É marca da cultura contemporânea a legitimação da pluralidade de estilos, e as artes, antes fechadas em suas próprias fronteiras, dialogam e se tocam, estreitando seus limites que, pouco a pouco, perdem a demarcação.
No que se refere à literatura, voltemos ao período clássico e lembremos Aristóteles, em sua Poética, dividindo as manifestações literárias em três gêneros: o lírico, que tinha como objeto o mundo interior, constituía o poema; o épico, que enfocava o mundo exterior ao poeta, se realizava nas epopéias; e o dramático, cujo teor recaía sobre os conflitos das relações humanas, assumia a forma de tragédia ou de comédia. Com o passar do tempo, com as transformações cada vez mais rápidas, criou-se a “cultura de mosaico”, ou seja, o artista não seguia mais regras ou normas, tinha a liberdade de expressar sua arte como lhe aprouvesse. Segundo Coelho (1986 p.43), A única “norma” que jamais mudou (e que em cada época foi codificada de um modo) é a da coerência orgânica e profunda que deve existir entre o significado do discurso e sua forma significante.
Hoje, mesmo com as espécies de gêneros alargadas, é difícil tentar qualquer delimitação, pois é característica do nosso tempo a incorporação de novas técnicas e linguagens: alguns romances parecem reportagens ou têm características de textos de teatro; alguns contos se assemelham a um poema em prosa e/ou se aproximam demais da crônica; muitas narrativas são feitas de modo recortado, em forma muitas vezes de colagem, sem uma continuidade lógica, permitindo a coexistência de textos de natureza diversa, tomando emprestado da “sétima arte” os famosos cortes cinematográficos. Além disso, ficcionalizou-se outros gêneros como o memorialista, por exemplo. Como se disse, os elementos do cinema, do teatro e da novela alcançaram o conto e o romance e vice-versa. Desse modo, a narrativa passou a fazer coexistir em seu discurso os diversos níveis de fala, aproximando ainda mais o texto literário da vida cotidiana.
Não fez surpresa, portanto, os textos literários saltarem dos livros e ganharem forma de filme, peça de teatro ou mesmo novela. Só para citar alguns exemplos, tivemos na Rede Globo várias novelas adaptadas de romances, como Ciranda de Pedra, baseada no livro homônimo de Lygia Fagundes Telles; As Três Marias, de Rachel de Queiroz; Tieta do agreste e Gabriela, cravo e canela, de Jorge Amado, de quem também foram inseridos vários núcleos de Mar morto na novela Tenda dos Milagres. Ainda de Amado tivemos as minisséries Dona Flor e seus dois maridos (posteriormente filmado para o cinema), Tereza Batista cansada de guerra e Terras do sem fim. No mesmo formato, o público pôde assistir à Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa; O sorriso do lagarto, de João Ubaldo Ribeiro; O tempo e o vento e Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; Agosto, de Rubem Fonseca; Memorial de Maria Moura, de Rachel de Queiroz; Primo Basílio, de Eça de Queiroz; também realizaram-se episódios curtos de Menino de engenho, de José Lins do Rego e do conto O pirotécnico Zacarias, de Murilo Rubião.
No cinema, entre tantas transposições para a linguagem cênica, destacamos Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, obra que deu início ao Realismo brasileiro em 1881 e se mantém atual até hoje, e Dom, filme inspirado no seu polêmico Dom Casmurro; A grande Arte e Buffo e Spallanzani, de Rubem Fonseca; Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, de Raduan Nassar; Estorvo e Benjamin, de Chico Buarque; As horas (2002), filme dirigido por Stephen Daldry, inspirado no A Senhora Dalloway (1925), de Virgínia Woolf; e O Corpo, baseado no conto homônimo do livro A via crucis do corpo, de Clarice Lispector.
O diálogo menos silencioso, entretanto, tem sido o da música com a literatura. Claro que a musicalidade sempre se interpôs como característica do texto poético, sobretudo na corrente simbolista. O “ritmo” atravessou todas as estéticas e, mesmo nas transgressões formais da primeira fase modernista, sobreviveu como condição essencial para a harmonia do poema. Embora essa constatação tenha sempre existido, poema e letra de música se mantinham com suas fronteiras determinadas, mesmo que tivessem uma estruturação formal parecida; era como se a letra fosse a “prima pobre” do poema.
Entre os anos de 67 e 68, essa tênue linha de demarcação passou a ficar mais estreita com o surgimento de um movimento musical que levou a literatura a reboque: o Tropicalismo. O poeta Torquato Neto se tornou parceiro de Caetano Veloso com Soy loco por ti América; e, entre outros, de Jards Macalé, com Lett’s play that - quando eu nasci / um anjo louco / muito louco / veio ler a minha mão / não era um anjo barroco / era um anjo muito louco, torto / com asas de avião - um exemplo vivo do tropicalismo na poesia, que é, na verdade, uma paródia do Poema de sete faces de Carlos Drummond de Andrade – Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser guache na vida - parodiado, também, por Chico Buarque em - Quando nasci um anjo safado/ um chato dum querubim/ disse que tava predestinado/ a ser errado assim. O movimento, liderado por Caetano e Gil, influenciou bastante a poesia dos anos 70, chamada, na época, de “Vanguarda Marginal”, de onde se tem o poeta Paulo Leminski e Cacaso como poetas-parceiros de alguns músicos importantes da Música Popular Brasileira. Difícil seria saber onde começava o letrista e terminava o poeta em cada um deles. Ou já era a poesia alargando seu território? A partir daí, a letra elevou seu status, a poesia desceu de seu pedestal e passaram a dividir o mesmo espaço.
Tracemos um breve percurso das incursões da literatura pela música. Quem não percebe a intertextualidade da música Morro velho, de Milton Nascimento, com os romances do ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego? Só para lembrar: Os romances Menino de engenho, Doidinho e Bangüê têm o personagem Carlos Melo como protagonista. No primeiro, ele é o menino órfão que se muda da cidade para a fazenda do avô e mistura-se com os moleques nativos, com quem brinca e vive inúmeras aventuras “inconseqüentes”; no segundo, ele é conduzido ao internato e lá vive a sua adolescência estudando direito; no terceiro, ele retorna à fazenda, formado, mas completamente despreparado para a vida, e seus amigos de infância, sobretudo o moleque Ricardo, assumem seus papéis na hierarquia, tomam um rumo bem diferente do seu: “já não brincam, trabalham”. A música de Milton é uma síntese dessa trilogia, o que me faz inferir a assimilação dessas leituras no processo de criação da letra.
Seguindo outra inspiração, mas privilegiando também o texto poético, Paulo Diniz fez tocar no rádio o legendário poema José (do livro homônimo, publicado inicialmente entre os anos de 1941 e 1942), de Carlos Drummond de Andrade, denunciando a falta de alternativas no mundo moderno, evocando o homem desprovido de perspectivas, encilhado num beco sem saída. Diniz, convivendo com as mesmas agruras na contemporaneidade, se tornou porta-voz das denúncias que o poeta mineiro fez no início dos anos 40.
A literatura portuguesa não fica à parte. Luiz Vaz de Camões teve, em pleno final do século XX, um de seus mais clássicos sonetos cantados pela juventude: Amor é fogo que arde sem se ver. Os versos, compostos cinco séculos antes, foram adensados a alguns versículos dos Coríntios (Bíblia Sagrada), a versos do próprio Russo e se tornaram um hino ao amor. Monte castelo tornou-se, assim, presença obrigatória nas aulas sobre o Classicismo luso, quando se pretende mostrar a atualidade da lírica camoniana.
Ainda na seara dos escritores portugueses, encontramos Eça de Queiroz, o maior nome do Realismo português, na música Amor I love you, de Marisa Monte e Carlinhos Braw. O trecho recitado por Arnaldo Antunes marca o momento em que a ingênua Luísa lê emocionada a carta do primo que a tenta seduzir: Tinha suspirado, lido o papel devotamente. É um mergulho primoroso da prosa poética de Eça e uma verdadeira picada a instigar a leitura do romance Primo Basílio.
Nosso Belchior, cujas letras de música já são poemas vivos, intertextualizou versos de Gonçalves Dias na canção Aguapé, que canta em duo com o cantor Raimundo Fagner no LP Objeto Direto, resgatando a memória de um dos mais líricos poetas do nosso Romantismo. O mesmo procedimento se encontra na sua Divina comédia humana (do LP homônimo), desta feita com os mais belos versos do parnasianismo brasileiro -Soneto XIII- constante do livro Via-láctea, de Olavo Bilac: “Ora, (direis), ouvir estrelas! Certo/ Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,/ .../. Recentemente, Belchior divulgou o lançamento de um CD só com poemas de Drummond musicados.
Raimundo Fagner, entretanto, é quem mais tem investido no primor dos diálogos música-poesia. Aliás, seu espírito se coaduna perfeitamente com o seu tempo, já que tem como palavra de ordem do seu estilo a palavra de ordem das tendências das artes contemporâneas: ecletismo. O mesmo RF que grava um Rela Bucho de Genésio Tocantins, numa valorização de nossa raízes forrozeiras, foi capaz de se sensibilizar (em 1982) diante do belo soneto Qualquer música, do Cancioneiro de Fernando Pessoa. O ritmo dado ao poema pessoano é de indescritível beleza. Mas esse não foi o primeiro investimento do cantor cearense no texto literário. No seu primeiro LP, lançado em 1973 – Manera Fru Fru Manera - Fagner, ainda que na contramão dos créditos autorais, lanço mão de alguns versos do poema Marcha - Quando penso em você / fecho os olhos de saudade / tenho tido muita coisa / menos a felicidade - de Cecília Meirelles, e compôs uma das mais lindas canções de seu espólio: Canteiros, que intertextualiza, no final, um trecho da música Na hora do almoço (de Belchior) e Águas de Março (de Tom Jobim). Em 1977 ele põe melodia no Epigrama no. 9 – O vento voa, / a noite toda se atordoa, / a folha cai - (no LP Orós) e, no ano seguinte traz a público o belo metapoema Motivo, (ambos de Cecília) no LP cujo título é o primeiro verso do poema: Eu canto – porque o instante existe/ e a minha vida está completa. / Não sou alegre nem sou triste / Sou poeta. As questões judiciais em torno da gravação arbitrária dos versos de Marcha, entretanto, privaram o público dessa três belas músicas, que se encontram ausentes dos CD’S onde deveriam estar inseridas.
Em 1980, ele, mais uma vez, vai buscar suas raízes nordestinas e grava o épico-cordel Vaca estrela e boi fubá do poeta Patativa do Ceará, um dos maiores gênios autodidatas da poesia de cordel do Brasil. A partir daí Patativa se torna nacionalmente conhecido. No ano seguinte, Fagner estoura nas paradas de sucessos com o apaixonadíssimo soneto Fanatismo, do Livro de Soror saudade (1923 – 1a. edição) da poetisa portuguesa Florbela Espanca – Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida / Meus olhos andam cegos de te ver! / Não és sequer a razão do meu viver, / Pois que tu és já toda a minha vida! - terminando com uma música incidental igualmente bela, de Roberto Carlos: Meu querido, meu velho, meu amigo, mais precisamente com os versos: Eu já te falei de tudo, mas tudo isso é pouco, diante do que sinto. Florbela, até então somente conhecida pelos estudantes de letras e amantes da boa poesia, passa a ser cantada pelos quatro cantos do nosso imenso Brasil. No mesmo LP, ele incluiu ainda o filosófico Traduzir-se (do livro Na vertigem do dia – 1980 – 1a. edição), de Ferreira Gullar, que dá título ao trabalho: Uma parte de mim / é todo mundo; outra parte é ninguém: / fundo sem fundo. Essa música foi gravada, depois, em parceria com Chico Buarque.
Em 1982, num LP totalmente gravado nos Estados Unidos, Fagner inclui mais dois sonetos de Florbela Espanca: Fumo – Longe de ti são ermos os caminhos, / Longe de ti não há luar nem rosas, / Longe de ti há noites silenciosas, / Há dias sem calor, beirais sem ninhos - ( do Livro de Soror Saudade) e Tortura – São assim ocos, rudes, os meus versos: Rimas perdidas, vendavais dispersos! - (do Livro de Mágoas – 1919 – 1a. edição), este último foi também gravado pelo cantor Cauby Peixoto; (É neste mesmo disco que aparece o texto de Fernando Pessoa citado há pouco). Do mesmo livro de Florbela (de Mágoas), musicou Impossível – Os meus males ninguém mos advinha... / A minha Dor não fala, anda sozinha... - e gravou em pareceria com a cantora espanhola Ana Belém. Do Livro de Soror Saudade gravou ainda o lancinante soneto Frieza – Os teus olhos são frios como espadas, / E claros como os trágicos punhais - em duo com Amelinha, no LP de estréia dela.
Em 1983 ele volta a fazer dueto com Chico Buarque, desta feita na gravação do poema Contigo - Canta comigo / este canto / que é feito de calma / e de espanto - de Ferreira Gullar. No próximo ano, põe música em Cantiga pra não morrer (também de Gullar) e lança-o com o nome Me Leve no LP A mesma pessoa. É, sem dúvida, uma das músicas mais emocionantes da discografia de RF – Quando você for-se embora / moça branca como a neve / me leve, me leve. Em 85 é Mário de Andrade o contemplado, com a gravação de Semente, um poema bem distante da fase experimentalista do poeta; trata-se de um texto romântico, remanescente do tempo em que ele não havia ainda aderido às rebeldias instauradas pela Semana de arte moderna: Os teus olhos distribuem / o que não existe nos meus/ a luz que os meus possuem / são as migalhas dos teus.
Irrequieto e obstinado em suas pesquisas musicais, e porque não dizer, literárias, Fagner grava, em 1986, Rainha da Vida (de Gullar) que se tornou carro-chefe da trilha sonora de uma Minissérie da Rede Manchete, em que o cantor fez o papel de um padre. No mesmo LP, uma surpresa: Os amantes, de Affonso Romano de Sant’ana – Os amantes em geral / são patetas, maus estetas / fazem versos ruins e são poetas, como eu – cuja melodia mostra a perfeita adequação entre letra e música. É, para mim, o ponto mais alto do disco.
Depois de algum tempo, mais precisamente em 1994, quando o LP Pedras que cantam é lançado em CD – 2a. edição - nova surpresa: uma faixa bônus com o poema Menos a mim, de Gullar. Cinco anos após, no CD comemorativo dos seus 50 anos, em 1999, vem, entre as faixas bônus, o Soneto I, apêndice do Charneca em Flor, de Florbela Espanca: Gosto de ti apaixonadamente, / De ti que és a vitória, a salvação / De ti que me trouxeste pela mão / Até o brilho desta chama quente; a faixa recebe o título de Chama quente. Depois, só em 2003, a sua prodigiosa parceria com Zeca Baleiro (outro poeta), RF resgata Torquato Neto e traz, outra vez um grande nome da literatura brasileira e a feliz possibilidade de tornar as nossas aulas ainda mais criativas e harmoniosas.
Há quem diga que as adaptações de romances e contos para a Televisão ou para o Cinema sejam negativas, haja vista a transformação de muitos argumentos do texto original e até da linguagem. Claro que não substituem jamais as obras; nelas jamais haverá o traço idiossincrático do estilo do autor, do seu discurso próprio; nada substitui o prazer estético da leitura de um livro. A adaptação e a obra original são duas formas distintas, cada uma com o seu valor particular. Não resta dúvida que é mais fácil, para grande parte da população brasileira, assistir a uma novela ou a um filme do que ler um livro; até porque o livro é privilégio de poucos. Entretanto, os leitores graves, usando mesmo a designação de Brás Cubas, ficam curiosos e buscam o livro. É esse o saldo positivo.
Quanto à música, não há essa relação de perdas e ganhos. Faço e refaço a contabilidade e só encontro lucro!
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