sexta-feira, 14 de abril de 2017

As teias ficcionais de Safira não é flor




  





Aíla Sampaio
(Professora da UNIFOR e doutoranda em Letras pela UFC)

 

O romance Safira não é flor, do jornalista Pádua Lopes, transporta o leitor para a Europa, mais precisamente para a Itália e a Grécia, e o faz mergulhar na história, na arte e na gastronomia das regiões visitadas nesses países: Veneza, Florença, Roma, Milão, Atena, com descrições suntuosas sobre um passeio pela “larga rodovia na orla do Mar Egeu, passando diante da ilha de Salamina” e pelo Istmo de Corinto, (LOPES, 2016, p. 159), com detalhes históricos diluídos na trama. 


A narrativa em primeira pessoa dá a impressão de ser o protagonista, um homem culto e apaixonado pela arte, o alter ego do autor. São as teias ficcionais que enredam o leitor e o fazem refletir, viajando na imaginação, sobre a liquidez dos amores virtuais que o casal, seu companheiro de viagem, vive.

Duas pessoas casadas – Pedro Pantoja e Safira - conversavam furtivamente pela internet e resolveram se conhecer pessoalmente num encontro que já era a partida para uma viagem à Europa. Felinto Estrada, o narrador, os tem como companheiros de aventura, mas logo percebe que os seus interesses são diversos: o casal quer apenas viver o romance, enquanto ele se interessa por conhecer todos os monumentos e obras de arte sobre os quais já leu, esbanjando um vasto conhecimento prévio de todos eles. 

O título traz uma ironia velada. Safira, a pedra preciosa, na narrativa, é o nome da mulher que deixa o marido resignado em casa, com os filhos, e viaja para viver uma aventura com um desconhecido, ávida por dar tempero à sua vida sexual. De personalidade leviana e fútil, ela conhece o seu papel de apenas amante e companheira de viagem, mas demonstra querer mais que isso. Assim, Safira não é flor parece a definição in absentia da mulher, que se faz por um adágio que tem tudo a ver com ela: 'Safira não é flor… que se cheire'! 


Tanto assim que, após o retorno, ela confessa, em carta a Pantoja, que visitava sites pornográficos na internet e sentia “anseio de libertinagem” (LOPES, 2016, p. 253), justificando, desse modo, o adultério; retoma a relação com o marido e faz em sua companhia viagem de lua de mel  ao velho mundo, deixando o amante para trás, após tentativas vãs de reconciliação com ele. Ela conclui, afinal, que “a internet é um atalho para a felicidade, que enfeitiça para confiar incondicionalmente nos parceiros virtuais” (LOPES, 2016, p.248).

A trama tem função na narrativa, mas é secundária. O leimotiv é mesmo o turismo cultural: os museus, com as mais variadas obras de arte, os monumentos históricos, os teatros, as ruas e as belezas arquitetônicas. Embora, por vezes, pareça um romance histórico, trata-se, na verdade, de literatura de viagem. A história não é, entretanto, autobiográfica, configura um relato de viagem, que faz transbordar o “universo cultural” do narrador, cujas observações expõem mais para o “âmbito cultural dele mesmo do que para o lugar visitado, ainda que [fale] também deste”, como assegura Junqueira (2011, p. 45).

Ribeiro adverte que “Os relatos de viagens são subgêneros da biografia e da autobiografia”, assegurando que esses dois últimos gêneros “contemplam a narrativa de uma vida toda, com início, meio e fim”, enquanto “o relato de viagem torna-se apenas uma ínfima parte de um todo, uma espécie de metonímia da vida”. De fato, a narrativa de Estrada traduz um recorte do mundo dele, seu vasto conhecimento das artes visuais, da literatura e da arquitetura, revelando seu caráter sensato e sério de advogado bem sucedido, o que não o impede de se deixar envolver pelas peripécias dos amigos amantes, hedonistas e autocentrados demais para compreenderem o significado da viagem para o amigo. A história do casal foi, na verdade, um pretexto para a demonstração da vasta cultura do narrador e para uma crítica à relações factíveis iniciadas em sites criados para essa finalidade.

No retorno ao Brasil, Pantoja renega a experiência da viagem com alguém que conhecia apenas das salas de bate-papo, e o romance tem fim como começou: no aeroporto. Ele continua suas aventuras virtuais e suas viagens, como um “Don Juan da era digital” (LOPES, 2016, p.230). Sugere que Estrada escreva um livro e entrega a ele os e-mails e a carta de Safira. Essa é uma estratégia para que o narrador não onisciente tenha conhecimento total dos fatos e consiga arrematá-los.

O discurso literário de Pádua flui com leveza na pena de Estrada. Tudo é perfeitamente descrito, como a construir um retrato realista dos cenários e dos personagens. Como a escrita se reporta a um passado (ficcional) recente, todos os detalhes são resgatados da memória, e o fluxo de informações envolve o leitor, que se deixa absorver pelo turismo cultural que faz com a leitura e entende a crítica, sem moralismo, às relações inconsistentes e efêmeras iniciadas na internet, sem solidez no mundo real.

Há várias considerações na obra sobre o assunto. Ana Marta, personagem circunstancial que o trio conhece em Roma, diz: “A internet abriu um campo inesgotável para as fantasias, sobretudo as da sexualidade. O adultério virtual choca porque as mulheres estão indo ao ataque por parceiros e por estímulos da libido” (LOPES, 2016, p. 80). Estrada completa a conversa falando sobre a transformação nos casamentos, a difusão de pornografia e o consumo de drogas. Já Pantoja fala do vício e da susceptibilidade a crimes virtuais. O romance não propõe, mas leva o leitor a uma reflexão sobre o uso da internet e a fragilidade das relações por meio delas iniciadas; coloca o homem e a mulher em igualdade de condições, sujeitos aos mesmos riscos, sem sexismo ou preconceito. 


É, de fato, auspiciosa a estreia de Pádua Lopes no romance. Valem o passeio pela Europa, as 'aulas' de história e  as considerações sobre o tema atual que tanto tem suscitado atenção... e o mais interessante: tudo enredado pelas teias ficcionais, sem qualquer compromisso com a verdade, embora 'cutucando-a com vara curta'. Aguardemos o próximo!


REFERÊNCIAS


LOPES, Pádua. Safira não é flor. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2016

JUNQUEIRA, Mary Anne (Org.); FRANCO, Stella Maris Scatena (Org.). Cadernos de Seminários de Pesquisa (vol.II). São Paulo: USP – FFLCH - Editora Humanitas, 2011. v. 1. 129 p.

RIBEIRO, Roberto Carlos. Impressões de um viajante europeu na Ásia .In: Ciência & amp; Letras . Porto Alegre, n. 48, p. 223 - 233, jul/dez. 2010. Disponível em: Acesso em: 30/03/2017





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