quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Apresentação do livro Detalhes do Tempo, de Manoel César




Foi com muita alegria que aceitei o convite para apresentar o novo livro de poemas do Manoel César, porque entendo que só se convida alguém para ser madrinha de um filho quando há irmandade de sonhos. Ao sorver página a página a sua poesia, senti sua alma de pássaro, sua ânsia de voo que se concretiza nas palavras, pelas palavras, suas companheiras e confidentes, e entendi que só nos completamos no outro. Não há poesia sem leitor. Irmã de viagens oníricas pelo território das letras, me coloco agora diante desse Manoel e de todos vocês, como porta-voz dessa poética, para partilhar as impressões que me foram deixadas pela leitura de fiz. Não há sedas para serem rasgadas, tampouco rendas para adornar. Há o meu olhar atento vasculhando desvãos e entrelinhas.

DETALHES DO TEMPO é uma coletânea que agrega poemas de três livros anteriores do poeta – A poesia ainda existe, Sintagmas da solidão e Mágicas palavras – a peças inéditas. Embora sua última publicação tenha sido feita em 1988, ou seja, há 22 anos, não se pode dizer que sua poesia é sazonal. Vê-se um continuum em seus versos, a nos dizer que sua criação é perene, despreocupada com padrões ou rótulos, mas cheia de ilações filosóficas que traduzem sua inquietação diante do mundo em que vive. Sazonal é seu desejo de publicar, mas esse é apenas mais um detalhe do tempo, que ele faz questão de explorar.

Sua reverência a poetas como Mário Quintana, Álvares de Azevedo, Manuel Bandeira, Vinícius de Morais, Francisco Carvalho, Cecília Meireles, Patativa do Assaré, Florbela Espanca, Cassiano Ricardo, Jáder de Carvalho, entre outros, atesta sua vivência com o lirismo e sua facilidade de engendrar artimanhas para atravessar textos com seus olhos sensíveis. Sobretudo na parte do “Canto aos amigos de fé”, ele saúda os poetas por meio de versos que incorporam o estilo de cada um, lançando mão do recurso da intertextualidade para revelá-los e sorver-lhe a liberdade criadora que inspira sua poética. Ao brincar de enconde-esconde com a vida, ele joga com as palavras e diz: “Minha casa tem tristeza / tristeza sem par / as aves aqui não cantam / mas a solidão / me dá lições de voar”, reverenciando Gonçalves Dias ao parodiar sua decantada Canção do exílio.

Sua poesia constrói-se essencialmente nos alicerces de duas fontes inspiradoras: o silêncio e a solidão. Não se pense, entretanto, que sob a pele das palavras que desnudam sua alma há amargura ou morbidez. A saudade que emana de sua solidão é um canto ao passado bem vivido, mas inexorável, é um diálogo com o tempo transcorrido, na tentativa de reviver a infância; ele passeia por cidades, ruas e praças redivivas em sua lembrança. Cantar a solidão é seu modo “desafogar o coração” para “suplantar a dor existencial de ser”. Em vez de algoz, ele a considera solidária do silêncio, tal como seu afeto e sua ternura. Estar só, para o poeta, é povoar-se de silêncio para encontrar, no seu íntimo, a poesia buscada no “instante / na emoção relâmpado”.
Ele brinca num exercício metalinguístico: Minha solidão / se reduz a dois versos livres... / e eu insisti tanto para que tu entendesses a poesia moderna (p.23). A reflexão metalinguística é uma constante, o que mostra sua consciência estética no processo criador que não se restringe à pura inspiração: No mundo restrito / da minha palavra / um poema é assassinado / pela ponta da minha / esfero / gráfica.

Ele pratica os versos curtos e livres, elaborando uma poesia sintética, mas prenhe de sentidos. Brinca com as palavras, retomando características da poesia concreta e da neoconcreta, como a mostrar que acompanha a travessia das experiências estéticas do poema, sem, entretanto, deixá-lo mudo às inquietações da existência, como a passagem inevitável do tempo, o medo da velhice, a morte e a violência. Nessa fusão de silêncio e solidão, vertentes incontestáveis de sua criação, ele canta todas as dores que lhe perpassam: “Em silêncio / as plantas crescem / na solidão das madrugadas / minha angústia aumenta mais / que suas raízes / que crescem sem saber / da violência deste (i)mundo” (p.117). Sua confiança no tempo revela-se sua aliada: “Vou ler e chorar / chorar e ler / o tempo vai passar / e vou voltar a viver”, e faz sua poética de solidão e angústia também uma poética de esperança, jamais de desilusão. Há no homem, um menino que não morre nunca, como se lê em seu “Poeminha de natal”: O tempo passa... / mas todo ano / ainda penso / Que Papai Noel / vem me visitar / presenteando-me / com um passeio / de volta à infância” (p.239).

Na parte VI da seleção de sua primeira obra – A poesia ainda existe -, a preocupação social se avulta em elocubrações como: “A história de João / não é feita de histórias / e sim de salário mínimo”, onde se entrevê um sopro de Ferreira Gullar com sua poesia neoconcreta. A denúncia contra a indiferença “ao caminhar das formiguinhas” e sua revolta diante das desigualdades denotam o compromisso do homem com a sociedade em que vive. O enterro de um catador de lixo, morto de dengue por descaso médico, a fome do homem do sertão, a miséria do mundo e a falta de paz são leitmotivs constantes de sua criação.

Já em “Íntimo da solidão do silêncio”, ele canta sua musa, o amor sensual, vivido: “Quando sinto / todo aquele mundo / encantador e misterioso / que escondes sob o vestido / sinto que a vida / vale a dor de ser vivida”. O amor, a mulher, os amigos, os poetas, o silêncio e a solidão parecem povoar seu imaginário e sedimentar seu processo criador, seu estar no mundo. A observação e a memória dialogam permanentemente em seu olhar atento para o ‘lá dentro’ das coisas.

Mas não nos esqueçamos de que toda poesia é cilada. Se revela e desvela o poeta, também engana. Leitor de Pessoa, Manoel sabe que o poeta é um fingidor, finge até as suas verdades: “Nunca pense / na razão direta / do que meu poema diz / estou sempre no avesso”. Desvendar a alma de um poeta não é simplesmente ler sua poesia, mas compreender a redescoberta da vida pela palavra. Assim, o poeta é esperança, a despeito dos revezes. Aprendeu a amar a vida “pelo silêncio e pela solidão que ela o concede”, fazendo suas as palavras de Cecília Meireles: “a vida só é possível reinventada”. Eu vou mais longe, Manuel: Só quem conhece os detalhes do tempo pode reinventar a vida e reinventar-se. Sua poesia nos dá essa lição.

Aíla Sampaio – 09/06/2010

Um comentário:

Quem sou eu? disse...

Obrigado, fiquei encantado com as palavras da poeta, que foi muito além do que pretendi deixar transparecer em meus versos.Realmente, Cassiano Ricardo
traduziu muito bem a essância d poesia quando disse: O poetá detém a arte ingovernável da palavra".]beijos do Manoel César