Claroscuro é novo livro de Luciano Maia, constante de 68 poemas , um exercício estético bem apurado desse poeta que já é autor de 19 títulos, entre os mais conhecidos: Jaguaribe: memória das águas (1982), Neruda, canto memorial (1983), Autobiografia lírica (2005) e Pátria dos cataventos (2007). Com o pleno domínio das formas fixas, as quais exercita com a mesma desenvoltura com que traça os versos livres, o poeta transita pelos sonetos, pelas odes, pelos dísticos e pelas quadras, sem preocupar-se com a disposição dos versos, mas tão-somente com o seu ritmo, sua imprescindível musicalidade, que até pode ser a de um tango ou a de um fado.
Não à toa, paira na capa a figura de um pássaro e sua sombra, ambas as imagens num jogo de cores luminosas que intuem sol e mar, elementos recorrentes em seus textos. Não dá para não fazer a relação desse símbolo, também impresso na segunda folha de rosto, com a liberdade criadora e o poder da poesia, essa deusa que é toda canto, que pode perder a pompa, mas nunca a circunstância.
A começar pelo título – CLAROscuro -, se anuncia um amálgama de impressões, sensações e formas, numa poética que sabe da sombra e da escuridão, mas se espraia essencialmente na claridade. Note-se que, na aglutinação das palavras ‘claro’ e ‘escuro’, com a síncope da primeira letra da segunda palavra, tem-se a impressão de que ela sucumbe à primeira, que reina absoluta em sua inteireza, sugerindo o predomínio da luz sobre a sombra.
Luciano Maia é, antes de tudo, um homem apaixonado pela sua língua e pela sua terra, com raízes latinas bem fincadas na epiderme da alma. É telúrico ao celebrar seu chão, como já vimos em outras obras suas, mas a ele não limita seu canto, ao contrário, projeta-o à imensidão, num sentido de universalidade perene. Também sua poética não cabe em rótulos ou estéticas, embora ela escute “sons quinhentistas”; embora luzida num traço barroco, a tecer contrastes e intemperanças; embora tenha linhas que recuperam o simbolismo, com suas vogais alegorizadoras e seu sopro de transcendência.
A liberdade inventiva no processo criador do poeta não pressupõe, entretanto, ausência de trabalho de linguagem. A consciência do texto como um tecido, cujos fios podem se entrecruzar para formar uma tela, e o conhecimento das potencialidades expressivas da língua dão a ele os instrumentos fundamentais para a construção de belas imagens.
Assim, desponta uma poesia que é de sol e de lua, mar e terra, de madrugadas e amanheceres, de sonho e insônia, canções e silêncios, partida e regresso, observação e memória. Há um menino que grita, uma luz que acende, cores que formam matizes nos “momentos que a memória glorifica” (p.19). Se há o “rubro acaso” no findar da tarde, se há a noite como “inconsolável viúva”, há também o encanto da “rosa madrugada” e o “verbo azul da paixão”. Há o sonho – chama azul – que se esfuma na realidade, sem lamento: “Não se cumpriu o seu desejo. / Sabe hoje mais que ninguém / a distância entre as ilusões / da alma / e as mentiras do mundo”. Ao poeta importa ‘a alva porcelana da lua vencer a escuridão da noite’. A perda da ilusão não implica desilusão. Essa é uma das lições que aprendemos:
Eu te confesso que já não me iludo
Com os acenos da noite iluminada.
E já consigo permanecer mudo
À louvação – mentira anunciada.
Procurarei permanecer, contudo
Imune à pena desproporcionada
Ao que o mundo oferece: dores, tudo
Que ao fim e ao cabo na verdade é nada.
(“Partida” p. 59)
No diálogo com suas leituras, cria-se, para além da intertextualidade, um vínculo com a filosofia atemporal, bem como com a diversidade de estilos dos poetas que são citados em alguns versos: Bandeira e sua estrela da manhã, a ruazinha de Quintana, o violão do aedo Homero, Gonçalves Dias e seu índio ideado, seus amores transbordantes. Há conversas com o rio de Heráclito “Nem a cidade, nem eu / nem as flores, nada mais / como antes foi um dia” (p33); com as estrelas de Olavo Bilac: “Mas as estrelas banharão teu rosto / e o teu saudoso olhar buscará lê-las / nesse instante fugaz em que o desgosto / te olvidará e, de repente, ao vê-las / te esquecerás também do luto posto / em nosso céu de sonhos e de estrelas” (p.36); e a retomada do ritmo poético que inicia Iracema, romance de José de Alencar: “Além, bem mais além, bem mais além... / Para além da penúltima atalaia / Longe, de onde a lembrança não retém / mais do que a onda triste que se espraia” (p.52).
A intimidade com a palavra e sua expressividade, com o bom manejo das escolhas estilísticas, permite a criação de imagens que se desenham em variadas figuras: constroem-se metonímas: “Os navios submeros / se despedem dos espantos / da extravagância dos versos / das lamentações dos cantos.”; comparações: “Espumas como mortalha / de afogados insepultos” (p.35); personificações: “e o luar beijando / o espelho da correnteza” (p.38), “Vão umedecendo as lágrimas / que chovem dentro de mim” (p.50); sinestesias: “uma luz longe e fria levantou-se / entre os vãos desolados da memória” (p.41); “coração doce” (p.43); metáforas - “A noite fez-se inconsolável viúva / presa ao porto deserto...” (p.22) - que afloram, como o eu poético do poema “Marin Sorescu diz poema às cadeiras” (p. 61), diz: “de invisíveis arcos tendidos...” Também se assinalam quebras de paralelismo semântico: “dos postes descia uma luz alaranjada e hesitante” (p.39) e efeitos inusitados com as rimas guardiãs da musicalidade.
Antônio Cândido, ao falar da criação literária e suas motivações, logo assinalou as três atitudes indispensáveis: a observação, a invenção e a visita à memória. Nesses três esteios, a poesia de “Claroscuro” se compraz, fincando alicerces mais sólidos, sobretudo, na memória, que recupera o cheiro da ‘chuva bisavó’ e a criança insepulta que o homem guarda:
Sou menino, a lua me comove
E uma canção inédita se escuta
Às horas da madrugada desse então
Penetrado de luz e paixão.
(“Poema em regresso”, p. 19)
Na sedução do fado que torna inevitáveis as dores e os silêncios, o eu lírico se declara dono de um “Discurso franco e gesto de menino / destroçados ao gosto do destino” (“Fatvm”, p.27), sem qualquer laivo de amargura. É recorrente o saudosismo com a ideia de ciclos fechados, situações bem resolvidas: “Como as horas não cessam de passar / como passam os dias, como os anos /.../ Passa também o grande amor, enfim. / Passa até mesmo essa indizível dor / que vem do mundo e vai dentro de mim. / Só permanecerá um devastador / relembro longe, longe... e mesmo assim / só sombras restarão do quanto for.” (“Sombras do quanto for”, p. 30).
A efemeridade e a certeza dos sonhos perdidos não implicam sofrimento: “meu peito agora já não mais se ufana / da paixão, que se outrora foi intensa / já não me traz alento e não me engana.” (“Destempo”, p.31). As lembranças despontam como ‘uma luz longe e fria que se levanta entre os vãos desolados da memória’. A infância, parafraseando Cacaso, é sua pátria, território do inevitável exílio que é a maturidade. Na consciência do poeta, revisitar o passado é tentar recuperar o irrecuperável, pois mudam os lugares e os seres, sobretudo os olhares:
O lugar revisita-me a infância
No longe emaranhado da memória.
Funda-se agora numa outra distância
E me narra, afinal uma outra história.
Não me atrevo a negá-lo. No entanto,
Quando atira-me à mente um novo enredo
Da meninice, um estranhável manto
De brumas e incertezas me põe medo.
O lugar é o mesmo? Outro serei?
Ou é outro o lugar e eu serei o mesmo?
- Ambos mudamos: eu e o lugar!
Daquela infância, longe, me exilei...
A revisitação será a esmo:
Não há onde o meu rosto se espelhar.(“Estranho território”, p. 46)
Assim, escorrem os ‘rios da memória’, os poemas com ‘cheiro de passado’. Em “Os barcos da juventude” (p.62), o eu lírico constata: “A vida em sonho, a hora consentida / as lembranças regressas de um passado / que jamais foi um paraíso em vida / mas foi, a um tempo, um éden imaginado”.
A inexorável passagem do tempo torna vã qualquer tentativa de recuperar o passado. Só a memória pode essa peripécia, acordando o menino que continua a brincar nas palavras do poeta:
A brisa desta manhã
Traz-me uma tênue lembrança
Daquela aurora louçã
Que a memória ainda alcança
Numa tentativa vã
Que contra o tempo se lança
Qual se a brisa fosse irmã
Do meu tempo de criança.
(“Brisa e infância”, p. 63)
O passado é apenas matéria poética; o tempo do poeta é o presente. De ‘mãos dadas’ com Drummond, ele parece repetir os versos mineiros:” Estou preso à vida e olho meus companheiros. ... O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente...”. O menino é apenas uma viagem onírica de sua alma peregrina.
Só pela memória e pelo vinho dá-se permanência ao instante que foge. Só a poesia pode manter acesa a luz no peito do poeta que vive o reverso do mundo.
Não à toa, paira na capa a figura de um pássaro e sua sombra, ambas as imagens num jogo de cores luminosas que intuem sol e mar, elementos recorrentes em seus textos. Não dá para não fazer a relação desse símbolo, também impresso na segunda folha de rosto, com a liberdade criadora e o poder da poesia, essa deusa que é toda canto, que pode perder a pompa, mas nunca a circunstância.
A começar pelo título – CLAROscuro -, se anuncia um amálgama de impressões, sensações e formas, numa poética que sabe da sombra e da escuridão, mas se espraia essencialmente na claridade. Note-se que, na aglutinação das palavras ‘claro’ e ‘escuro’, com a síncope da primeira letra da segunda palavra, tem-se a impressão de que ela sucumbe à primeira, que reina absoluta em sua inteireza, sugerindo o predomínio da luz sobre a sombra.
Luciano Maia é, antes de tudo, um homem apaixonado pela sua língua e pela sua terra, com raízes latinas bem fincadas na epiderme da alma. É telúrico ao celebrar seu chão, como já vimos em outras obras suas, mas a ele não limita seu canto, ao contrário, projeta-o à imensidão, num sentido de universalidade perene. Também sua poética não cabe em rótulos ou estéticas, embora ela escute “sons quinhentistas”; embora luzida num traço barroco, a tecer contrastes e intemperanças; embora tenha linhas que recuperam o simbolismo, com suas vogais alegorizadoras e seu sopro de transcendência.
A liberdade inventiva no processo criador do poeta não pressupõe, entretanto, ausência de trabalho de linguagem. A consciência do texto como um tecido, cujos fios podem se entrecruzar para formar uma tela, e o conhecimento das potencialidades expressivas da língua dão a ele os instrumentos fundamentais para a construção de belas imagens.
Assim, desponta uma poesia que é de sol e de lua, mar e terra, de madrugadas e amanheceres, de sonho e insônia, canções e silêncios, partida e regresso, observação e memória. Há um menino que grita, uma luz que acende, cores que formam matizes nos “momentos que a memória glorifica” (p.19). Se há o “rubro acaso” no findar da tarde, se há a noite como “inconsolável viúva”, há também o encanto da “rosa madrugada” e o “verbo azul da paixão”. Há o sonho – chama azul – que se esfuma na realidade, sem lamento: “Não se cumpriu o seu desejo. / Sabe hoje mais que ninguém / a distância entre as ilusões / da alma / e as mentiras do mundo”. Ao poeta importa ‘a alva porcelana da lua vencer a escuridão da noite’. A perda da ilusão não implica desilusão. Essa é uma das lições que aprendemos:
Eu te confesso que já não me iludo
Com os acenos da noite iluminada.
E já consigo permanecer mudo
À louvação – mentira anunciada.
Procurarei permanecer, contudo
Imune à pena desproporcionada
Ao que o mundo oferece: dores, tudo
Que ao fim e ao cabo na verdade é nada.
(“Partida” p. 59)
No diálogo com suas leituras, cria-se, para além da intertextualidade, um vínculo com a filosofia atemporal, bem como com a diversidade de estilos dos poetas que são citados em alguns versos: Bandeira e sua estrela da manhã, a ruazinha de Quintana, o violão do aedo Homero, Gonçalves Dias e seu índio ideado, seus amores transbordantes. Há conversas com o rio de Heráclito “Nem a cidade, nem eu / nem as flores, nada mais / como antes foi um dia” (p33); com as estrelas de Olavo Bilac: “Mas as estrelas banharão teu rosto / e o teu saudoso olhar buscará lê-las / nesse instante fugaz em que o desgosto / te olvidará e, de repente, ao vê-las / te esquecerás também do luto posto / em nosso céu de sonhos e de estrelas” (p.36); e a retomada do ritmo poético que inicia Iracema, romance de José de Alencar: “Além, bem mais além, bem mais além... / Para além da penúltima atalaia / Longe, de onde a lembrança não retém / mais do que a onda triste que se espraia” (p.52).
A intimidade com a palavra e sua expressividade, com o bom manejo das escolhas estilísticas, permite a criação de imagens que se desenham em variadas figuras: constroem-se metonímas: “Os navios submeros / se despedem dos espantos / da extravagância dos versos / das lamentações dos cantos.”; comparações: “Espumas como mortalha / de afogados insepultos” (p.35); personificações: “e o luar beijando / o espelho da correnteza” (p.38), “Vão umedecendo as lágrimas / que chovem dentro de mim” (p.50); sinestesias: “uma luz longe e fria levantou-se / entre os vãos desolados da memória” (p.41); “coração doce” (p.43); metáforas - “A noite fez-se inconsolável viúva / presa ao porto deserto...” (p.22) - que afloram, como o eu poético do poema “Marin Sorescu diz poema às cadeiras” (p. 61), diz: “de invisíveis arcos tendidos...” Também se assinalam quebras de paralelismo semântico: “dos postes descia uma luz alaranjada e hesitante” (p.39) e efeitos inusitados com as rimas guardiãs da musicalidade.
Antônio Cândido, ao falar da criação literária e suas motivações, logo assinalou as três atitudes indispensáveis: a observação, a invenção e a visita à memória. Nesses três esteios, a poesia de “Claroscuro” se compraz, fincando alicerces mais sólidos, sobretudo, na memória, que recupera o cheiro da ‘chuva bisavó’ e a criança insepulta que o homem guarda:
Sou menino, a lua me comove
E uma canção inédita se escuta
Às horas da madrugada desse então
Penetrado de luz e paixão.
(“Poema em regresso”, p. 19)
Na sedução do fado que torna inevitáveis as dores e os silêncios, o eu lírico se declara dono de um “Discurso franco e gesto de menino / destroçados ao gosto do destino” (“Fatvm”, p.27), sem qualquer laivo de amargura. É recorrente o saudosismo com a ideia de ciclos fechados, situações bem resolvidas: “Como as horas não cessam de passar / como passam os dias, como os anos /.../ Passa também o grande amor, enfim. / Passa até mesmo essa indizível dor / que vem do mundo e vai dentro de mim. / Só permanecerá um devastador / relembro longe, longe... e mesmo assim / só sombras restarão do quanto for.” (“Sombras do quanto for”, p. 30).
A efemeridade e a certeza dos sonhos perdidos não implicam sofrimento: “meu peito agora já não mais se ufana / da paixão, que se outrora foi intensa / já não me traz alento e não me engana.” (“Destempo”, p.31). As lembranças despontam como ‘uma luz longe e fria que se levanta entre os vãos desolados da memória’. A infância, parafraseando Cacaso, é sua pátria, território do inevitável exílio que é a maturidade. Na consciência do poeta, revisitar o passado é tentar recuperar o irrecuperável, pois mudam os lugares e os seres, sobretudo os olhares:
O lugar revisita-me a infância
No longe emaranhado da memória.
Funda-se agora numa outra distância
E me narra, afinal uma outra história.
Não me atrevo a negá-lo. No entanto,
Quando atira-me à mente um novo enredo
Da meninice, um estranhável manto
De brumas e incertezas me põe medo.
O lugar é o mesmo? Outro serei?
Ou é outro o lugar e eu serei o mesmo?
- Ambos mudamos: eu e o lugar!
Daquela infância, longe, me exilei...
A revisitação será a esmo:
Não há onde o meu rosto se espelhar.(“Estranho território”, p. 46)
Assim, escorrem os ‘rios da memória’, os poemas com ‘cheiro de passado’. Em “Os barcos da juventude” (p.62), o eu lírico constata: “A vida em sonho, a hora consentida / as lembranças regressas de um passado / que jamais foi um paraíso em vida / mas foi, a um tempo, um éden imaginado”.
A inexorável passagem do tempo torna vã qualquer tentativa de recuperar o passado. Só a memória pode essa peripécia, acordando o menino que continua a brincar nas palavras do poeta:
A brisa desta manhã
Traz-me uma tênue lembrança
Daquela aurora louçã
Que a memória ainda alcança
Numa tentativa vã
Que contra o tempo se lança
Qual se a brisa fosse irmã
Do meu tempo de criança.
(“Brisa e infância”, p. 63)
O passado é apenas matéria poética; o tempo do poeta é o presente. De ‘mãos dadas’ com Drummond, ele parece repetir os versos mineiros:” Estou preso à vida e olho meus companheiros. ... O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente...”. O menino é apenas uma viagem onírica de sua alma peregrina.
Só pela memória e pelo vinho dá-se permanência ao instante que foge. Só a poesia pode manter acesa a luz no peito do poeta que vive o reverso do mundo.
Claroscuro é a poética da serenidade, do azul que é chama e verbo, da sombra inevitável da escuridão que pranteia as saudades e os amores vãos. É a poética de estrelas, fogos e luzes, de céu e mar, de felicidades presentes e saudades bem degustadas.
Aíla Sampaio
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