apenas mais um exemplo de mau gosto na literatura?

Quem é Manuel Puig

Manuel Puig é um escritor argentino, nascido em 1932, que acabou transferindo sua paixão pelo cinema para a literatura. Escreveu A traição de Rita Haywort (1968), obra em que expõe a vida de uma cidade argentina, por volta dos anos 30 e 40, mostrando a alienação das pessoas, completamente dominadas pelos mitos cinematográficos, depois, Boquinhas pintadas (1969), uma crítica à sociedade argentina conservadora, e The Buenos Aires Affair (1973), a história de uma artista plástica ninfomaníaca criada por uma mãe histérica. Nesta, Puig, além de refletir temas como sexo e morte, mescla o dramático e o cômico para fazer denúncia política da Argentina dos anos 70.
Em 1976, fez O beijo da mulher aranha, cujo enredo centra-se no relacionamento de um preso político e um homossexual, seu companheiro de cela. Durante sua temporada no Brasil, nos anos 80, ele o adaptou para o teatro e para o cinema. Depois de escrever Cai a noite tropical (1988), mudou-se para o México, onde morreu em 1990.
Apaixonado pelo cinema, estreou na literatura justamente com uma história que mostra seu fascínio pelas estrelas da antiga Hollywood, reflexo de sua vida na pequena General Villegas, nos pampas argentinos, onde desde criança assistia diariamente aos filmes em companhia da mãe. Esse hábito desenvolveu nele verdadeiro fascínio pela linguagem das telas, que passou a transpor para o papel em forma de melodrama, o que levou muitos críticos a considerarem suas obras como kitsch. Escrevendo narrativas em forma de roteiro, inspiradas em trechos de filmes, sobretudo nos clássicos hollyoodianos e nos dramas burgueses, encontrou espaço para a ferrenha crítica social. Por conta dessas críticas, no período da ditadura militar foi ameaçado de morte pela Aliança Anticomunista, que o perseguiu tanto pelo fato de ser homossexual como pelo modo sempre irônico com que retratava a sociedade de seu país.

O que é o Kitsch

Kitsch, palavra de origem alemã (verkitschen), designa valores estéticos distorcidos e/ou exagerados, o que ocorre, no caso do texto literário, através do uso de estereótipos, chavões, lugares-comum, floreados. O escritor passa, com a utilização desse modelo, a ter um estilo-marcado-pela-ausência-de-estilo. Ou seja, faz uma literatura “menor”.
O ponto alto do kitsch, segundo Abraham Moles, autor do livro O Kitsch, está no comércio e no desejo de consumo da sociedade emergente que acaba impondo normas à produção artística, ao exigirem a possibilidade de aquisição de produtos artísticos que não têm poder aquisitivo para possuir. Contentam-se, dessa forma, com reproduções e cópias a baixos preços. A partir da segunda metade do século XIX, o mercado começa a produzir produtos que são reprodução e que visam agradar às classes médias: são peças confeccionadas a partir de novos materiais que nunca se apresentam como são: a madeira é pintada imitando o mármore; os objetos de zinco, bronzeados; as estátuas de bronze são pintadas de dourado etc. O kitsch apresenta-se, desse modo, como a arte que está ao alcance do homem, disponível nas vitrines e casas comerciais, não como a autêntica que não está de acordo com o poder de consumo do povo.
No Brasil, especialmente, toma-se como kitsch o que se considera brega, de mau gosto. No território das artes, temos, como exemplo, a música de duplo sentido, a dor-de-cotovelo, os textos melosos ou, no caso da arte cênica e da literatura, os melodramas lacrimosos. Nada mais irônico do que falar da sociedade, associando-a ao kitsch, que ela tanto rejeita como um valor distorcido da beleza que cultua.

Boquinhas pintadas – a obra

A obra, escrita em 1969, tem o título retirado de um fox-trot musicado e gravado por Carlos Gardel, chamado “Rubias de New York” (A letra é de Alfredo Le Pera):

Peggy, Betty, July, Mary, / rubias de New York, / cabecitas adoradas /
que mienten amor. / Dan envidia a las estrellas, / yo no se vivir sin ellas./
Betty, July, Mary, Peggy, de labios en flor. /// Es como el cristal / la risa loca de July,/
es como el cantar de un manantial. /Turba mi sonar /el dulce hechizo de Peggy,
su mirar azul / hondo como el mar. / // Deliciosas criaturas perfumadas, quiero el beso de sus / boquitas pintadas./Fragiles mulecas / del olvido y del placer; / roen su alegria, / como un cascabel. /// Rubio cocktail que emborracha, / asi es Mary./ Tu melena que es de plata / quiero para mi. / Si el amor que me ofrecias /solo dura un breve dia, tiene el fuego de una brasa / tu pasion, Betty.


A inspiração já diz muito: os tangos são essencialmente trágicos, melosos, como é o enredo do romance, estruturado em fascículos, não em capítulos. Essa estratégia, marca a natureza da escrita entrecortada de uma obra (aparentemente) feita aos poucos, como uma tela de mosaico, e também publicada aos poucos, exatamente como os folhetins.

Juan Carlos, personagem central, parece ser o personagem e a própria voz que canta o tango, pois diz amar a loira Nélida, mas conquista a culta Mabel, num romance efêmero, tira a virgindade de uma menina de 13 anos e se envolve com uma viúva, além de insinuar-se para outras mulheres. Igualmente falso é Pancho, que seduz a negra Rabanilda, com falsas promessas, engravida-a, mas não assume o filho e tem um caso com Mabel, patroa de Raba. É assassinado por ela, que, após sair da prisão, amasia-se com um vizinho, com quem tem outros filhos.

Como no tango, a obra traz quatro personagens femininas, todas mal-sucedidas no amor, embora “perfumadas e com suas boquinhas pintadas”, todas seduzidas por seus homens sem compromisso. Nélida, desiludida com o doente Juan Carlos, casa-se sem amor com o Massa, jovem leiloeiro que logo se transforma em um senhor barrigudo; ela passa o resto da vida sonhando com o que poderia ter sido. Mabel e Celina são igualmente infelizes no amor. A primeira teve sucessivos fracassos em seus namoros e surpreende o leitor ao envolver-se com o negro Pacho e recebê-lo seguidas vezes no seu quarto; acaba se casando com um homem sem graça, apenas para não ficar solteira. A baixinha Celina “passa de mão em mão” e acaba falada por conta de seus envolvimentos com caixeiros-viajantes. Rabanilda é rejeitada por Pancho, mata-o, e contenta-se com um velho viúvo pobre a quem ajuda a criar os filhos. Todas mentem amor e são, em contrapartida, enganadas por seus homens.

A obra se divide em duas partes: “Boquitas pintadas de Rojo carmesí” e “Boquitas azules, violáceas, negras”, constantes de 8 fascículos cada uma. O enredo se constrói por montagem. Encontramos, no início, a notícia de falecimento de Juan Carlos Etchepare, um rapaz de Coronel Vallejos, município a 400 km de Buenos Aires. Registra-se que ele morreu aos 29 anos, em 1947.

Como já se falou, a história centra-se na vida burguesa argentina e tem como núcleo a vida do belo rapaz tuberculoso, seus relacionamentos, seus padecimentos e sua conduta de homem mulherengo e sedutor, que pouco valoriza as mulheres. O clima de “tragédia” se coaduna com o teor dos tangos, constantemente evocados nas epígrafes, nos textos e no próprio título da obra. Essa ligação lembrou-me o poeta Manuel Bandeira, que também no início do século XX descobriu-se tuberculoso e, em um de seus poemas autobiográficos, “Pneumotórax” (Libertinagem, 1930), fez um final que mostra o doente desenganado pelo médico: “-Então doutor, não é possível tentar o pneumotórax? – Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”. Sem cura, o melhor era assumir a tragédia e vivê-la.

A estrutura da primeira parte: “Boquitas pintadas de rojo carmesí”

Ao registro da morte de Juan Carlos, em 1947, seguem-se 10 cartas de Nené para a mãe do falecido. As cartas compõem os dois primeiros fascículos e constituem um monólogo da moça com a ex-futura sogra, Dona Leonor, lamentando a partida precoce do rapaz, justificando o fato de ter-se casado com outro e pedindo que a senhora não mostre as cartas à filha, Celina, seu desafeto desde a juventude. Ela registra, em cada carta seguinte, o recebimento das respostas, embora elas não apareçam imediatamente transcritas, ou reclama a ausência de um retorno. Insiste em pedir as cartas que Juan Carlos a enviava, quando ainda eram namorados (no fim do namoro, ele devolveu as cartas que ela o escrevia na época do sanatório e recebe as dele de volta, amarradas com uma fita azul). Após cada carta, o narrador situa espacialmente a personagem, dizendo onde está e as atitudes que toma após concluir a escrita.

Infeliz, mal-casada, ela conta sobre sua paixão da juventude, recorda as amizades com Mabel e Celina, fala de vida em Coronel Vallejos, do possível despeito de Celina que gerou a inimizade, desde uma festa no Clube Social, quando ela, Nené, foi eleita rainha e Mabel não. Faz confissões, conta como se entregou ao médico Dr. Aschero quando ainda era bem jovem e trabalhava como sua assistente. Também fala da vida ruim com o marido, da indisciplina e da falta de beleza física dos dois filhos, da sua vida pequena. Mais adiante o leitor fica sabendo que Dona Leonor nunca recebeu as cartas, que era Celina quem as recebia e as respondia, passando-se pela mãe.


No terceiro fascículo, o narrador descreve um álbum de fotografias, em que aparecem fotos que marcaram momentos da vida de Juan Carlos, sua família e seus amigos mais próximos, inclusive com as dedicatórias. Seguidamente, tem-se a descrição do quarto de Mabel. Detalhe: dentro de um dos livros, há uma foto de Juan Carlos, dedicada a ela, cujas palavras mostram uma paixão melosa, provavelmente falsa; também se tem nota da revista Paixão feminina e encontram-se transcrições de trechos da secção “Correio do coração”, para onde Mabel escrevia com o nome de “espírito confuso”, bem como a resposta de redatora, que é uma conselheira sentimental. A consulta refere-se ao ano de 1936. Aí, sabe-se que Mabel teve um envolvimento com Juan Carlos quando ele namorava Nené.

Após, vem um texto com todos os dias santos do ano 1935, seguido de um fato que marcou o dia. Na verdade é a agenda de Juan Carlos, uma espécie de diário, em que confessa seu caso com a viúva Elsa di Carlo.

No quarto e quinto fascículos, o narrador toma a palavra para contar como foi o dia 23 de abril de 1937 de Nélida e o de Juan Carlos, então seu namorado. Também relata como foi o mesmo dia para Mabel, Pancho e Rabanilda. A narrativa tem a precisão de um diário cronológico, marcando as horas e os fatos da vida desses personagens, suas rotina e seus envolvimentos. Aí começa a perseguição de Pancho, o pedreiro, aspirante a suboficial, a Rabanilda, empregada doméstica.

No sexto fascículo, aparece a consulta a uma cigana, feita por Juan Carlos, seguida de uma espécie de roteiro do envolvimento de Pancho e Rabanilda, bem como a carta do médico da cidade para o diretor do sanatório de Cosquín, onde Juan Carlos, funcionário licenciado da prefeitura, irá ser internado.

Nos sétimo e oitavo, lemos as cartas que Juan Carlos escreve do sanatório para Nené, todas apaixonadas. Antes de mandá-las, ele pede que o seu vizinho de quarto, ex-professor universitário, faça a revisão. Ele a trata de forma simplória, como “minha vida”, “loura”, “minha querida”, usando uma linguagem coloquial, cheia de gírias. No final do oitavo, tem-se o exame de gravidez de Rabanilda, o documento da Polícia da província de Buenos Aires que mostra a inclusão de Pancho na equipe que viaja para treinamento de suboficial da polícia, a portaria administrativa que faz uma denúncia contra o pai de Mabel e o relato da viagem de volta de Juan Carlos a Vallejos.

A estrutura da segunda parte: “Boquitas azules, violáceas, negras”

A segunda parte, inicia-se com o oitavo fascículo, onde lê-se a recapitulção da história que não foi contada: o retorno de Juan Carlos a Cosquín, sua procura por Mabel, a reprimenda do pai de Nené por ele ser tuberculoso e continuar querendo namorar sua filha, a decisão da prefeitura em mantê-lo de licença, e sua solidão, no bar, sem amigos.

Seguidamente, tem-se um relato, em 3ª pessoa, do dia 27 de janeiro de 1938 na vida de Nené, cujo maior medo era que alguém da cidade contasse ao “Moço leiloeiro” que chegara à cidade sobre o seu caso com o Dr. Aschero. Aqui já se tem indício do início do interesse de Nené pelo jovem que viria a ser seu marido. Segue-se com a descrição da rotina (do mesmo dia) de Juan Carlos, para quem o maior medo era morrer. Depois, tem-se a rotina de Mabel, sua ida ao cabeleireiro e a leitura do jornal em busca de anúncios de filme; seu maior medo é que o pai perca o processo impetrado por seus ex-noivo e sócio nos negócios. Também há o relato do mesmo dia para Sancho, cujo maior medo era que Raba denunciasse que ele era o pai do filho que esperava. Na descrição do dia de Raba, ressalta-se o temor que ela tem à rejeição de Pancho ao filho.

Na seqüência, há uma carta de Nené à Mabel, agradecendo o presente de casamento – um abajur de tule branco – e cumprindo a promessa de descrevê-la a lua-de-mel. Fala que voltarão (ela e o marido) a Vallejos para morar com a mãe dela, mas logo mudarão para Buenos Aires.

No décimo fascículo, há dois textos que compõem diálogos por telefone entre Raba e Nené A primeira, morando em Buenos Aires, como empregada doméstica, cheia de saudade do filho que deixou em Vallejos, e a segunda, já aborrecida com o marido, recém mudada para a capital argentina. Seguidamente há períodos soltos, que levam, com ajuda de um subtexto em itálico feito como em monólogo interior da própria personagem, o leitor a montar a história de encontro entre Mabel e Sancho, que passa a visitá-la em seu quarto à noite.

No fascículo seguinte, há um texto descritivo da rotina de empregada Rabanilda, então trabalhando na casa de Mabel. Todas as suas ações, seqüenciadas por monólogo interior, vêm acompanhadas de letras de um tango, cujo conteúdo coaduna-se com a história dela. No relato, percebe-se que Raba flagra Sancho saindo do quarto de Mabel e mata-o com uma faca de cozinha. Para que não descubram o fato, Mabel induz Raba a não contar a verdade, dizendo que Pancho a procurara e forçara um relacionamento. Há, ainda, uma carta de Juan Carlos à Viúva di Carlo, falando sobre a morte do amigo e referindo-se à casa que a viúva vendeu para comprar outra em Cosquín, na finalidade de hospedá-lo.

Lê-se o relato policial da morte de Pancho e a condenação de Rabanilda no décimo segundo. Também há o registro da acusação de que os irmãos de Pancho tentaram apedrejar Raba. Os textos policiais são sucedidos por uma informação do narrador, onde o leitor mais uma vez monta a história: trata-se da visita de Celina à viúva Elsa di Carlo. O discurso das ações aparece através de diálogo, cada um com o subtexto, mostrando a representação da fala, em oposição aos verdadeiros sentimentos.

No décimo terceiro, o narrador retoma a narrativa e fala da vida de Mabel, em passeio a Buenos Aires, e sua visita ao apartamento de Nené, onde comentam assuntos variados, mas, sobretudo, conversam sobre Juan Carlos. Mabel descobre que Nené nunca teve intimidades com o rapaz, pois nada conhece do desempenho sexual dele. Subentende-se que ela sim.

A confissão de Mabel com um padre aparece no décimo quarto. Ela diz ter amado Juan Carlos e ter-se envolvido com o negro Pancho, conta da armação que fez com a empregada para não ser descoberta. Depois o narrador noticia a morte de Juan Carlos em 18 de abril de 1947 e mostra o que Nené fazia na hora em que o rapaz expirou: cumpria a rotina doméstica em seu apartamento em Buenos Aires. No mesmo dia e hora, Mabel, também morando em Buenos Aires, recebia sua mãe em casa para passar o feriado da semana santa; Pancho jazia na fossa de um cemitério comum de Vallejos, e Rabanilda, grávida do vizinho com quem se amasiou, cuidava da casa e das crianças. Após o relato do enterro de Juan Carlos, há uma narrativa anônima. O leitor precisa buscar elementos para compreendê-lo: trata-se do desabafo de uma moça que foi seduzida ainda menina por Juan Carlos e a ele entregou-se sem ninguém saber, aos 13 anos. Ela conta que, depois que ele conseguiu o que quis, nunca mais falou com ela. Há, após, um monólogo da mãe de Juan Carlos, lamentando sua perda e outro de Celina, orando pela alma do irmão e atribuindo a culpa da morte dele à Nené, com a promessa de vingança.

As supostas cartas de Dona Leonor a Nené, em resposta à correspondência que consta no primeiro fascículo, vêm no décimo quinto. Os textos do narrador, que seguem cada carta, deixam claro que quem as escreve é Celina. Na seqüência, há uma carta da mesma Celina ao Massa, marido de Nené, falando da falta de caráter da esposa. Junto, ela envia a correspondência feita por Nené à sua mãe, sublinhando as partes em que ela fala do marido e dos filhos e onde confessa seu fiel amor a Juan Carlos. Em seguida, temos o diálogo entre Celina e a mãe, que cobra da filha o fato de não se ter casado e dado netos a ela. Após, lê-se sobre a visita de Nené à Cosquín, e sua entrada na casa da viúva Elsa. Nené diz estar separada e querer conhecer o lugar onde Juan Carlos passou os últimos tempos. Segue-se um texto do narrador que traduz os pensamentos de Nené, dentro de um ônibus, viajando sem destino, em relação à sua situação atual e ao passado; ela é acordada pelos filhos, que pedem para ir ao banheiro.

No décimo sexto, há o aviso fúnebre da morte de Nené, aos 52 anos, e a descrição do seu momento final entre o marido, os filhos e as noras. Seguem-se pequenas narrativas dando o destino dos outros personagens: o túmulo de Juan Carlos e as novas lápides com mensagens da irmã e da mãe; Mabel em sua vida de professora, recebendo a filha e o neto; a transferência dos ossos de Pancho para dar lugar a outros defuntos na vala comum do cemitério de Vallejos; a vida de Raba, viúva, preparando-se para casar a filha e indo visitar o filho Panchito, já casado. Finalmente, o Massa, viúvo de Nené, queima as cartas dela e de Juan Carlos e frases soltas aparecem como fagulhas feitas de frases das cartas dos dois namorados.

Montando o quebra-cabeça

O enredo, como se disse, não é estruturado no modelo tradicional, é totalmente fragmentado através de vários gêneros textuais: cartas, descrições do narrador, relatos individuais, páginas de diário, relato policial, e até confissões, com diferentes tipos de narradores e focos. O tempo dos registros não segue uma ordem cronológica. No início, está-se no ano de 1947, quando morre o protagonista, e Nené inicia uma correspondência com a mãe dele. Logo se retorna a 1937, com a descrição do quarto de Mabel e seu universo.

O leitor, através da diversidade de textos e narradores, vai montando, pelas datas, a história, como se montasse um quebra-cabeça. Em 1936, Nené (Nélida Fernández), aos 20 anos, é eleita Rainha da primavera, no Clube Desportivo Social, ganhando o despeito de Celina, que se sente injustiçada, já que a amiga, filha de jardineiro, nem sócia do clube é, e foi levada por Mabel, a professorinha, amiga de ambas. Nené, que perdeu a virgindade aos 19 anos com o médico Aschero, namora Juan Carlos, um belo rapaz, irmão de Celina. Eles se encontram, todas as noites, no portão da casa dela, onde ele pega um resfriado. Ficam até tarde, porque ela só permite intimidades depois que os pais dormem. Jamais ela se entrega a ele; não para conservar-se, mas por temer que ele descubra que não é mais virgem. Celina, por conta desses encontros, diz que Nené é a culpada por o irmão ter contraído tuberculose.

Pobre e sem estudo, Nené, que parece dissimulada como as personagens do tango de Le Pera, deixa de trabalhar com o médico, quando a mulher dele descobre o caso, e passa a trabalhar como vendedora na loja “Barato Argentino”. Em 1937, Juan Carlos é internado no Sanatório de Cosquín e mantém, de julho a setembro, apaixonada correspondência com ela. O leitor mal percebe em que momento eles rompem definitivamente, e ela se casa com o leiloeiro Massa, indo morar em Buenos Aires, onde tem 2 filhos. Na época da morte de Juan Carlos, em 1947, ela já não o via há 9 anos, o que supõe que esse rompimento tenha-se dado entre 1937 e 1938.

Além de ter-se envolvido com Mabel, estimulado pela irmã, embora declarasse amor a Nené, Juan Carlos persegue e tira a virgindade de uma menina, cujo relato é feito, já no final da obra, quando se volta a falar na morte dele. O leitor, entretanto, lembra de confabulações dele, quando num bar, certo dia, vê a mesma menina passar e diz que um dia vai segui-la. De temperamento fútil, no sanatório ele demonstra atração por várias enfermeiras. Depois, já rompido com Nené, passa a viver com uma viúva mais velha que ele (com quem já tinha um caso na época da relação com Nené). Ela, apaixonada, vende a casa em Coronel Vallejos, compra uma em Cosquín e transforma-a numa pensão, apenas para acolhê-lo, já que a família não tem mais condição de mantê-lo no sanatório.

Celina, irmã dele, vive com a mãe, nutre intenso despeito por Nené e não consegue se casar. Mantém relações com vários tipos de homens e torna-se falada por andar com caixeiros-viajantes. Ela julga Nené culpada pela doença e conseqüente morte do irmão, por isso planeja uma vingança. Quando Nené escreve à sua mãe, dando os pêsames pela morte de Juan Carlos, Celina responde como se fosse a destinatária e estimula a ex-cunhada a falar de sua vida. Depois manda as cartas, em que Nené fala que é infeliz no casamento e que desejaria outro homem, para o marido dela, provocando a separação.

Mabel é uma moça da sociedade, a mais bem situada financeiramente. Tem, entretanto, um comportamento ambíguo: além de se envolver efemeramente com Juan Carlos, namorado da amiga, tem vários noivados mal-sucedidos e vê seu pai perder os bens. Mesmo sendo uma professora respeitada e de quem não se duvida da conduta moral, recebe no seu quarto o suboficial, ex-pedreiro Pancho, um negro que, anos atrás, engravidou a empregada doméstica de sua casa, Rabanilda. A doméstica, numa noite de revolta, espera Pancho sair do quarto da patroa e o mata com uma faca de cozinha. Mabel articula toda uma história para a empregada dizer que agiu em legítima defesa, já que ela havia ido lá para “forçá-la a ter intimidades”. A moça aceita compactuar com a mentira por medo de nunca mais rever seu filho Panchito; é presa, mas logo sai da cadeia e se amasia com um vizinho viúvo com quem tem outros filhos. Depois dos tantos noivados frustrados, Mabel se casa com um “baixote” de Buenos Aires, onde passa a morar. Antes disso, ela visita Nené na capital Argentina e ambas falam de Juan Carlos, sobretudo da fama de seu desempenho sexual. Aí fica claro que Nené nunca ultrapassou as intimidades no portão de sua casa, pois não sabe que Juan Carlos enfeitiçava as mulheres porque tinha o sexo “superdotado”; já Mabel, pelas revelações, parece tê-lo conhecido muito bem, embora não o revele.

Nené, separada após o marido ler as revelações nas cartas à mãe de Juan, vai com os dois filhos a Cosquín conhecer a cidade em que Juan Carlos viveu. Visita a pensão da viúva Di Carlo a quem faz muitas perguntas. Após, estão outros relatos do tempo presente dos personagens vivos, que mostram Mabel já avó. Entre os finais, está o aviso da morte de Nené, aos 57 anos, reconciliada com o marido e entre seus dois filhos já adultos. A obra é finalizada com o Massa tentando se desfazer da correspondência de Nené e Juan Carlos, imaginando vários trechos das cartas.

A presença do Cinema e da Música

É constante a referência a filmes de cinema na vida das personagens, o que mostra a paixão do autor pelas telas sendo transferida para os seus seres fictícios. Mabel é assídua expectadora de longas e curtas metragens, e Rabanilda, embora de origem mais humilhe, sempre que pode vai ao cine local. Observem-se os comentários sobre os filmes que vêem:

“No vestíbulo decorado com mosaicos típicos, Mabel olhou os cartazes do filme anunciado e notou que os vestidos e roupas dos artistas davam de uma moda de pelo menos três anos atrás e comprovou, decepcionada, que os filmes americanos demoravam a chegar em Vallejos. Tratava-se de uma comédia de luxo, com cenários que a encantaram: amplos salões com escadarias de mármore negro e corrimão cromado, cadeiras de tafetá branco, cortinados de cetim também branco, tapetes espessos e brancos ... por onde se deslocavam uma formosa loura novaiorquina, datilógrafa,que seduz seu elegante patrão e, mediante armadilhas, obriga-o a divorciar-se de sua distinta esposa. (pp.68-9)”

“Raba pensou no filme argentino que havia visto na sexta-feira passada, com sua atriz-cantora favorita, a história de uma empregada de pensão que se apaixona por um pensionista, estudante de Direito” (p.79)

... [Raba] passou sozinha pelo Cine-Teatro Andaluz, o cartaz anunciava para o dia seguinte, nas Sextas-Feiras Populares, uma comédia argentina. Apesar de não passarem um filme com sua atriz-cantora favorita, iria ao cinema com a servente do prefeito municipal, todas as sextas-feiras, cinco centavos as damase dez os cavalheiros (pp.81-2)

...[Mabel] puxou as persianas, deixando penetrar apenas a luz necessária para ler os anúncios dos filmes publicados no jornal. Havia ar refrigerado no Cinema-Ópera: O lanceiro espião, com George Sanders e Dolores del Rio; o Gran Rex também era refrigerado: Por detrás dos bastidores, com duas atrizes suas preferidas , Katherine Hepburn e Ginger Rogers ... No Monumental, Três Argentinos em Paris, mas filmes nacionais só via em Vallejos. (p.127)

São várias as alusões, inclusive há a nominação de filmes e atores. Mabel até sonha encontrar os atores na vida real, cita os nomes de Robert Tylor e Tyrone Power. Outros, cujo enredo aparece parcialmente descrito, tanto podem ser filmes hollywoodianos como melodramas latino-americanos dos anos 30 e 40. O narrador dá poucas pistas. Não é como no Beijo da Mulher-Aranha, em que ele conta o filme todo e o leitor tem a referência exata.

Já a música, especificamente o tango, ritmo característico da Argentina, tem sua presença marcada no próprio título da obra, que foi retirado, como já comentamos, de um fox-trot musicado e gravado por Carlos Gardel, chamado “Rubias de New York” (A letra é de Alfredo Le Pera), como já dissemos. Em cada fascículo há, ainda, uma epígrafe retirada de letras de tango. Vejamos algumas:

“Era... para mi la vida entera...” (Alfredo Le Pera)
“Charlemos, la tarde es triste...” (Luis Rubinstein)
“Deliciosas criatura perfumadas,
Quiero el beso de sus boquitas pintadas” (Alfredo Le Pera)
“...sus ojos azules muy grandes se abrieron...” (Alfredo Le Pera)
“...dan envidia a lãs estrellas, yo no sé vivir sin ellas...” (Alfredo Le Pera)
“...Una lágrima asomada yo no pude contener...” (Alfredo Le Pera)
“...todo, todo se ilumina...” (Alfredo Le Pera)

O décimo primeiro capítulo da Parte II, que tem como epígrafe “se fue em silencio, sin um reproche / habia em sua alma tanta ansiedad...” (Alfredo Le Pera), mostra a rotina de Rabanilda em sua vida de empregada doméstica e seus pensamentos, em monólogo interior. Cada pensamento seu é seqüenciado por versos de letras de tango, como para completá-lo, ou para acompanhar seu ritmo de trabalho, já que as empregadas domésticas fazem suas atividades preferencialmente ouvindo rádio.

O estilo transgressor de Puig e seus diálogos

O estilo nada convencional de Puig deixa entrever a postura de um homem transgressor, que transfere para a literatura sua forma diferente de ver o mundo e de conceber a arte. Sua técnica narrativa desconstrói os modelos de texto literário, pois celebra a sentimentalidade, o derramamento, o lugar comum da linguagem, que rebaixaria o literário e reduziria seu texto ao folhetim barato. Primando pelo tão criticado “floreado”, ele parece ironizar as convenções ao valorizar propositadamente o discurso piegas e experimentar diferentes gêneros textuais, linguagens, fórmulas: aparecem, em suas obras, desde a revista de moda e seu correio sentimental, à carta de amor, o diário, anotações de agenda, trechos de novela de rádio, boletins de polícia, conversas ao telefone, dramas exagerados, paixões secretas, proibições, confissões sussurradas, numa linguagem de silêncio, ditos e interditos.

Sua produção literária é essencialmente de protesto. Perseguido em sua vida pessoal, fez de sua criação uma crítica perene. Com efeito, sua estética de desconstrução é um questionamento dos valores do cânone literário clássico; ele rompe com o modelo de romance tradicional em que se encontra um enredo com apresentação, complicação, clímax e desfecho, na camada da forma, como rompe com os padrões sociais que abonina, na camada do conteúdo. Fundo e forma caminham na mesma direção: a desmontagem dos modelos.

Na verdade, sua produção literária solicita uma leitura que leve em consideração o projeto literário nela entrevisto; há quem a critique, censurando-a pela falta de estilo, e quem considere essa “falta de” um estilo próprio. Seja como for, não há desatenção à própria elaboração do texto, ele parece fazer cinema nos livros, como se a tela virasse papel. Não se percebe uma concepção linear nem ingênua em relação à palavra, seu material de trabalho, ao contrário, nota-se a plena consciência do seu uso e de suas motivações.

O diálogo formal entre literatura e cinema não é novidade. Na prosa experimental brasileira de 22, Oswald de Andrade já fazia narrativas fragmentadas pelos cortes cinematográficos. O livro Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, (mas iniciado em 1914) já traz a simultânea multiplicidade de fatos para retratar, com ironia, a burguesia paulista dos primeiros anos do Séc. XX. Maria Eugênia Boaventura, em comentário sobre a obra, diz que Oswald, para “criticar bem humoradamente esse mundo provinciano e medíocre, pede auxílio à linguagem do cinema. Constrói uma narrativa fragmentária, aparentemente caótica, montada em 163 quadros como se fosse um filme”. Tal também ocorre com Serafim Ponte Grande (1933), também de Oswald, que considerava seu produto final como um “necrológico da burguesia”. A obra, segundo Maria Augusta Fonseca, mistura o canto satírico, épico, lírico e o romance de aventura. Nela, há um processo característico do cubismo: a colagem, a justaposição crítica de materiais diversos, o que em técnica cinematográfica parece equivaler, de certo modo, à montagem, como afirma Haroldo de Campos. A diversidade de gêneros textuais caracteriza ambas as obras, mas tem-se, a despeito de toda essa fragmentação, uma unidade na montagem do enredo.

Luiz Ruffato, em 2002, fez também uma obra completamente fragmentada, onde a simultaneidade dos fatos dá uma idéia do caos urbano, na perspectiva do coletivo e do individual. Diversos gêneros textuais se entrecruzam para assimilar, na diferença formal, a própria diversidade humana. Nesta obra, não há um fio condutor, um personagem ou um enredo que perpasse todas as narrativas. A protagonista é a cidade com seu ritmo nervoso e ininterrupto.

A obra de Puig se aproxima mais das de Oswald, no sentido formal. Em termos de enredo não há comparação. Claro, Puig prende-se ao universo dos jovens argentinos de classe média e seus valores deteriorados, seus romances inconseqüentes.

O Kitsch

Já no conto Ismênia, moça donzela, da coletânea Morte na praça, publicada em 1964 por Dalton Trevisan, encontramos não apenas a fragmentação, mas um exemplo perfeito do kitsch na literatura brasileira, característica quase sempre atribuída às obras do argentino. Como Puig, Trevisan, além de desconstruir os paradigmas de criação clássica, ironiza o cânone literário ocidental na Modernidade. De acordo com Arnaldo Franco Jr., “Os signos do mau gosto e do kitsch prestam-se, na poética de Trevisan, a uma perquirição sobre o lugar da arte e do artista no mundo contemporâneo, marcado sobremaneira pela reificação que, inclusive, apoderou-se, sob a forma cotidiana e sistemática das estratégias quase que onipresentes da indústria cultural e dos sistemas de simulação, de boa parte das estratégias e procedimentos antes característicos da contestação vanguardista identificada com o Modernismo”. De igual modo, Puig se coloca contra a tradição literária e utiliza intencionalmente o kitsch como forma de transgressão.

De fato, Boquinhas pintadas toma o kitsch como modelo inspirador o tempo todo; Puig o utiliza tanto para subverter os padrões estéticos, como para ironizar a sociedade emergente que se considera chique, jamais brega. No enredo há a marca da banalidade, os personagens agem como atores de melodrama, verdadeiros canastrões. No território da linguagem, vê-se tanto colocações rebarbativas como o uso de frases banais e clichês. Observe-se a linguagem utilizada na “Notícia aparecida no número de abril de 1947 da Revista mensal Nossos vizinhos, editada na localidade de Coronel Vallejos, província de Buenos Aires”:

“FALECIMENTO PRANTEADO... Com essa morte, desaparece do nosso convívio um elemento que, por suas qualidades de espírito e caráter, distinguiu-se sempre como um valor ponderável, possuidor de um acúmulo de atributos ou dons – que eram marca de sua figura simpática - atributos estes que destacam os possuidores deste inestimável caudal, para eles granjeando a admiração dos parentes ou estranhos.” (p11)

Logo nesse primeiro texto da obra, percebe-se a linguagem retórica, cheia de adjetivos elogiosos, completamente inadequada para um texto de revista popular. As considerações bajuladoras demonstram o hábito vulgar de enaltecer os homens mortos, como se, ao fechar os olhos, ficassem totalmente isentos dos defeitos que manisfestaram em vida.

Em contrapartida à formalidade retórica que na pós modernidade ressumbra ridícula, há a presença também da banalidade nas cartas que Nené escreve a Dona Leonor, marcadas por clichês e frases feitas:

... essa notícia tão triste fez com que eu me decidisse a escrever-lhe algumas linhas (p.12)
Bem, Dona Leonor, fico aqui desejando que estas linhas a encontrem mais recuperada. (p.16)

Querida Dona Leonor. Espero que estas linhas a encontrem com saúde na companhia dos seus. (p.32

O discurso das cartas de Juan Carlos a Nenê, por sua vez, traz exagero no romantismo, no excesso de sentimentalidade que soa como falso. O lugar-comum torna-se matéria prima fundamental de sua linguagem. As cartas de amor, que constituem a maior parte dos textos da obra, documentam a relação apaixonada do casal de namorados, mas, principalmente, relatam a representação de um jogo amoroso que não dá em nada:

Tenho certeza de que não se lembra mais deste que lhe escreve... Quem me dera ser travesseiro para estar perto de ti. Bolsa d’água para esquentar os pés, melhor não, pois eles podem estar sujos, prefiro ser travesseiro. (pp.97-8)

Boneca, o papel está acabando, e nada mais te conto a respeito daqui... Te beija até que digas basta, ....(p99)

... você está sã... você é dura, você é como o diamante que se usa nas vidraçarias para cortar o vidro, embora os diamantes sejam sem cor como um copo sem vinho, melhor dizer que você é cheinha de vinho, vermelhinha como um rubi, minha vida. (p.103)

Como vamos ser felizes, rubi, vou beber todo o vinhozinho que você tem dentro de você, e vou tomar um pilequeinho dos bons, um pilequinho alegre, total... (p105)

Ironicamente, as cartas de Juan Carlos são corrigidas por um professor (também internado na Clínica de Cosquín): Como de hábito, entrega os rascunhos, mas com uma variante: mais que a correção ortográfica, solicita ajuda para redigir a carta em questão. Sua intenção é enviar uma carta de amor muito bem escrita e seu pedido é acolhido com entusiasmo. Imediatamente o professor lhe sugere escrever uma carta comparendo a moça ao Láteo, e lhe explica detalhadamente que se trata de um rio mitológico situado na saída do pugatório, onde as almas purificadas se banham para apagar as más lembranças antes de empreenderem o vôo para o paraíso” . O jovem ri brincalhão e rechaça a sugestão por considerá-la muito fantasiosa. (p.110)

Note-se a ironia do romantismo na primeira citação, quando o namorado se propõe a ser uma bolsa d’água para esquentar os pés da amada e, imediatamene, retira o desejo, por receios de que os pés dela estejam sujos. Ele, além de desejar ser o travesseiro da moça, compra-a a pedras preciosas como diamante e rubi e diz querer beber todo o vinho que ela carrega dentro do seu corpo, como se o sangue dela fosse feito de vinho. Recusa-se, entretanto a compará-la ao láteo, pelo sentido de morte que o rio evoca. Ele percebe a ironia do professor que o acusa de estar enganando a moça.

Essa estética “purpuridada”, como a denominam alguns críticos, visa muitas vezes ao mercado comercial, ao simplesmente decorativo ou pode decorrer simplesmente de mau gosto. Nenhuma dessas possibilidades se aplica ao modelo de Puig, para quem o floreado, a linguagem retórica e o viés folhetinesco são intencionais e constituem, insistimos, uma forma de desconstrução dos padrões literários. É a sua forma de colocar-se contra qualquer tipo de convenção, impondo um estilo irreverente e irônico. O uso do kitsch é, pois, uma estratégia de relativização tanto dos valores do sistema literário, que a obra subverte, quanto para ironizar a antípoda da vida: a sociedade sem moral, que o condena pela recusa ao uso de máscaras.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Oswald. Serafim Ponte Grande. 6ª ed. São Paulo, Globo, 1997
____________. Memórias sentimentais de João Miramar . 14. ed. São Paulo: Globo, 2001
CAMPOS, Haroldo de. “Miramar na Mira” In: Memórias sentimentais de João Miramar . 14. ed. São Paulo: Globo, 2001. pp.5-33
FONSECA, Maria Augusta. “ Orelha” In: Serafim Ponte Grande. 6ª ed. São Paulo, Globo, 1997
FRANCO JR., Arnaldo. “Kitsch, repetição e desconstrução dos paradigmas modernistas no conto Ismênia, moça donzela, de Dalton Trevisan”. Disponível em: http://www.ppg.uem.br/docs/ctf/Humanas/2002/09_234_01_Arnaldo%20Junior_Kitsch%20Resumo.pdf
MOLES, Abraham. O Kitsch. 5ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001
PUIG, Manuel. Boquinhas Pintadas. 2ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. Trad. Joel Silveira
RUFFATO, Luiz. Eles eram muito cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001
TREVISAN, D. Ismênia, moça donzela; A volta do filho
pródigo. In: Morte na praça. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975, p. 45-50; p. 93-103.

http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_IC/index.cfm?fuseaction=termos_texto&cd_verbete=3798

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