Eu
perguntei-ei a Deus do céu, ai
Pru
que tamanha judiação?!
(Asa Branca –
Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira)
Aíla Sampaio – Mestra em Letras, Professora da Unifor, onde é editora
da Revista de Humanidades. E-mail: ailasampaio@unifor.br
RESUMO
A seca é uma das maiores
catástrofes vividas pelo povo nordestino, que se resigna a sair da sua terra
natal para aventurar-se em outro espaço que lhe possibilite ter as mínimas
condições de sobrevivência. Muitas vezes, essa busca resulta em tragédias que
repercutem definitivamente na vida dos retirantes que encontram, em vez de
solução para o problema da fome e da miséria, perdas irreparáveis. O romance O Quinze, de Rachel de Queiroz, traz a
cena a seca de 1915 e mostra, por meio dos personagens Chico Bento e Cordulina,
o drama das famílias que imigram para as capitais, buscando uma forma digna de
vida e experimentam, além da sensação de exílio, as dores advindas da perda de
familiares, da dissolução involuntária de parte da família e, sobretudo, a
perda da dignidade humana. A obra enfoca, ainda, a corrupção advinda da
mentalidade de que a seca propicia uma forma de desvio de verbas e, em
contrapartida, a honestidade, a fé e a esperança do povo sofrido que luta
apenas por uma forma lícita de sobrevida.
PALAVRAS-CHAVE: Fome. Miséria. Seca. Tragédia.
ABSTRACT
Drought
is one of the biggest disasters experienced by the people of Northeastern, who
resigned to leaving their homeland to embark on another space that allows it to
have the minimum conditions for survival. Often, that search results in tragedies that
definitely impact the lives of refugees who find, instead of resolving the
problem of hunger and misery, irreparable losses. The novel O Quinze, Rachel de Queiroz, brings the
scene of the drought in 1915 and shows through the characters and Cordulina
Chico Bento, the plight of families who migrate to the capital, seeking a
dignified way of life and experience, in addition to sense of exile, the pain
coming from the loss of relatives, the involuntary dissolution of the family
and especially the loss of human dignity. The work focuses also the corruption
coming from the mentality of the drought provides a form of embezzlement and,
conversely, honesty, faith and hope of suffering people who fight only for a
lawful way of survival.
KEYWORDS:
Hunger. Misery. Drought. Tragedy.
INTRUDUÇÃO
No
ano de centenário de nascimento da escritora Rachel de Queiroz, não se pode
deixar passar a oportunidade de falar dela, quando o assunto é a fome. Não
exatamente dela, que era criança quando ocorreu a seca de 1915, mas da obra que
ela construiu em cima das reminiscências, da visitação ao arquivo da memória.
Filha de fazendeiros, ela, menina, assistiu à procissão de retirantes passar à
sua porta; viu-os esquálidos, famintos, mendigar um pedaço de pão em cada
porta.
Antes
de completar 20 anos, escreveu o romance O
Quinze, cujo título já explicita que o enredo remete a acontecimentos do
ano 15 do século XX, quando o nordeste viveu uma avassaladora seca. Lançando em
1930, em plena efusão do romance moderno nordestino, ela encontrou espaço e
fixou seu nome no regionalismo brasileiro, colocando-se ao lado de José Américo
de Almeida e Graciliano Ramos, seus contemporâneos e autores de romances
igualmente emblemáticos sobre a seca: A
Bagaceira e Vidas Secas.
O romance O Quinze, considerado
por Bosi (1997, p.447) como neo-realista, tem seu enredo estruturado em dois
planos: o drama do vaqueiro Chico Bento e sua família retirante; e a relação
afetiva de Conceição, professora culta, de família tradicional, e Vicente, que,
embora seu primo, é um rude proprietário de terras e criador de gado. Embora
haja essas duas linhas condutoras da história, com personagens relevantes, a
protagonista é a própria seca, responsável por todo o desenrolar das ações.
Evidentemente, como trataremos do tema da fome, faremos um
recorte e enfocaremos apenas o percurso trágico do vaqueiro Chico Bento com sua
mulher e seus filhos, que, em função da seca e da consequente falta de
trabalho, são obrigados a imigrar para a cidade grande em busca de
sobrevivência.
A experiência da fome é,
pois, o motivo desse trabalho que pretende mostrar como a tragédia humana se
desencadeia quando o homem deixa seu espaço de origem e busca, em terras, na
maioria das vezes adversas, a sua sobrevivência e a da sua família.
A
FOME COMO TRAGÉDIA HUMANA
Em 1915, no sertão cearense, o vaqueiro Chico Bento, sem mais
perspectivas de manter sua família na fazenda em que trabalha há muitos anos,
decide aventurar-se até a capital, de onde pretende partir para o Norte, com o
sonho de trabalho garantido e vida melhor. Em companhia da mulher, Cordulina, e
dos cinco filhos, dispondo apenas de uma burra e um pequeno quinhão de
mantimentos, se lança nas estradas empoeiradas movido pela fé numa sobrevida em
lugar menos inóspito. A partir daí, se dá a tragicidade do destino: eles buscam
sobrevivência, mas o que encontram é uma saga de dores e perdas, pois, as
consequências da marcha são piores do que as já vivenciadas na região seca. De
fato, ao deixarem a fazenda onde sempre viveram,
deixam o habitat natural e suas raízes, com pouco dinheiro e muita esperança de
chegar ao Norte, onde pensam conseguir emprego na extração da borracha.
Além da separação do espaço natural, verifica-se a
perda da dignidade, que, para o homem nordestino, não está nas suas posses, mas
na sua conduta, no exemplo que transmite os valores morais aos filhos, por mais
humilde que ele seja. Chico Bento, em decorrência da miséria em que se vê, mata
uma cabra que encontra pelo caminho. Sua fome e a de seus filhos falam mais
alto, e ele esfacela o animal, sem qualquer questionamento sobre o ato de se
apropriar do alheio. O dono da caba aparece e, além de tomar-lhe a carne,
chama-o de ladrão, humilha-o, sem querer ouvir justificativas. Dá-lhes apenas
as tripas para saciarem a fome, nivelando-os, pois, aos bichos que comem
vísceras jogadas no lixo: “Chico Bento perto olhava-a, com as mãos trêmulas, a
garganta áspera, os olhos afogueados. - Cachorro! Ladrão! Matar minha cabrinha!
Desgraçado! (...) - Meu senhor, pelo amor de Deus! Me deixe um pedaço de carne,
um taquinho ao menos que dê um caldo para a mulher mais os meninos! Foi pra
eles que eu matei! Já caíram com fome! - Tome! Só se for isto! A um diabo que
faz uma desgraça como você fez, dar-se tripas é até demais!... (QUEIROZ, 1930,
p. 68-69).
Talvez a tragédia maior esteja
no esfacelamento da família inicialmente composta de sete membros. O menino Josias,
de 10 anos, num momento de fome, comeu mandioca crua, envenenando-se. Agonizou
em morte lenta, sem que nada se pudesse fazer para aliviá-lo: "Lá se
tinha ficado o Josias, na sua cova à beira da estrada, com uma cruz de dois
paus amarrados, feita pelo pai. Ficou em paz. Não tinha mais que chorar
de fome, estrada afora. Não tinha mais alguns anos de miséria à frente da vida,
para cair depois no mesmo buraco, à sombra das mesma cruz." (QUEIROZ,
1930, p. 42).
Pedro, o mais velho, de 12
anos, à revelia dos pais, foge com comboeiros de cachaça, quando estão entrando
na cidade de Acarape: "Talvez fosse até para a felicidade do menino. Onde
poderia estar em maior desgraça do que ficando com o pai?"
Chico Bento chega ao Campo de Concentração, em
Fortaleza, apenas em companhia de Cordulina, sua mulher, e dos outros três
filhos. O objetivo é vencer os obstáculos para conseguir uma passagem para o
norte. Conceição, neta da fazendeira que era patroa do casal, os encontra em
meio à multidão de famintos; depois de ajudá-los, arranjando uma passagem de
navio para que eles viajem para São Paulo, a moça fica com o menino mais novo,
Duquinha, de 2 anos, que está doente e é seu afilhado. Os dois – Chico e
Cordulina - viajam em companhia dos dois filhos restantes, cuja identidade
sequer é mencionada.
A fome está, pois, ligada ao trágico, às perdas: A pobre
Cordulina fica sem três dos seus filhos, chora durante dias, mas ainda tem
ânimo para tentar a vida em São Paulo, eldorado dos retirantes nordestinos. Ela
personifica
a mulher submissa, sem instrução, que sofre, mas mantém a vida atrelada à do
marido. Alienada, vive as dores calada,
entregando à sorte o seu fado. Chico Bento é o tradicional vaqueiro pobre que
vive a cuidar do que pertence a outros. Nada tem de seu para oferecer à
família, senão a miséria do próprio destino. Para ele, a perda dos filhos não
constitui tragédia, mas uma contingência. Vejamos a fala dele: “- Minha
comadre, quando eu saí do meu canto era determinado a me embarcar para o norte.
Com a morte do Josias e a fugida do outro, a mulher desanimou e pegou numa
choradeira todo dia, com medo de perder o resto... Eu queria primeiro que a
senhora desse uns conselhos a ela; e ao depois que me arranjasse umas passagenzinhas
pro vapor. Esse negócio de morrer menino é besteira... Morre quando chega o
dia, ou quando Deus Nosso Senhor é servido de tirar... (QUEIROZ, 1930, p. 107).
A
experiência da fome, embora coloque o homem em condição animalesca, não retira
de Chico Bento os princípios arraigados. Leia-se a passagem em que ele encontra
companheiros retirantes em situação de total miséria: “Um dos homens
levantou-se com a faca escorrendo sangue, as mãos tintas de vermelho, um fartum
sangrento envolvendo-o todo: - De mal-dos-chifres. Nós já achamos ela doente. E
vamos aproveitar, mode não dar para os urubus” (QUEIROZ: 1930, p.42-43).
Chico
encarna a figura do homem nordestino, que pode se conformar com as dores da
perda de entes queridos – cuja designação atibui a Deus -, mas nunca com a
perda da dignidade. Ele não perde sua generosidade, a sua capacidade de ver o outro
como um ser humano. Diante da cena, ele reparte os alimentos que leva para
matar a fome da família, e não recua ante as indagações de sua mulher: “- Chico,
que é que se come amanhã? A generosidade matuta que vem na massa do sangue, e
Florência no altruísmo singelo do vaqueiro se perturbou: - Sei lá! Deus ajuda!
Eu é que não haveria de deixar esses desgraçados roerem osso podre...”
(QUEIROZ, 1930, p. 43).
Embora
não haja, na história, a divisão clichê de "pessoas pobres e boas" e
de "pessoas ricas e más", há a denúncia da corrupção, mostrando que
existem os que se aproveitam da desgraça dos outros para levar vantagem: “-
Desgraçado: quando acaba, andam espalhando que o governo ajuda os pobres... Não
ajuda nem a morrer! O Zacarias segredou: - Ajudar, o governo ajuda. O propósito
é que é um ratuino... Anda vendendo as passagens a quem der mais... (QUEIROZ,
1930, p. 33). Chico, entretanto, mesmo se revoltando, não permite que a miséria
abale sua generosidade nem sua fé. As adversidades não retiram dele a esperança
de dias melhores: parte num vapor sem pensar no passado, mas vislumbrando tão
somente o futuro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A narrativa de O Quinze
investe na oralidade, demonstrando que o ciclo ficcional é
brasileiro na base das fundações (ADONIAS apud COUTINHO, 1996, p. 277). É, também, psicológica, pois, na medida em que
informa as ações dos personagens, expõe interrogações e dúvidas sobre o que
poderia ter passado pela cabeça deles. Assim, o leitor convive com os fatos e
com a repercussão deles nos seres que os vivenciam.
É
por meio dessa técnica que Rachel de Queiroz, no seu romance regionalista, O Quinze, trata de um tema universal: a
miséria. Chico Bento e Cordulina personificam os retirantes nordestinos que
deixam sua terra, em busca de uma vida melhor, e se deparam com diversas
tragédias: o exílio, a perda de entes queridos, o convívio com realidades
cruéis, a perda da dignidade que lhe é tão cara, pois, com fome, o ser humano
se nivela aos animais irracionais.
Embora
nos dê o retrato da marcha trágica dessa família, o narrador mostra que, apesar
da forme, apesar do desrespeito que a miséria evoca, o nordestino é bravo e não
se rende facilmente: sua fé o move e sua esperança o mantém vivo e sempre
pronto para recomeçar.
REFERÊNCIAS
BOSI,
Alfredo. História concisa da Literatura
brasileira. São Paulo: Cultrix, 1997.
COUTINHO,
Afrânio; COUTINHO, Eduardo de Faria. A
literatura no Brasil.
São
Paulo: Global Editora, 1996.
QUEIROZ,
Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1930.
QUEIROZ,
Rachel de. O quinze. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2004.
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