http://www.youtube.com/watch?v=CBLAHreE9KM
Para falar na história do Teatro, ou relembrar a visão de Aristóteles sobre a Comédia e a Tragédia, ambas, segundo o filósofo grego, advindas das obras de Homero, tem-se que assistir aos 136 minutos de drama do filme Marquise, de 1997, dirigido pela francesa Véra Belmont e estrelado por Sophie Marceau, Bernard Giraudeau, Lambert Wilson, Patrick Timsit, entre outros atores.
O enredo evoca uma reflexão sobre as dificuldades que roteiristas e atores enfrentavam na França do século XVII, a submissão deles ao rei e ao clero, sobretudo à fugacidade do gosto. Há, também, uma reflexão ética, quando se analisam as concessões feitas pelos artistas para conseguirem sucesso (ou apenas sobrevivência), como a fuga ao próprio estilo, a adaptação às conveniências sociais e, em outra perspectiva, até o uso do próprio corpo para barganhar papéis relevantes.
À época, o teatro francês era regido pelas comédias de Molière e as tragédias de Racine. Nesse mundo de rivalidades, a dançarina Marquise, interpretada pela atriz Sophie Marceau, é descoberta pelo ator da Companhia de Moliére, Gros-René du Parc, dançando seminua em uma feira no interior da França. Ele se apaixona por seus dotes físicos e artísticos. O pai dela, após as apresentações, organiza a fila de homens que pretendem pagar pelo contato carnal com sua filha, mas Gros-René fura o cerco e faz o convite para que ela siga com ele, de forma inusitada, enquanto ela atende, na cama, a um cliente.
Apaixonado, du Parc paga ao pai da moça para casar-se com ela, e a leva consigo para Paris. A beleza e a ambição dela abrem as portas para uma carreira promissora, não apenas à custa de seu talento profissional, mas do seu desempenho como amante das maiores figuras da corte, entre elas, o rei. O marido sabe e aceita, desde que ela nunca o abandone.
Molière, o então preferido do rei, viaja com a sua Companhia sempre em grandes dificuldades. Por pressão do povo e dos religiosos, a realeza começa a preteri-lo. Criticado em função da amoralidade de suas histórias e do comportamento de sua trupe, recebe advertências do rei e vê-se obrigado a se reformular; submete-se ao ‘sistema’, mas não sem dor. O filme mostra a estrutura dos poderes, sobretudo o da igreja, interferindo nas produções, e o teatro sempre tentando burlar, ou adaptar-se, de algum modo, para buscar meios de permanecer e, quem sabe, depois ter espaço para questionar as estruturas vigentes.
A decadência de Moliére não tardou. A comédia, considerada gênero inferior por Aristóteles, imitava homens de poucas virtudes por meio de personagens caracterizados por comportamentos eivados pelo medo, pela avareza, pela covardia e pela adulação; talvez (ou certamente) por isso desagradasse à realeza. Nas peças, encenavam-se a inferioridade e o ridículo, sem necessidade de um enredo bem montado, com peripécias e ações. Também no que diz respeito aos traços físicos, predominavam as caricaturas: o narigudo, o baixinho, o gigantesco etc. Para a sociedade hipócrita que assistia às peças, o riso era ligado ao patético, assim, deveria sair de cena e dar lugar a dramas de ‘melhor qualidade’. Moliére foi, desse modo, ‘engolido’ pelo preconceito e pela superficialidade de uma realeza que não gostava de se olhar no espelho.
O público passou a elevar Racine com seus dramas lacrimosos e elegeu a tragédia como o gênero da vez, pois que mostrava a imitação de ações de caráter elevado, colocando o homem na situação de agir. As portas do Palácio de Versailles se abriram para ele. A ação trágica de suas peças, com começo, meio e fim, colacando em cena o terror e a piedade com fiel comoção, atingiu a finalidade de produzir a catarse dessas emoções e teve a adesão de todos, bem como sua linguagem ornamentada, com ritmo, harmonia e musicalidade. Marquise, que não conseguia ser atriz nas peças de Moliére, mas tão somente dançarina, uniu-se a Racine, na vida e na arte, e atingiu a glória ao encenar Antígona, papel escrito para ela pelo apaixonado amante.
Ela (Marquise), numa reflexão sobre sua arte, diz à sua empregada, aspirante a atriz, que encenar é morrer todos os dias, como numa assertiva premonitória. É aclamada enquanto está em cena, brilhando; sobrevive às mudanças do gênero teatral, mas não à crueldade da glória efêmera. Doente e impedida de continuar a encenar sua Antígona por alguns dias, se vê substituída por sua bela empregada, que com ela ensaiava os textos e dela absorvia toda a técnica da representação.
Fragilizada pela saúde abalada, sob os olhos piedosos do decadente Moliére e do oportunista Racine, Marquise enfrentou a verdade de sua precária condição na corte. Não suportando viver sem o brilho do placo, entendendo a fugacidade da fama e até do amor, envenenou-se em cima dele, grávida (de Racine), encenando a própria morte, misturando o real e a ficção diante dos olhos do público, que não entendeu o drama que ali se colocava. Findou carregada pelos braços do ex-amante, na apoteose de um trágico desfecho.
O filme, que confronta a Tragédia e a Comédia na França do século XVII, termina por mostrar o triunfo das lágrimas sobre o riso, por revelar a efemeridade da glória e, sobretudo, a perecibilidade do artista num meio hostil à verdade e carente de valores humanos.
FRAGMENTOS SOBRE TRAGÉDIA E COMÉDIA - Arte Poética, de Aristóteles.
Arte Poética, cap. VI, § 27: “É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.” — Aristóteles
Arte Poética, cap. V, § 21: “A comédia é [...] imitação de homens inferiores; não todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor.” — Aristóteles
Para falar na história do Teatro, ou relembrar a visão de Aristóteles sobre a Comédia e a Tragédia, ambas, segundo o filósofo grego, advindas das obras de Homero, tem-se que assistir aos 136 minutos de drama do filme Marquise, de 1997, dirigido pela francesa Véra Belmont e estrelado por Sophie Marceau, Bernard Giraudeau, Lambert Wilson, Patrick Timsit, entre outros atores.
O enredo evoca uma reflexão sobre as dificuldades que roteiristas e atores enfrentavam na França do século XVII, a submissão deles ao rei e ao clero, sobretudo à fugacidade do gosto. Há, também, uma reflexão ética, quando se analisam as concessões feitas pelos artistas para conseguirem sucesso (ou apenas sobrevivência), como a fuga ao próprio estilo, a adaptação às conveniências sociais e, em outra perspectiva, até o uso do próprio corpo para barganhar papéis relevantes.
À época, o teatro francês era regido pelas comédias de Molière e as tragédias de Racine. Nesse mundo de rivalidades, a dançarina Marquise, interpretada pela atriz Sophie Marceau, é descoberta pelo ator da Companhia de Moliére, Gros-René du Parc, dançando seminua em uma feira no interior da França. Ele se apaixona por seus dotes físicos e artísticos. O pai dela, após as apresentações, organiza a fila de homens que pretendem pagar pelo contato carnal com sua filha, mas Gros-René fura o cerco e faz o convite para que ela siga com ele, de forma inusitada, enquanto ela atende, na cama, a um cliente.
Apaixonado, du Parc paga ao pai da moça para casar-se com ela, e a leva consigo para Paris. A beleza e a ambição dela abrem as portas para uma carreira promissora, não apenas à custa de seu talento profissional, mas do seu desempenho como amante das maiores figuras da corte, entre elas, o rei. O marido sabe e aceita, desde que ela nunca o abandone.
Molière, o então preferido do rei, viaja com a sua Companhia sempre em grandes dificuldades. Por pressão do povo e dos religiosos, a realeza começa a preteri-lo. Criticado em função da amoralidade de suas histórias e do comportamento de sua trupe, recebe advertências do rei e vê-se obrigado a se reformular; submete-se ao ‘sistema’, mas não sem dor. O filme mostra a estrutura dos poderes, sobretudo o da igreja, interferindo nas produções, e o teatro sempre tentando burlar, ou adaptar-se, de algum modo, para buscar meios de permanecer e, quem sabe, depois ter espaço para questionar as estruturas vigentes.
A decadência de Moliére não tardou. A comédia, considerada gênero inferior por Aristóteles, imitava homens de poucas virtudes por meio de personagens caracterizados por comportamentos eivados pelo medo, pela avareza, pela covardia e pela adulação; talvez (ou certamente) por isso desagradasse à realeza. Nas peças, encenavam-se a inferioridade e o ridículo, sem necessidade de um enredo bem montado, com peripécias e ações. Também no que diz respeito aos traços físicos, predominavam as caricaturas: o narigudo, o baixinho, o gigantesco etc. Para a sociedade hipócrita que assistia às peças, o riso era ligado ao patético, assim, deveria sair de cena e dar lugar a dramas de ‘melhor qualidade’. Moliére foi, desse modo, ‘engolido’ pelo preconceito e pela superficialidade de uma realeza que não gostava de se olhar no espelho.
O público passou a elevar Racine com seus dramas lacrimosos e elegeu a tragédia como o gênero da vez, pois que mostrava a imitação de ações de caráter elevado, colocando o homem na situação de agir. As portas do Palácio de Versailles se abriram para ele. A ação trágica de suas peças, com começo, meio e fim, colacando em cena o terror e a piedade com fiel comoção, atingiu a finalidade de produzir a catarse dessas emoções e teve a adesão de todos, bem como sua linguagem ornamentada, com ritmo, harmonia e musicalidade. Marquise, que não conseguia ser atriz nas peças de Moliére, mas tão somente dançarina, uniu-se a Racine, na vida e na arte, e atingiu a glória ao encenar Antígona, papel escrito para ela pelo apaixonado amante.
Ela (Marquise), numa reflexão sobre sua arte, diz à sua empregada, aspirante a atriz, que encenar é morrer todos os dias, como numa assertiva premonitória. É aclamada enquanto está em cena, brilhando; sobrevive às mudanças do gênero teatral, mas não à crueldade da glória efêmera. Doente e impedida de continuar a encenar sua Antígona por alguns dias, se vê substituída por sua bela empregada, que com ela ensaiava os textos e dela absorvia toda a técnica da representação.
Fragilizada pela saúde abalada, sob os olhos piedosos do decadente Moliére e do oportunista Racine, Marquise enfrentou a verdade de sua precária condição na corte. Não suportando viver sem o brilho do placo, entendendo a fugacidade da fama e até do amor, envenenou-se em cima dele, grávida (de Racine), encenando a própria morte, misturando o real e a ficção diante dos olhos do público, que não entendeu o drama que ali se colocava. Findou carregada pelos braços do ex-amante, na apoteose de um trágico desfecho.
O filme, que confronta a Tragédia e a Comédia na França do século XVII, termina por mostrar o triunfo das lágrimas sobre o riso, por revelar a efemeridade da glória e, sobretudo, a perecibilidade do artista num meio hostil à verdade e carente de valores humanos.
FRAGMENTOS SOBRE TRAGÉDIA E COMÉDIA - Arte Poética, de Aristóteles.
Arte Poética, cap. VI, § 27: “É pois a tragédia imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes do drama, imitação que se efetua não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação dessas emoções.” — Aristóteles
Arte Poética, cap. V, § 21: “A comédia é [...] imitação de homens inferiores; não todavia, quanto a toda espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é ridículo. O ridículo é apenas certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor.” — Aristóteles
Um comentário:
Nossa, incrível a forma como escreveu sobre o filme Marquise. Parabéns. Gostei muito.
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