domingo, 17 de agosto de 2014

Mademoiselle K: um casamento entre o Jornalismo e a Literatura





A crônica é um gênero essencialmente jornalístico; simples, direto e sem firulas, por isso saboroso. A mistura de ficção e realidade somada a uma pegada poética e à astúcia criativa dos escritores deram literariedade ao gênero, que foi /é praticado por uma plêiade de diferentes épocas: Machado de Assis, Nélson Rodrigues, Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Rubem Braga, Martha Medeiros, entre tantos.

A leveza da linguagem, que se aproxima da oralidade, torna o texto corrediço, fazendo fluir a leitura e dando menos densidade a assuntos ligados à vida social, política, econômica etc. Ruy Lima, jornalista experiente e leitor atento do texto literário, transpõe a fluência de sua oralidade para o texto escrito e, em seu livro Mademoiselle K e outras histórias (2013), exercita com humor e ironia sua crítica à sociedade e sua hipocrisia, aos políticos e suas tramoias, mesclando experiências de viagem ao cotidiano sem rotina com a fictícia amante francesa.

Mademoiselle K é um personagem  usado estrategicamente pelo autor para falar dos costumes do nosso País, das prioridades dos nossos governos (“Cada governo deixa sua marca da maneira que acha mais adequada. O nosso optou por obras monumentais de engenharia. Coisas vistosas, Bonitas de se ver. Mas não necessariamente úteis ou prioritárias. O superaquário da praia de Iracema, o novo estádio do castelão, de mais de 500 milhões de reais” p.26), numa sinceridade destemida admirável. Sua ironia, bem como a ingenuidade da francesa dão um tom de humor aos assuntos sérios, como as obras faraônicas dos governos, a Copa do Mundo no Brasil e seus dirigentes, a monarquia, deputados negligentes com o pleito, com assuntos em foco  como a sogra, o casamento, o cinema, o metrossexual, o sexo tântrico, o futebol, os dançarinos profissionais, o medo de avião, as dietas, entre tantos mais graves e mais triviais, numa miscelânea interessantíssima de situações.

A sua vivência como repórter nos coloca em cenários como os das cidades de Fortaleza, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo, transpondo-nos rapidamente à Manhattan, Seul, Joanesburgo, Guadalajara, Paris, Londres ou emoldurando acontecimentos passados em países como Cuba, México, Cabo Verde, China. Convivemos, durante a leitura, com personagens reais como Fidel Castro, Jorge Luís Borges, Ferreira Gullar, Octavio Paz, Pelé, Galvão Bueno, Silvio Rodriguez, Elis Regina, Henfil, Wanda Figueiredo, Ângela Borges, Adolfo Bloch, vivendo com eles episódios curiosos. Participamos, também, das experiências na cobertura jornalística que fez na Copa de 2010 na África e de suas muitas incursões jornalísticas dentro e fora do Brasil, tal a cobertura da greve geral que detonou o regime militar no Chile em 1984.


A ternura dos relatos que retomam a infância em Belo Horizonte e a família; a ironia com que refere os assuntos ligados à política e à economia; a sinceridade com que fala de prazeres e desprazeres da vida e das relações afetivas; a sensualidade com que atura as frivolidades da amiga-amante, tudo revela a cosmovisão e os valores de um homem que não se mantém à margem do poder, mas não se rende ao jogo hipócrita dos valores que ele impõe. A prosa do Ruy é elegante, corta sem deixar cicatriz; ele finaliza os episódios de modo sarcástico ou evasivo sem deixar brechas para o vulgar ou o vazio. Diz o que quer sem pedir licença. E Mademoissele K, a amiga, é a chave da perdição e da inocência de suas palavras, a estratégia bem urdida que propicia o casamento perfeito entre o Jornalismo e a Literatura!


Aíla Sampaio


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