quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Clarices: Clarice Lispector em vários rostos, tons e matizes




Clarices: uma homenagem, livro organizado pelas professoras Fernanda Coutinho e Vera Moraes, pelo aniversário de 50 anos do volume Laços de família e pelos 90 que a escritora faria se estivesse viva, como o plural já sinaliza, traz Clarice Lispector em vários rostos, tons e matizes. A coletânea foi lançada em dezembro de 2011, no Centro Cultural Banco do Nordeste, no mesmo dia da abertura da exposição Clarice: Retratos, com curadoria de Fernanda Coutinho e Inês Cardoso.

Não apenas os contos do livro aniversariante constituem objeto de estudo dos artigos, nem somente artigos falam da escritura de Clarice. São 540 páginas com 26 trabalhos acerca de seus contos, romances, crônicas, biografias, e duas entrevistas feitas pelas organizadoras da coletânea com pesquisadoras tutelares da obra clariceana: a brasileira Nádia Battela Gotlib, autora de Clarice fotobiografia e Clarice: uma vida que se conta; e a professora francesa, Nadiá Setti, responsável por vários estudos sobre a obra da escritora na Sorbonne.

Dizer que os treze contos de Laços de Família já foram exaustivamente estudados no Brasil e em outros países não é nenhum modo de considerar os estudos acerca deles repetitivos, ao contrário, é uma forma de mais se admirar as suas possibilidades de interpretação que não se esgotam nunca e sempre conseguem surpreender o leitor. São 13 contos centrados, tematicamente, no processo de aprisionamento dos indivíduos através dos “laços de família”; 10 deles, notadamente, têm mulheres como protagonistas, e falam de sua prisão doméstica, de seu cotidiano, de suas formas de vida convencionais e estereotipadas. As narrativas parecem focar a classe média carioca, numa visão desencantada e descrente dos laços familiares, das convenções e dos jogos de interesses que predominam nas relações.

O artigo que abre a coletânea Clarices, “En verdad, Clarice Lispector”, de Aina Pérez Fontdevila, focaliza a escritura de Clarice, fala sobre a crítica que vincula sua criação ao feminino, assegura-lhe contornos míticos e faz a analogia escritura e corpo.

A mulher e o feminino são, inevitavelmente, as nuanças que mais se desenham em seu mundo ficcional, as matizes maiores dos seus textos. Assim, são também os leitmotivs de estudos mais constantes, como se pode ler nos artigos: “Laços de uma outra ordem – uma análise bakhtiniana do conto ‘Feliz aniversário’, de Clarice Lispector”, escrito por Gabriela Lírio Gurgel, que faz uma enunciação dialética entre o psíquico e o ideológico; vida interior e exterior. “Na dança de Eros e Thanatos: movimentos de vida e morte em Laços de Família”, de Olga de Sá, autora do livro A escritura de Clarice Lispector, se disserta sobre a sensibilidade do feminino.

Em “Mulheres, baratas e coisas afins”, de Paulo Germano Barrozo de Albuquerque, levantam-se também questões ligadas ao feminino e faz-se a relação entre escrita e essência feminina nos textos dos livros Correio feminino e Só para mulheres, ambos organizados por Aparecida Nunes. Em “Inquietudes de ser mulher em Laços de Família”, de Vera Moraes e Maria Elenice Costa Lima, analisam-se crônicas que focalizam a mulher e centra-se a investigação na personagem singular Pequena Flor, mostrando as relações eu versus outro e eu versus eu.

O leitor de Clarices se vê diante de um caleidoscópio de imagens e significações inesgotáveis do universo feminino, desbravando novas leituras e possibilidades de interpretação. No artigo “O verde úmido subindo em mim: a mulher e a magia do jardim em Clarice Lispector”, Vera Moraes analisa a crônica “O ato gratuito”, do livro A descoberta do mundo, focalizando ainda outras crônicas da mesma obra, e os contos “O Búfalo”, “Amor” e “Mistérios em São Cristóvão”, com apoio teórico de obras de Walter Benjamim, Maurice Merleau-Ponti e Didi-Huberman, resultando num belo estudo fenomenológico. Em “A hora perigosa da tarde nos Laços de Família: Clarice Lispector e o movimento feminista”, Nilson Dias perquire a busca da identidade, debatendo os confrontos entre a mulher e seu mundo normativo, assunto reiterado praticamente em todos os enredos.

“Três mulheres de Pedra ou de possíveis atalhos para um rompimento de cerco – uma leitura do romance A cidade sitiada”, de Gilberto Figueiredo Martins, por sua vez, enfoca as relações de alteridade na cidade, as máscaras e os disfarces sociais no universo dos personagens, citando críticos como Roberto da Matta, Regina Pontieri, Mary Del Priore, Nicolau Sevcenko e atribuindo uma dimensão documental à obra.

A infância é outro tema visitado, em diferentes abordagens. Em “De máscaras e desejo: infância na contística de Clarice Lispector”, Élcio Luís analisa dois contos emblemáticos – “Felicidade Clandestina” e “Restos de Carnaval” – num aporte psicanalítico do desejo infantil e dos obstáculos a serem transpostos para a realização deles. “Clarice e a infância jamais perdida”, de Fernanda Coutinho, resgata a Clarice menina, nas ruas de Recife, para intuir as páginas lidas que encantaram e viraram as palavras poéticas da escritora. São as vivências dos tempos de criança que norteiam, de acordo com a professora, a criação subsequente da escritora que enveredou pelas letras em tenra idade.

Já “Margens da alegria: a infância em ‘A menor mulher do mundo’”, de Sarah Diva da Silva Ipiranga, associa surpreendentemente as reações de Pequena Flor, a pigméia minúscula que tem medo de ser devorada, ao comportamento infantil, embora já seja ela uma mulher e esteja grávida.

Embora, como já se disse, os artigos não se limitem à análise das narrativas de Laços de Família, é dessa obra que surge a maioria dos artigos, cujos enredos propiciam diálogos homoautorais, o que dá unidade ao livro, pelas recorrências temáticas e ressignificações.

A análise do processo criador aparece à luz da Poética do devaneio, de Gaston Bachelard, em “Poética e devaneio do processo criativo de Clarice Lispector”, de André Luiz Gomes e Jean Claude Miroir. Nesse esteio de análise da escritura, tem-se, ainda, “Devaneio e embriaguez duma rapariga”: Clarice Lispector e a narração falsificadora”, de Ilza Matias de Sousa, pesquisa embasada em teóricos como Gilles Delleuze, Maurice Blanchot, Féliz Guattari, Jacques Derrida, Michel Foucault. “A bruta flor do amor”, de Lúcia Castelo Branco, com base em textos de Maurice Blanchot e Jacques Lacan, investiga os caminhos do leitor do conto “Amor” e fala sobre as contradições dos sentimentos nele existentes. Em “’Mistério em São Cristóvão’ ou os mascarados e a mocinha do fio branco”, de Odalice de Castro Silva, destacam-se os jogos de linguagem e esconde-esconde da autora de ‘escrita insidiosa’, que constantemente escamoteia a relação entre vida e Literatura.

“A menor mulher do mundo e outras mulheres nos laços narrativos de Clarice Lispector”, de Ângela Fernandes de Lima” focaliza 4 contos – “A menor mulher do mundo”, “Uma galinha”, “Feliz aniversário” e “A imitação da rosa”, mostrando a relação eu versus o outro e centrando parte da análise na figura da personagem Pequena Flor, a mais diferente das mulheres clariceanas.

Em “O teatro da crueldade e o animal – escrita na fábula da modernidade clariceana”, Ilza Matias de Sousa e Maria Eliane Sousa da Silva analisam os devires, com base em Maurice Blanchot, Antonin Artraud, Gilles Delleuze e Félix Guattari। Em “Nem tanto a Ulisses nem tanto a Penélope: a sobrevivência do mito em Clarice Lispector” de Maria Aparecida Ribeiro, resgatam-se os significados dos mitos na associação entre os personagens de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres a Ulisses e Penélope, da epopeia Ilíada, de
Homero.

Saindo das obras para a vida, mas perquirindo sempre a criação literária, “Essa coisa íntima que está sempre queimando em Lúcio e Clarice”, de Teresa Montero, autora da biografia Eu sou uma pergunta (1999), fala sobre a amizade entre Lúcio Cardoso e Clarice Lispector, suas influências e trocas de afetos.

O diálogo da literatura com outras linguagens, por meio do texto clariceano, aparece nos artigos de Ermelinda Ma. Araújo Ferreira (“Sujos quintais com tesouros: escrita e riprografia em CL”), que investiga escrita e riparografia, fazendo a equiparação da escrita clariceana à riparografia da pintura; e no de Taciana Oliveira, “Acordes para um roteiro”, que disserta sobre o filme “A descoberta do Mundo”, dela em parceria da cineasta com Teresa Montero, biógrafa de Clarice; a proposta é, no filme, tecer o diálogo da obra com a autora. Já “Clarice por trás da objetiva” é uma resenha sobre o livro Clarice fotobiografia, de Nádia Gotlib, feita por Ricardo Iannace, acerca da cronologia de fotos publicadas no volume.

É interessante, também, ler crítica sobre a crítica, - “O leitor sitiado e a renovada experiência da leitura: uma crítica que se conta”, de Diana Junkes Martha Toneto, faz uma leitura crítica do livro Clarice: uma vida que se conta, de Nádia Gotlib. Por último, sabe-se acerca do catálogo da coleção Clarice Lispector do Instituto Moreira Sales, bem exposto por Fábio Frohwein, com o inventário de todos os arquivos, correspondências, documentos sonoros, pinturas, fotografias e obras.

Clarices: uma homenagem é um marco na fortuna crítica da obra de Clarice Lispector e se afirma, desde seu lançamento, como um livro fundamental acerca da diversidade e complexidade do texto clariceano bem como de sua vida mitificada e ilusoriamente compreensível por meio dos seus escritos.

Aila Sampaio

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