quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A PAISAGEM SOCIAL E HUMANA DE RAQUEL DE QUEIROZ




Na véspera do aniversário de 100 anos de nascimento da escritora Rachel de Queiroz, não se pode deixar de falar dela, sobretudo na terra em que ela nasceu e que fez cenário de várias das suas obras. A Bienal, ocorrida em abril, teve o seu nome como estro principal, com várias mesas e eventos sobre as suas obras. A TVC, no próximo dia 17, presta-lhe justa homenagem com a estreia da minissérie “1915 - O ano em que a terra queimou”, com 20 capítulos (de 5 minutos) baseados no romance O Quinze. Nesta edição, fazemos um percurso por sua produção literária, focalizando sua história e, sobretudo, seus três mais conhecidos romances: O Quinze, Dôra, Doralina e Memorial de Maria Moura.

RAQUEL E SEUS PRIMEIROS PASSOS

A menina que nasceu em Fortaleza, no dia 17 de novembro de 1910, começou a escrever muito cedo, certamente influenciada pelas muitas leituras que fazia na biblioteca de seu pai. À frente do seu tempo, driblou o preconceito contra as mulheres e, reservada sob o pseudônimo de Rita de Queluz, começou a publicar no Jornal "O Ceará", em 1927. Primeiramente, enviou uma carta ironizando o concurso "Rainha dos Estudantes", promovido pelo jornal. O diretor do veículo, Júlio Ibiapina, amigo de seu pai, surpreendeu-se com o sucesso da carta e a convidou para ser colaboradora. Entre outros textos, ela publicou o folhetim "História de um nome" — sobre as várias encarnações ‘de uma tal Rachel’ e organizou a página de literatura do jornal, o que lhe deu experiência e a fez respeitada num mundinho dominado pelos homens.
Depois de morar no Rio de Janeiro e em Belém do Pará, voltou com a família para Quixadá, onde exercitou suas leituras e plantou suas raízes. Formou-se professora aos 15 anos. Antes de completar os 20, convalescendo de uma congestão pulmonar na fazenda Não me deixes, ela escreveu o romance O Quinze, cujo título já explicita que o enredo remete a acontecimentos do ano 15 do século XX, quando o nordeste viveu uma avassaladora seca. Filha de fazendeiros, ela, criança, assistiu à procissão de retirantes passar à sua porta; viu-os esquálidos, famintos, mendigando comida, e guardou-os no arquivo da memória para transformá-los, anos depois, em seres de papel.
Lançando-se no cenário nacional em 1930, em plena efusão do romance moderno nordestino, ela encontrou espaço e fixou seu nome no regionalismo brasileiro, colocando-se ao lado de José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, seus contemporâneos e autores de romances igualmente emblemáticos sobre a seca: A Bagaceira e Vidas Secas.

Após o fim do seu primeiro casamento e a perda de sua única filha, seguiu para o Rio de Janeiro, onde se casou pela segunda vez e desempenhou atividades como jornalista, romancista, tradutora, cronista e teatróloga. Em 1977, foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras. Fixou residência fora do Ceará, mas nunca esqueceu sua terra, que ela fez questão de eternizar nos enredos de suas obras ficcionais.

Após o livro de estreia, publicou, em 1932, o romance João Miguel, a que se seguiram: Caminho de pedras (1937), As três Marias (1939), O galo de ouro (1950) e Memorial de Maria Moura (1992). Escreveu também as peças de teatro Lampião (1953), e A beata Maria do Egito (1958); os volumes de crônicas A donzela e a moura torta (1948), Cem crônicas escolhidas (1958), O caçador de Tatu (1967) e Mapinguari (1964-1976); e os livros infantis O menino mágico (1969), Cafute Pena-de-Prata (1986) e Andira (1992).

No dia 4 de novembro de 2003, enquanto dormia em sua rede, no seu apartamento carioca, deixou a vida. Esse símbolo de sua nordestinidade a acompanhou até o fim, pois, a pedido seu, o féretro que conduziu seu corpo foi forrado com uma rede, não dando, pois, por encerrado, seu amor às suas raízes.

A EXPERIÊNCIA DA FOME EM O QUINZE

O Quinze, publicado em 1930, tem no enredo a paisagem social e humana de um nordeste massacrado pela seca. O drama de retirantes como Chico Bento, Cordulina e filhos é o foco principal, mas outras questões submergem, como a situação da mulher na sociedade do início do século XIX. Conceição rompe com o modelo estabelecido para o sexo feminino, quando renuncia, a despeito do contexto adverso de sua época, ao destino de toda mulher sua contemporânea: o casamento e a maternidade.

O enredo, considerado por Bosi (1997, p.447) como neo-realista, é estruturado em dois planos: o drama do vaqueiro Chico Bento e sua família retirante; e a relação afetiva de Conceição, professora culta, de família tradicional, e Vicente, que, embora seu primo, é um rude proprietário de terras e criador de gado. Embora haja essas duas linhas condutoras da história, com personagens relevantes, a protagonista é a própria seca, responsável por todo o desenrolar das ações.

A narrativa investe na oralidade, demonstrando que o ciclo ficcional é brasileiro na base das fundações (ADONIAS apud COUTINHO, 1996, p. 277). É, também, psicológica, pois, na medida em que informa as ações dos personagens, expõe interrogações e dúvidas sobre o que poderia ter passado pela cabeça deles. Assim, o leitor convive com os fatos e com sua repercussão nos seres que os vivenciam.

A fome decorrente da seca é a grande vilã da história que tece o percurso trágico do vaqueiro, de sua mulher e seus filhos. Em função da falta de trabalho, a família é obrigada a imigrar para a cidade grande em busca de sobrevivência. A partir daí, se dá a tragicidade do destino: eles buscam sobrevivência, mas o que encontram é uma saga de dores e perdas, pois, as consequências da marcha são piores do que as já vivenciadas na região seca. De fato, ao deixarem a fazenda onde sempre viveram, deixam o habitat natural e suas raízes, com pouco dinheiro e muita esperança de chegar ao Norte, onde pensam conseguir emprego na extração da borracha.

Outra perda é a da dignidade, que, para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas na sua conduta, no exemplo que transmite os valores morais aos filhos, por mais humilde que ele seja. Chico Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata uma cabra que encontra pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais alto, e ele esfacela o animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se apropriar do alheio. O dono da caba aparece e, além de tomar-lhe a carne, chama-o de ladrão, humilha-o, sem querer ouvir justificativas. Dá-lhes apenas as tripas para saciarem a fome, nivelando-os, pois, aos bichos que comem vísceras jogadas no lixo: “Chico Bento perto olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados. - Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado! (...) - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com fome! - Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!” (QUEIROZ, 1930, p. 68-69).

Talvez a tragédia maior esteja no esfacelamento da família inicialmente composta de sete membros. O menino Josias, de 10 anos, num momento de fome, comeu mandioca crua, envenenando-se. Agonizou em morte lenta, sem que nada se pudesse fazer para aliviá-lo: "Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz" (QUEIROZ, 1930, p. 42).

Pedro, o mais velho, de 12 anos, à revelia dos pais, fugiu com comboeiros de cachaça, quando entraram na cidade de Acarape: "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?".
Chico Bento chega ao Campo de Concentração, em Fortaleza, apenas em companhia de Cordulina, sua mulher, e dos outros três filhos. O objetivo é conseguir uma passagem para o norte. Conceição, neta da fazendeira que era patroa do casal, os encontra em meio à multidão de famintos; depois de ajudá-los, arranjando uma passagem de navio para que eles viajem para São Paulo, a moça fica com o menino mais novo, Duquinha, de 2 anos, que está doente e é seu afilhado. Os dois – Chico e Cordulina - viajam em companhia dos dois filhos restantes, cuja identidade sequer é mencionada.

A fome é o elemento desencadeador do trágico, das perdas: A pobre Cordulina fica sem três dos seus filhos, chora durante dias, mas ainda tem ânimo para tentar a vida em São Paulo, eldorado dos retirantes nordestinos. Ela personifica a mulher submissa, sem instrução, que sofre, mas mantém a vida atrelada à do marido. Alienada, vive as dores calada, entregando à sorte o seu fado. Chico Bento é o tradicional vaqueiro pobre que vive a cuidar do que pertence a outros. Nada tem de seu para oferecer à família, senão a miséria do próprio destino. Para ele, a perda dos filhos não constitui tragédia, mas uma contingência. Vejamos a fala dele: “- Minha comadre, quando eu saí do meu canto era determinado a me embarcar para o norte. Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desanimou e pegou numa choradeira todo dia, com medo de perder o resto... Eu queria primeiro que a senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me arranjasse umas passagenzinhas pro vapor. Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o dia, ou quando Deus Nosso Senhor é servido de tirar..”. (QUEIROZ, 1930, p. 107).

A experiência da fome, embora coloque o homem em condição animalesca, não retira de Chico Bento os princípios arraigados. Leia-se a passagem em que ele encontra companheiros retirantes em situação de total miséria: “Um dos homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus” (QUEIROZ, 1930, p.42-43). Chico encarna a figura do homem nordestino, que pode se conformar com as dores da perda de entes queridos – cuja designação atibui a Deus -, mas nunca com a perda da dignidade. Ele não perde a sua generosidade, a sua capacidade de ver o outro como um ser humano.

Diante da cena, ele reparte os alimentos que leva para matar a fome da família, e não recua ante as indagações de sua mulher: “- Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e Florência no altruísmo singelo do vaqueiro se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haveria de deixar esses desgraçados roerem osso podre...” (QUEIROZ, 1930, p. 43).

Embora não haja, na história, a divisão clichê de "pessoas pobres e boas" e de "pessoas ricas e más", há a denúncia da corrupção, mostrando que existem os que se aproveitam da desgraça dos outros para levar vantagem: “- Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O propósito é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais...” (QUEIROZ, 1930, p. 33). Chico, entretanto, mesmo se revoltando, não permite que a miséria abale sua generosidade nem sua fé. As adversidades não retiram dele a esperança de dias melhores: parte num vapor sem pensar no passado, mas vislumbrando tão somente o futuro.


OS ROMANCES E AS MUITAS HISTÓRIAS

O segundo romance de Raquel é o mais social e político de todos, Caminho de Pedras, publicado em 1937, cuja trama transcorre no início do Estado Novo do ditador Getúlio Vargas. Paralela à luta política dos militantes, tem-se a história de Noemi, que deixa o marido, o ex-comunista João Jaques, por conta de uma paixão proibida, e se permite fazer suas próprias escolhas, enfrentando todos os percalços que a vida lhe irá impor, inclusive a perda de um filho ainda criança. Assume a luta política de seu segundo marido, Roberto, preso político e, no final, ainda idealista, grávida, torna-se símbolo da participação feminina na vida pública e sinal de esperança pela vida que cresce em seu ventre. São nítidas as críticas e as denúncias ao Integralismo e ao autoritarismo do Estado Novo de Getúlio Vargas.
Já João Miguel tem como cenário o presídio de uma cidade do interior nordestino e, como protagonista, um homem simples: João Miguel. Alcoolizado, ele comete inesperadamente um crime e é logo preso; toda a sua história transcorre dentro do presídio, onde recebe a visita de Santa, companheira que o abandona por um cabo. Lá também está recluso o coronel Nonato, criminoso de outra classe social, preso somente pro ser da oposição política. A cadeia é um espaço circunstancial que se coaduna perfeitamente com a ação. O relato apresenta, predominantemente, os conflitos pessoais de João atrás das grades e finda com a sua liberdade e a falta de rumo depois de tanto tempo encarcerado.

Essa obra foi motivo de desentendimento entre Raquel e membros do Partido Comunista a que ela era filiada, na época, já que eles não admitiam que o personagem assassino fosse um homem do povo. A escritora, sentindo cerceado o seu processo criador, rompeu com o partido e não modificou o enredo conforme fora orientada por eles.
As três Marias, romance de formação, focaliza, inicialmente, a vida de três moças num internato feminino de orientação católica: Maria Augusta, Maria José e Maria da Glória. É Maria Augusta (Guta) quem narra a história, os dramas e medos de cada uma. Fora do colégio, ela vive a adaptação ao mundo exterior, não se acostuma à vida e em casa, com a madrasta metódica, e se lança às duras experiências que a levam à maturidade como pessoa e como mulher. Afloram questões sociais e evidencia-se a análise psicológica dos personagens.
Maria Augusta (Guta) representa a inquietação da mulher em busca de seu espaço, de sua identidade. Enquanto Maria da Glória se dedica à família e Maria José se volta para a religião, ela se lança na vida, e, após relacionamentos amorosos mal sucedidos e um aborto, continua seus destino num processo sofrido de ajustamento ao mundo.

O galo de ouro foi publicado em folhetins na revista O Cruzeiro, em 1950, e editado como romance no ano de 1985. A ação, ambientada na Ilha do Governador, é diversa das dos demais: em todos os quarenta capítulos, convive-se com o submundo carioca de terreiros de macumba, mães de santo, bicheiros e policiais, o que, afinal, traça uma realidade tão áspera como a do chão nordestino que a escritora privilegia em suas tramas.

DÔRA E SEU PERCURSO DE DORES

Em 1975, Rachel publicou Dôra, Doralina, cuja ambientação inicial é o interior do Ceará, precisamente a fazenda Soledade, localizada em um município fictício denominado Aroeiras. Dividida em três partes, Livro de Senhora, Livro da Companhia e Livro do Comandante, a saga de Maria das Dores, ou Dôra, como prefere ser chamada, se desloca da fazenda Soledade para Fortaleza, depois para o Rio de Janeiro, fechando o ciclo ao retornar, no final, à fazenda. A história de dores e perdas é contada pela protagonista que, inicialmente frágil e dependente, torna-se uma mulher livre, emancipada, até apaixonar-se pelo Comandante de um navio, a quem se submete por opção e amor.

Dôra é uma personagem marcada pala dor. Perde o pai muito criança e é criada pela mãe – uma mulher dominadora, seca, que em vez do amor maternal lhe oferece a indiferença. Elas não se amam, mal se suportam numa competitividade pouco natural. Dôra talvez desejasse ter a força da mãe; ela a admira, acha-a robusta, rosada, enquanto se sente “um fiapo de gente” e tem, em casa, a posição de uma hóspede. Do outro lado, Senhora, quem sabe, desejasse a juventude da filha; não queria dividir com ela sequer as recordações do marido. Firmava-se numa postura de superioridade como se Dôra, por ser a mais nova e igualmente dona da fazenda, ameaçasse a sua posição.

Laurindo escolheu Dôra para casar-se pela idade e, principalmente, como diziam as más línguas de Aroeiras, porque, escolhendo Senhora, ele teria direito apenas a um pedaço daquela terra. Mas era Senhora, imediatamente, a dona do poder e, por isso, ele precisava ter as duas. Senhora aceitava, porque lhe era cômodo; tinha o seu homem, que era o homem da sua filha, com quem sempre parecia competir, mas permanecia com a sua liberdade e não perdia a proteção do título de viúva. Mas Dôra sabia que merecia mais do que aquele amor de conveniência; casou-se com ele por falta de opção, para mostrar à mãe que existia quem a desejasse. O casamento, entretanto, foi uma decepção; sequer o filho que geraram chegou a nascer.
É a decepção que dá impulso para que Dôra lute e consiga a sua liberdade. A Companhia de Teatro foi o passo seguro para a sua independência. Deseja um amor e não qualquer um, como o daqueles homens que se aventura a conhecer. Sabe conviver com o espírito malandro de Seu Brandini, sem que isso a incomode; torna-se atriz, enfrentando as adversidades da profissão, e não perde a sua essência de mulher correta, com princípios bem definidos, embora não queira se ater a nenhum questionamento a respeito do certo e do errado. A fase da Companhia é de liberdade e aprendizagem. O passado permanece como uma pontada bem do lado, que ela vai driblando sem anestesia.

Com o Comandante, Dôra abre mão da independência conquistada em nome do amor. A moça que enfrentava a altivez de Senhora e que não se submetia aos desmandos do primeiro marido, renuncia à profissão que confessadamente lhe agradava e se entrega de corpo e alma a um homem machista, contraventor, com vícios e ímpetos de violência. Ela cala, mas o seu silêncio é expressivo, conveniente. Ele lhe deu o amor que o pai não pode dar e que fez tanta falta, o mesmo amor que a mãe e o primeiro marido lhe negaram. Dôra jogou tudo para o alto, porque todo o resto ficava pequeno diante da sensação de amar com loucura e ser correspondida. Ela não se despersonalizou, porque soube pesar bem os seus desejos e, se cedeu, foi por ser forte. Se ela se tornou submissa e passiva, foi conscientemente.

Com a perda definitiva desse amor, uma metade foi extraviada. Mas ela não foi destruída; doeu tanto que ficou dormente. A sua chance de se reedificar foi no reencontro de suas raízes, foi assumindo o lugar que Senhora lhe tirou, enquanto viva. Reconstruindo a fazenda, ela tomou posse do condado de sua mãe e passou a ter a posição que outrora, inconscientemente, ambicionou. Só, mas com a certeza de ter-se dado a chance de conhecer a vida e o amor verdadeiro. Ela é a própria personificação da dor, porque a conheceu na carne; sobretudo porque viveu e, como dizia o Comandante, “a vida é toda um doer”.

MARIA MOURA – SÍNTESE DAS PERSONAGENS FEMININAS

Memorial de Maria Moura, a última criação ficcional de Raquel, surgiu em 1992,e trouxe uma trama ambientada no sertão, em meados de 1850, protagonizada por Maria Moura, a menina explorada sexualmente pelo padrasto que se transforma na líder de um bando, obstinada por construir seu império.

Sobre o processo criador, a própria autora declarou: “Eu estava fazendo um trabalho com minha irmã Maria Luíza sobre a seca do Nordeste. Fomos procurar livros antigos e descobrimos que a primeira grande seca registrada oficialmente aconteceu em Pernambuco em 1602. Nessa seca, uma mulher chamada Maria de Oliveira tornou-se conhecida, porque, juntamente com os filhos e uns cabras, saiu assaltando fazendas. Pois eu fiquei com essa mulher na cabeça. Uma mulher que saía com os filhos e um bando de homens assaltando fazendas era a Lampiona da época, pensei. Ao mesmo tempo, eu sempre admirei muito a Rainha Elisabeth I da Inglaterra, que morreu no início do século XVII. Li várias biografias dela, a ponto de me sentir uma espécie de amiga íntima, dessas que conhecem todos os pensamentos e sofrimentos. A certa altura, pensei: ‘Essas mulheres se parecem de algum modo’. E comecei a misturar as duas. Estava pronto o esqueleto do romance. A partir daí fui desenvolvendo os episódios”.

O livro tem narrativa polifônica: ora fala a personagem Marialva, ora o Beato Romano, Padre José Maria, Irineu e Tonho, ora Marialva; na maioria das vezes, a própria Moura conta sua saga ao leitor. A participação desses diversos narradores rompe a linearidade do enredo e faz com que se misturem as forças e as fraquezas, as virtudes e os defeitos, traçando um painel humano que obedece apenas à lei da sobrevivência, mesmo que isso implique a renúncia aos valores padronizados pela religião e pela sociedade.

Nas primeiras páginas, o leitor se depara com três núcleos que configuram histórias distintas que vão se entrelaçando: o de Maria Moura, dos primos inimigos dela e o do Padre José Maria (Beato Romão). Depois, surgem Marialva, Valentim e sua família. A narração dos últimos capítulos é feita por Moura e pelo Beato.

Maria Moura, depois de conquistar sua independência e seu poder de fogo na casa grande que constrói na Serra dos padres, conhece o amor, mas, ao ter que optar entre ele e sua fortaleza, decide por eliminá-lo. Cirino despertou seu coração, mas traiu sua confiança e ela não pôde perdoá-lo. Chorou furiosa, mas não abriu mão de sua hegemonia, embora admitisse estar apaixonada: O meu mal era aquela grande fraqueza por ele que eu sentia. Eu gostava de comigo chamar aquilo de amor. Mas não era amor, era pior. Não era cio(...) E eu me imaginando tão forte, tão braba. Era afronta - Era para acabar comigo(...) aquele coisinha ruim(...) solapar os alicerces do meu castelo! (...) por amor dos trinta dinheiro de Judas! E eu adorar um desgraçado desses, abri para ele o meu quarto, a minha cama, o meu corpo. Foi humilhação demais. Se ainda soubesse rezar, rezava, tão desesperada me sentia. (...) Como é que vou acabar com o Cirino, sem acabar comigo?(...) Como posso arrancar o coração para fora? Ninguém pode fazer isso e continuar vivo. E se me matasse com ele?(...) Não. Eu quero morrer na minha grandeza. Manda matá-lo, mas, a partir daí, já não encontra motivo para viver. Lança-se numa aventura praticamente suicida.

A Rachel de tantas faces, a do teatro, a da crônica, a de literatura e a do romance, é uma só: a menina que terminou Conceição quando, na madura idade, fez Maria Moura; é a mulher nordestina que celebrou sua terra, mas que teve como chão perene, na verdade, a condição humana. Rachel de Queiroz atingiu, com a criação de Dôra, a plenitude da personagem feminina iniciada em Conceição (protagonista de O Quinze) e finalizada em Maria Moura (protagonista do Memorial de Maria Moura), como afirmou Lourdinha L. Barbosa (1999). Suas personagens são tão fortes, tão frágeis, tão “humanas” como todas as grandes mulheres do mundo.

BIBLOGRAFIA PARA CONSULTA

BARBOSA, Maria de Lourdes Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: Caminhos e descaminhos. São Paulo: Pontes, 1999.
BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil.
São Paulo: Global Editora, 1996.
QUEIROZ, Rachel de. Dôra, Doralina. 18a. ed. São Paulo: Siciliano, 1992
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1930.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.



Aíla Sampaio – Professora da Unifor - E-mail: ailasampaio@unifor.br

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