segunda-feira, 7 de abril de 2014

A EXPERIÊNCIA DA FOME NO ROMANCE O QUINZE, DE RACHEL DE QUEIROZ






Eu perguntei-ei a Deus do céu, ai
Pru que tamanha judiação?!
(Asa Branca – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)


Aíla Sampaio – Mestra em Letras, Professora da Unifor, onde é editora da Revista de Humanidades. E-mail: ailasampaio@unifor.br

RESUMO

A seca é uma das maiores catástrofes vividas pelo povo nordestino, que se resigna a sair da sua terra natal para aventurar-se em outro espaço que lhe possibilite ter as mínimas condições de sobrevivência. Muitas vezes, essa busca resulta em tragédias que repercutem definitivamente na vida dos retirantes que encontram, em vez de solução para o problema da fome e da miséria, perdas irreparáveis. O romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, traz a cena a seca de 1915 e mostra, por meio dos personagens Chico Bento e Cordulina, o drama das famílias que imigram para as capitais, buscando uma forma digna de vida e experimentam, além da sensação de exílio, as dores advindas da perda de familiares, da dissolução involuntária de parte da família e, sobretudo, a perda da dignidade humana. A obra enfoca, ainda, a corrupção advinda da mentalidade de que a seca propicia uma forma de desvio de verbas e, em contrapartida, a honestidade, a fé e a esperança do povo sofrido que luta apenas por uma forma lícita de sobrevida. 

PALAVRAS-CHAVE: Fome. Miséria. Seca. Tragédia.

ABSTRACT

Drought is one of the biggest disasters experienced by the people of Northeastern, who resigned to leaving their homeland to embark on another space that allows it to have the minimum conditions for survival. Often, that search results in tragedies that definitely impact the lives of refugees who find, instead of resolving the problem of hunger and misery, irreparable losses. The novel O Quinze, Rachel de Queiroz, brings the scene of the drought in 1915 and shows through the characters and Cordulina Chico Bento, the plight of families who migrate to the capital, seeking a dignified way of life and experience, in addition to sense of exile, the pain coming from the loss of relatives, the involuntary dissolution of the family and especially the loss of human dignity. The work focuses also the corruption coming from the mentality of the drought provides a form of embezzlement and, conversely, honesty, faith and hope of suffering people who fight only for a lawful way of survival.

KEYWORDS: Hunger. Misery. Drought. Tragedy.


INTRUDUÇÃO

No ano de centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz, não se pode deixar passar a oportunidade de falar dela, quando o assunto é a fome. Não exatamente dela, que era criança quando ocorreu a seca de 1915, mas da obra que ela construiu em cima das reminiscências, da visitação ao arquivo da memória. Filha de fazendeiros, ela, menina, assistiu à procissão de retirantes passar à sua porta; viu-os esquálidos, famintos, mendigar um pedaço de pão em cada porta.

Antes de completar 20 anos, escreveu o romance O Quinze, cujo título já explicita que o enredo remete a acontecimentos do ano 15 do século XX, quando o nordeste viveu uma avassaladora seca. Lançando em 1930, em plena efusão do romance moderno nordestino, ela encontrou espaço e fixou seu nome no regionalismo brasileiro, colocando-se ao lado de José Américo de Almeida e Graciliano Ramos, seus contemporâneos e autores de romances igualmente emblemáticos sobre a seca: A Bagaceira e Vidas Secas.

O romance O Quinze, considerado por Bosi (1997, p.447) como neo-realista, tem seu enredo estruturado em dois planos: o drama do vaqueiro Chico Bento e sua família retirante; e a relação afetiva de Conceição, professora culta, de família tradicional, e Vicente, que, embora seu primo, é um rude proprietário de terras e criador de gado. Embora haja essas duas linhas condutoras da história, com personagens relevantes, a protagonista é a própria seca, responsável por todo o desenrolar das ações. 

Evidentemente, como trataremos do tema da fome, faremos um recorte e enfocaremos apenas o percurso trágico do vaqueiro Chico Bento com sua mulher e seus filhos, que, em função da seca e da consequente falta de trabalho, são obrigados a imigrar para a cidade grande em busca de sobrevivência.

A experiência da fome é, pois, o motivo desse trabalho que pretende mostrar como a tragédia humana se desencadeia quando o homem deixa seu espaço de origem e busca, em terras, na maioria das vezes adversas, a sua sobrevivência e a da sua família.

A FOME COMO TRAGÉDIA HUMANA


Em 1915, no sertão cearense, o vaqueiro Chico Bento, sem mais perspectivas de manter sua família na fazenda em que trabalha há muitos anos, decide aventurar-se até a capital, de onde pretende partir para o Norte, com o sonho de trabalho garantido e vida melhor. Em companhia da mulher, Cordulina, e dos cinco filhos, dispondo apenas de uma burra e um pequeno quinhão de mantimentos, se lança nas estradas empoeiradas movido pela fé numa sobrevida em lugar menos inóspito. A partir daí, se dá a tragicidade do destino: eles buscam sobrevivência, mas o que encontram é uma saga de dores e perdas, pois, as consequências da marcha são piores do que as já vivenciadas na região seca. De fato, ao deixarem a fazenda onde sempre viveram, deixam o habitat natural e suas raízes, com pouco dinheiro e muita esperança de chegar ao Norte, onde pensam conseguir emprego na extração da borracha.

Além da separação do espaço natural, verifica-se a perda da dignidade, que, para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas na sua conduta, no exemplo que transmite os valores morais aos filhos, por mais humilde que ele seja. Chico Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata uma cabra que encontra pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais alto, e ele esfacela o animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se apropriar do alheio. O dono da caba aparece e, além de tomar-lhe a carne, chama-o de ladrão, humilha-o, sem querer ouvir justificativas. Dá-lhes apenas as tripas para saciarem a fome, nivelando-os, pois, aos bichos que comem vísceras jogadas no lixo: “Chico Bento perto olhava-a, com as mãos trêmulas, a garganta áspera, os olhos afogueados. -  Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha! Desgraçado! (...) - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne, um taquinho ao menos que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra eles que eu matei! Já caíram com fome! - Tome! Só se for isto! A um diabo que faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!... (QUEIROZ, 1930, p. 68-69).

Talvez a tragédia maior esteja no esfacelamento da família inicialmente composta de sete membros. O menino Josias, de 10 anos, num momento de fome, comeu mandioca crua, envenenando-se. Agonizou em morte lenta, sem que nada se pudesse fazer para aliviá-lo:  "Lá se tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois paus amarrados, feita pelo pai.  Ficou em paz. Não tinha mais que chorar de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida, para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz." (QUEIROZ, 1930, p. 42).
Pedro, o mais velho, de 12 anos, à revelia dos pais, foge com comboeiros de cachaça, quando estão entrando na cidade de Acarape: "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"
 Chico Bento chega ao Campo de Concentração, em Fortaleza, apenas em companhia de Cordulina, sua mulher, e dos outros três filhos. O objetivo é vencer os obstáculos para conseguir uma passagem para o norte. Conceição, neta da fazendeira que era patroa do casal, os encontra em meio à multidão de famintos; depois de ajudá-los, arranjando uma passagem de navio para que eles viajem para São Paulo, a moça fica com o menino mais novo, Duquinha, de 2 anos, que está doente e é seu afilhado. Os dois – Chico e Cordulina - viajam em companhia dos dois filhos restantes, cuja identidade sequer é mencionada.

A fome está, pois, ligada ao trágico, às perdas: A pobre Cordulina fica sem três dos seus filhos, chora durante dias, mas ainda tem ânimo para tentar a vida em São Paulo, eldorado dos retirantes nordestinos. Ela personifica a mulher submissa, sem instrução, que sofre, mas mantém a vida atrelada à do marido. Alienada, vive as dores calada, entregando à sorte o seu fado. Chico Bento é o tradicional vaqueiro pobre que vive a cuidar do que pertence a outros. Nada tem de seu para oferecer à família, senão a miséria do próprio destino. Para ele, a perda dos filhos não constitui tragédia, mas uma contingência. Vejamos a fala dele: “- Minha comadre, quando eu saí do meu canto era determinado a me embarcar para o norte. Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desanimou e pegou numa choradeira todo dia, com medo de perder o resto... Eu queria primeiro que a senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me arranjasse umas passagenzinhas pro vapor. Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o dia, ou quando Deus Nosso Senhor é servido de tirar... (QUEIROZ, 1930, p. 107).

A experiência da fome, embora coloque o homem em condição animalesca, não retira de Chico Bento os princípios arraigados. Leia-se a passagem em que ele encontra companheiros retirantes em situação de total miséria: “Um dos homens levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum sangrento envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E vamos aproveitar, mode não dar para os urubus” (QUEIROZ: 1930, p.42-43). Chico encarna a figura do homem nordestino, que pode se conformar com as dores da perda de entes queridos – cuja designação atibui a Deus -, mas nunca com a perda da dignidade. Ele não perde sua  generosidade, a sua capacidade de ver o outro como um ser humano. Diante da cena, ele reparte os alimentos que leva para matar a fome da família, e não recua ante as indagações de sua mulher: “- Chico, que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e Florência no altruísmo singelo do vaqueiro se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda! Eu é que não haveria de deixar esses desgraçados roerem osso podre...” (QUEIROZ, 1930, p. 43). 

Embora não haja, na história, a divisão clichê de "pessoas pobres e boas" e de "pessoas ricas e más", há a denúncia da corrupção, mostrando que existem os que se aproveitam da desgraça dos outros para levar vantagem: “- Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O propósito é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais... (QUEIROZ, 1930, p. 33). Chico, entretanto, mesmo se revoltando, não permite que a miséria abale sua generosidade nem sua fé. As adversidades não retiram dele a esperança de dias melhores: parte num vapor sem pensar no passado, mas vislumbrando tão somente o futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A narrativa de O Quinze investe na oralidade, demonstrando que o ciclo ficcional é brasileiro na base das fundações (ADONIAS apud COUTINHO, 1996, p. 277). É, também, psicológica, pois, na medida em que informa as ações dos personagens, expõe interrogações e dúvidas sobre o que poderia ter passado pela cabeça deles. Assim, o leitor convive com os fatos e com a repercussão deles nos seres que os vivenciam.

É por meio dessa técnica que Rachel de Queiroz, no seu romance regionalista, O Quinze, trata de um tema universal: a miséria. Chico Bento e Cordulina personificam os retirantes nordestinos que deixam sua terra, em busca de uma vida melhor, e se deparam com diversas tragédias: o exílio, a perda de entes queridos, o convívio com realidades cruéis, a perda da dignidade que lhe é tão cara, pois, com fome, o ser humano se nivela aos animais irracionais.

Embora nos dê o retrato da marcha trágica dessa família, o narrador mostra que, apesar da forme, apesar do desrespeito que a miséria evoca, o nordestino é bravo e não se rende facilmente: sua fé o move e sua esperança o mantém vivo e sempre pronto para recomeçar.


REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
COUTINHO, Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A literatura no Brasil.
São Paulo: Global Editora, 1996.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 1930.
QUEIROZ, Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.

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