quinta-feira, 11 de outubro de 2007

DÔRA, A PERSONIFICAÇÃO DA DOR

Resumo

Falaremos acerca da personagem Maria das Dores (Dôra), protagonista do romance Dôra, Doralina, de Rachel de Queiroz, inicialmente, reconstruindo sua imagem física e seus traços comportamentais, possíveis de verificar através das diversas situações vivenciadas e das relações estabelecidas com as outras personagens. Sua postura diante da diversidade de circunstâncias com que se depara aparece não por meio de descrições, mas de sua própria atuação. Em seguida, traçamos sua trajetória de dor, iniciada no parto da mãe e no estigma do nome, e perpetuada até o momento em que ela perde o seu verdadeiro amor e retorna às suas raízes.

Palavras-chave: Romance, personagem protagonista, traição, amor, dor.

Considerações iniciais

Embora sejam seres essencialmente de linguagem, fictícios, edificados a partir da memória e da imaginação do escritor, alguns personagens parecem saltar do papel e adquirir vida no mundo real. O leitor constrói uma imagem através da realidade, que figura apenas como um dado inicial, já que é ela o espaço em que as virtualidades imaginadas podem se tornar concretas (CÂNDIDO, 1976).
Tal ocorre em Dôra, Doralina, romance de Rachel de Queiroz, publicado em 1975. O discurso constitui-se de um relato memorialista da personagem protagonista, que conta a sua história, e se apresenta com uma existência quase palpável. Ela narra os fatos, tecendo um retorno ao passado e resgatando, a partir de suas vivências, outras personagens que, inevitavelmente, participaram da sua vida.
A exposição de uma história já transcorrida evidencia que o passado é contado no momento presente, depois de tudo consumado.

Felizmente já faz tempo. Pensei que ia contar com raiva no reviver das coisas, mas errei. (p. 9)

A narradora se transporta em flash back, voltando somente no final, ao ponto de onde iniciou o relato:

O círculo se fechou, a corda mordeu o rabo: eu acabei voltando para a Soledade. (p. 232)

A antecipação do final, própria das narrativas cíclicas, não compromete o interesse do leitor, que se envolve na ânsia de descobrir como e por que a personagem chegou àquele estado.
O fato de a história já ter sido concretizada no tempo imprime grande força realizadora e remete o leitor à certeza de que o narrador domina até os menores detalhes, ganhando, por isso, intensa credibilidade. Lucácks (1965), a esse respeito, diz que “o caráter de passado é um meio de composição fundamental, prescrito pela própria realidade do trabalho de articulação e ordenamento da matéria”. Em Dôra, Doralina, só o essencial é narrado; a seleção dos momentos parece já ter sido feita pela própria vida. A verdade da personagem é, assim, plenamente assegurada.

Essa empatia com a personagem protagonista induziu-nos à necessidade de compor a sua imagem física, sua forma de ser e de agir, bem como despertou a curiosidade de traçar o seu percurso de dor iniciado no seu próprio nome e concretizado na sua história. É isso que tentamos fazer neste trabalho, oportunamente utilizando passagens da obra e confrontando-as com a nossa análise, no intuito de comprovar o que dizemos.

A personagem Dôra

Narradora e protagonista da história, Dôra ultrapassa os limites da ficção e torna difícil flagrar os limites que separam com nitidez a realidade da fantasia (BRAIT, 1990). Tentaremos, através das possibilidades oferecidas pelo texto, delinear alguns dos seus traços físicos e comportamentais, através de descrições feitas por outras personagens ou de atitudes em que transparece sua maneira de ser e de agir ante as situações vivenciadas.

Características físicas

Poucos traços físicos da personagem são revelados. Alguns aparecem através da voz de outras personagens, como é o caso de Xavinha, agregada de sua casa, que se refere ao corpo de Dôra como raquítico, difícil de realçar uma roupa, referindo-se a ausência de seios.

Sr. Brandini, quando Dôra aceita o papel de atriz em sua Companhia de Teatro, refere-se a ela como magricela, característica que se adequa perfeitamente ao papel de moça ingênua que ela vai representar.
Outras vezes essas mesmas características são colocadas por ela própria, quando, comparando-se à robustez de Senhora, se percebe inferior:

[...] meus fiapos de perna, as ancas finas, o peito batido, o cabelo estirado [...] era sempre a menor da classe, magrela e calada... (p. 23)

Quando Dona Loura, em visita à Fazenda, elogia Dôra e diz a Senhora que, colocando cinco quilos no corpo, Dôra se transformaria numa moça linda, Senhora, com os “olhos frios”, decreta que desafia quem puder fazê-la robusta e acrescenta que já perdeu as esperanças, como se a visse irreversivelmente como uma moça sem qualquer atrativo.
Dôra é, dessa forma, descrita como uma moça pequena, magra, que tem os cabelos compridos e estirados. Nada mais é acrescentado sobre o seu tipo físico. Ela mesma diz:

Talvez eu não fosse bonita, era só engraçadinha. (p. 94)

No final da obra, depois de anos transcorridos, quando encontra Maria Milagre, ela escuta os mesmos comentários, em relação ao seu corpo, de quando era menina, o que nos mostra que não houve transformação em seu aspecto físico no decorrer da história.

Modo de ser e de agir

As atitudes e reações que Dôra vai mostrando nos vários momentos narrados permitem que o leitor perceba os traços de sua personalidade. Apesar de confessar-se tímida, ela se revela uma mulher de luta. Vejamos os momentos em que a sua personalidade se destaca:

• Dôra x Senhora

A difícil relação com a mãe sugere certa rivalidade entre ambas como se, por vezes, medissem forças. Dôra, muito cedo, passa a chamar a mãe pelo nome próprio de “Senhora” ou faz referência a sua pessoa através do pronome pessoal “Ela”, o que marca um corte no laço maternal:

Aos poucos, quase sem querer, fui me acostumando a dizer o nome dela como todo mundo. [...] Por esse tempo eu já tinha deixado de chamar Senhora de “mãe”. Ainda não tomara coragem pra dizer “Senhora” como nome próprio, na vista dela __ dizia “a senhora", o que era diferente. Mas de mãe não a chamava... Nas ausências, quando dava um recado para os outros ou contava um caso em que Senhora comparecia, eu dizia “Ela”. (p. 16)

A não aceitação do nome por parte de Dôra é um dos pontos de discórdia entre as duas. Senhora justifica a escolha de Maria das Dores como decorrência de uma promessa para não morrer de parto. A revelação do motivo da escolha do nome sai com um certo travo, transparecendo a idéia de que Senhora atribui à filha, indiretamente, a culpa de quase ter acabado com a sua vida.

__ O nome foi promessa. [...] Me vali de Nossa Senhora das Dores para não morrer de parto. Não sei se você sabe, mas você quase me matou. (p. 13)

Outra atitude insolente, que mostrava a desconsideração de Dôra por Senhora era a recusa em lhe pedir a bênção. Por mais que a mãe exigisse essa atitude de respeito, comum na época e no ambiente em que viviam, ela respondia que não era negra cativa para ser obrigada a pedi-la, além de saber que a bênção caíra em desuso. O que ela não queria, na verdade, era consolidar qualquer vínculo com Senhora, já que não a considerava apenas uma mãe biológica.
A figura do pai, cujas informações lhe chegam através de pedaços de conversas, é outro motivo para desentendimento entre elas. Senhora nunca se dispõe a falar sobre ele, como se não encarasse a curiosidade da filha como um fato natural. A rivalidade, iniciada provavelmente através da figura dele, se acentua com a presença de Laurindo, pois Senhora não escondia a afeição pelo genro. Dôra não queria dividi-lo com a mãe e desconfiava da possibilidade de interesse de um pelo outro; mas, no fundo, não queria acreditar.

Quando, numa noite de insônia, ouve a voz do marido no quarto da mãe, certifica-se da traição e percebe como impossível qualquer possibilidade de convivência pacífica. A discórdia entre as duas é contínua. Tudo o que Dôra conquistava era através de muita luta. Apesar dos protestos da mãe, por exemplo, ela consegue fazer com que o velho Delmiro se instale na fazenda, argumentando que parte daquela terra lhe pertence.

Com Senhora, sempre me tinha parecido desde pequena, que eu tinha de brigar até pelas horas de sono. (p. 28) /.../ Tive a briga com Senhora e garanti a tapera de Delmiro. (p. 38)

Quando Laurindo morre, logo após a descoberta do seu caso com Senhora, Dôra resolve ir embora. A mãe exige que ela vá de preto, para evitar a língua do povo, mas ela não dá importância e vai de azul, consciente da atitude transgressora que encara e do seu significado:

Tirei o luto para a viagem. Senhora protestou ao me ver com o meu costume azul.
__ Você faz questão de causar escândalo. Cerrei a boca com força, não respondi, mas não mudei de roupa. Atravessei toda Aroeiras vestida de azul. (p. 63)

A ralação entre mãe e filha é substituída pela imposição de personalidades igualmente fortes que disputam algum domínio. O vínculo sanguíneo não atenua o ressentimento que uma tem pela outra, ao contrário, agrava-o na disputa de territórios comuns: a fazenda, a memória do pai/marido, Laurindo.

• A insubmissão a Laurindo

Laurindo, sendo o único homem da casa, era demasiadamente respeitado pelas mulheres, que faziam questão de atender a todas as suas vontades. Dôra fazia questão de não pertencer a esse grupo, embora ele fosse seu esposo:

Ele o senhor macho naquela casa de mulheres [...] era o filho querido, o sinhozinho a quem todo o mulherio fazia os gostos, correndo. [...] Talvez só eu não corresse. Às vezes até me impacientava aquele paparico das mulheres com Laurindo. [...] Então eu fingia que não ouvia quando ele varejava de casa adentro me chamando, demorava para atender. Deixasse ele ver que eu, eu pelo menos, não era negra de ninguém. (p. 49)

Dôra rebate veementemente a perseguição do marido a Delmiro. Quando Zeza a avisa que ele matou a marreca-viuvinha do velho e a trouxe para o almoço, ela reage com firmeza e mostra-se indignada com a atitude do marido, tomando o partido do forasteiro.

Outro momento em que ela se rebela às vontades de Laurindo é quando ele a procura na cama e ela, sem mais suportá-lo após a descoberta de sua infidelidade, se recusa a tê-lo na cama.

Para Dôra, Laurindo passa a ser apenas o homem que se casou com ela; a prova para Senhora de que era capaz de arranjar alguém que a desejasse. Nunca atentou, porém, para as suas obrigações de esposa. Embora confesse que à época em que o conheceu sentiu-se envolvida e achou-o bonito, admite que tudo decorreu de seus horizontes estreitos, de sua vida limitada à fazenda; na sua pouca vivência e no seu desconhecimento do mundo lá fora, ela não tinha qualquer parâmetro para comparação e o elegeu como ideal.

• O grito de independência

A descoberta da traição e, depois, a viuvez, deram respaldo para que Dôra decidisse ir embora para Fortaleza. A sua resolução decorreu de um incontido desejo de independência e liberdade. Só isso poderia atenuar a mágoa que a consumia; ela já não suportava dividir o mesmo espaço com a mãe, sua maior rival.

Ela passa a não mais se importar com os valores impostos na sua educação. Sente-se apta para fazer a sua opção de vida e entra para uma Companhia de Teatro mambembe, passando a ser atriz com o nome artístico de Nely Sorel. Quando alguém atenta para uma possível reação de Senhora, ela se posiciona, com soberba, que é uma mulher independente, que não deve satisfação à mãe.

Ao se sentir dona dos seus próprios desejos e de suas decisões, ela inaugura uma nova fase na sua vida. Fazendo parte da Companhia de Teatro, viaja por todo o país, aberta para experiências totalmente novas. Procura conhecer de perto as relações homem/mulher e se permite ceder as suas curiosidades. Aceita jantar e passear de carro com um admirador, sabendo impor os limites; inclusive se dispõe conhecer a garçonnière (p.106) de um deles e, segura do que não quer, foge sem que nenhuma relação se concretize. O que a impulsiona é a ânsia de conhecer a vida.
No trato com os homens, ela foi aprendendo a criar mecanismos de defesa. Chega a se surpreender com a reação que tem, quando um estranho vai, à noite, procurá-la em sua rede. Reage sem escândalo e tem a iniciativa de calar sobre o assunto. Vejamos como ela mesma passa a sentir a medida do seu crescimento:

Fosse meses antes, aquele ataque noturno na certa tinha me assombrado, me insultado, talvez até me feito correr pra longe.[...] Mas a vida nova ensina depressa e eu tinha aprendido muita coisa na Companhia. [...] Nisso tudo o que quero dizer é que antes de entrar na Companhia, tinha o meu corpo como se fosse uma coisa alheia, que eu guardasse depositada [...] Só que agora o meu corpo era meu. (pp.116-17)

Dôra percebe que perdeu os resquícios do comportamento puritano da “filhinha da dona da fazenda” e se assume como mulher, dona da própria vida.

• O Comandante, um amor (quase) bandido

A valentia que Dôra tinha para enfrentar Senhora e a insubmissão a Laurindo transformam-se conscientemente em passividade e subserviência, quando ela descobre o amor verdadeiro. O amor pelo Comandante domina todas as suas reações e ela passa a viver em função dele:

Nada me interessava muito, eu só via as coisas pela metade, por cima, guardando tudo para ver direito mais tarde, com o Comandante... (p. 161)

Ela, inclusive, não hesita em renunciar à profissão de atriz quando o Comandante assim decide; não se questiona pela mudança, não se importa com o que possam pensar. Os seus desejos passam a ser os dele. Quando ele comunica a Brandini que Dôra não trabalhará mais como atriz porque não suportaria ver sua mulher rebolando em cima do palco, ela não reage, coloca-se do lado dele e diz, inclusive, que não se sentia à vontade na profissão. Depois, confessa ao leitor, através do seu relato, os seus verdadeiros sentimentos:

(Isso que eu dizia não era bem a verdade, não era. Acho, ao contrário, que já levasse muito gosto naquela vida de Companhia) [...] Mas só se eu fosse uma louca e tentasse botar na balança – num prato o Comandante, no outro a Companhia. (p. 166)

Dôra aceita o Comandante como ele é: machista, ciumento, bêbado, agressivo, contraventor. O amor dela, entretanto, não é cego, ela sabe de tudo. Revela inclusive que tinha medo quando ele bebia e se tornava violento, provocador; diz que ele gostava de andar armado e se tornava perigoso quando passava dos limites com o álcool, o que acontecia com certa freqüência.

Ela tem tanta certeza de que a “turma” com quem ele anda é contraventora, que quando sabe da morte de Bigode, um tira abusado que o Comandante conheceu na prisão e que depois se matriculou na Academia em que ele trabalhava, desconfia de que o marido tenha alguma coisa a ver com o fato, o que ele nega. Por não esboçar nenhuma irritação com as suspeitas dela, acaba confirmando-as.

Dôra não esconde que sabe tudo sobre a profissão dele; guarda em casa muitas caixas de produtos contrabandeados e até o ajuda a esconder a arma clandestina que ele possui, numa conivência assumida, quando a polícia vai à casa deles em revista. Depois que ele volta da prisão, efetivada por suspeita de contrabando, ela não demonstra qualquer reação, preferindo omitir-se a qualquer julgamento de sua conduta moral. Ela mesma revela que não entendia, não queria entender, porque não tinha importância nenhuma o acontecido; só queria tê-lo de volta. Confessa, inclusive, que não se engana, aceita-o inteiramente por amor:

Ai, eu fazia um Deus daquele homem, podia estar muito errada, não sei. Afinal o amor é isso mesmo, a gente pegar um homem ou uma mulher igual aos outros, e botar naquela criatura tudo que nosso coração queria. Claro que ele ou ela podem não valer tanta cegueira, mas o amor quer se enganar [...] pra mim ele era um deus, chegou deus, viveu deus [...] (p.211)

O Comandante chega até a machucá-la fisicamente, mas ela não esboça nenhuma reação. Com ciúmes, ele bate no seu rosto e deixa nódoas roxas no seu corpo, mas nada disso abala o sentimento incondicional que ela nutre. A esse respeito, Ovídio (2002 p.45) em sua sabedoria milenar, comenta que há mulheres, cuja insolência do parceiro, em vez de afastá-las, atraem-nas, sem que por isso possam ser chamadas de masoquistas; em vez de aviltadas, elas se sentem felizes em terem ao seu lado um homem forte, capaz de dominá-las.

No caso da Dôra, subentende-se que essa submissão tem uma íntima ligação com a sua sexualidade. O Comandante a fez descobrir-se como fêmea. Ele a dominava na vida como a dominava na cama. As iniciativas eram dele; ela, sempre pronta, à espera, obedecia. Bastava o amor que a movia. Vejamos como ele, já doente, ainda queria uma relação sexual. As palavras finais confirmam que, antes, ele era quem tinha as rédeas da situação:

E ele começou a falar na voz que só tinha para mim, e a certas horas era quase tímido, baixinho, carinhoso :
__ Tire essa roupa, venha para a cama...
__ Mas meu bem, você está doente...
Ele insistia, me puxava, com mãos incertas tentava desabotoar os botões do meu vestido...
[...] tirei depressa a roupa, me deitei do outro lado da cama, ajudei o pobre do meu amor a se despir também. Quando nos abraçamos, a pele dele ardia junto da minha... e ele teve um risinho humilde:
__ Ah, hoje só você... Hoje eu não tenho forças para nada.
Fiz tudo o que ele queria __ só eu, como ele disse. (p. 245)

Dôra foi amada pelo Comandante, talvez como nunca tivesse sido na vida; ele a fez Doralina e isso justifica, por si, a relação. Ela assume sua submissão a ele, mas não se pode dizer que houve uma involução no seu comportamento. Quando ela cuida dele bêbado, e compara a situação aos tempos das bebedeiras de Laurindo, percebe-se claramente a dimensão do seu sentimento atual: “era muito grande a diferença entre a obrigação e a devoção”.

No “Livro de Senhora”, ela enfrenta a mãe e Laurindo, embora a situação de filha e esposa sustentem uma certa submissão, já que esses papéis, sobretudo no ambiente em que ela vivia, eram socialmente símbolos de valores a serem preservados. No “Livro da Companhia” ela mostra como, através da viuvez, esses valores podem ser quebrados: não era a mocinha, filha de Senhora, que saía pelo Brasil numa Companhia de teatro, não era uma mulher abandonada pelo marido; era uma viúva, mulher dona de sua vida, portanto. Ao conhecer o Comandante, não existem mais valores a serem quebrados ou preservados; existe o amor que está acima de tudo. A sua submissão é, portanto, uma opção de vida. Observe-se, neste trecho, a harmonia do relacionamento:

O Comandante tinha entendido – e isso era o milagre dele, me entendia sempre, adivinhava o que eu ainda ia fazer, como se para ele estivesse escrito num livro. (p.234)

Para ela, ele era mais que um ser humano, era “um touro, um cavalo de raça, um peixe grande no mar” (p. 239), ela vivia em estado de encantamento, contemplando-o, tocando em suas mãos, seus cabelos, deslumbrada com tanta beleza e com a felicidade de tê-lo. Ela ouvia-o “como se escutasse música” (p.168), extasiada de paixão. A subserviência dela, em nenhum momento pressupõe fraqueza. O desejo de agradá-lo a fazia feliz:

se eu pudesse eu é que dava dinheiro a ele, cozinhava, lavava e passava pra ele, lhe engraxava os sapatos, fazia as coisas mais humildes que eu nunca tinha feito na vida nem pra mim mesma! (p.148)

Ovídio (2002) coloca a condescendência como uma das artes de amar. Observemos suas palavras:

Se sua amiga o contradisser, ceda; é cedendo que você sairá vencedor da luta. Limite-se a fazer o papel que ela lhe impuser./.../ Que a expressão do seu rosto siga a dela. (p.59)

Defensor da submissão em nome do amor, Ovídio (2002) prega a perpétua admiração do amante pelo amado e a dedicação como meios de conquista intermitente. Também coloca o sexo sem pudor como forma de aproximação ainda maior. O amor de Dôra pelo Comandante tinha toda essa sabedoria, como se intuitivamente, ela tivesse descoberto a fórmula da felicidade. Pouco lhe importava questionar a relação de poder. Seu trunfo era ser feliz ao lado do homem amado.

• Dôra assume o Condado de Senhora

Depois da morte do Comandante, só uma coisa resta a Dôra: voltar para a fazenda e assumir o seu lugar, o lugar que fora de Senhora. O vínculo com as raízes reacende-se na necessidade de sobreviver. Encontra tudo decaído, deteriorado, exatamente como ela própria se sente: sozinha no mundo, qual a Soledade abandonada, indo de “água abaixo”.

Ela, madura e dona de sua própria história, deixa transparecer que tem a mãe como exemplo. Sem a presença dela, encontra, finalmente, seu lugar no mundo: Sõ guando retorna, sentindo já fria a cinzs de Senhora, ela dem4nstra gue o que sempre, talvez, tenha guericlo, era o lugar dela

No remate das contas, eu era a filha de Senhora e tinha o exemplo de Senhora. E a casa dela, a terra dela, a marca das suas pisadas para eu pisar. E sem ela atravancando a casa e me tomando a entrada de todas as portas __ sem ela __ lá é que era o meu lugar. (p. 235)

Dôra sempre admirou a mãe e quis impor o respeito que via estampado no rosto dela. Sempre cobiçara sua beleza e sua posição altiva. Tanto é verdade, que ela se sente feliz quando um amigo do Comandante a trata por “senhora”; chega mesmo a refletir: “ou era o título da outra que eu cobiçava?”.
Sentindo-se viúva do Comandante, Dôra faz questão de vestir luto e passa a entender a significação que isso tinha para a mãe:

[...] no sertão achei o preto obrigatório. Era o meu documento de viuvez, ou mais que isso; aquela roupa preta era a carta de marido que eu assinava para o Comandante. (p. 236) [...] O luto, ali, ainda era o passaporte da viúva, me garantia o direito de viver sozinha, sem ninguém me perturbar em nada, de mandar e desmandar no meu pequeno condado [...] o condado de Senhora. Sendo que agora a senhora era eu. (p. 236-7)

Mas a sua viuvez doía “como fogo vivo”, diferente da de Senhora para quem ela era um estado natural de vida; uma forma de sem impor perante a sociedade.
Mesmo assim, é Senhora o seu espelho e, igual a ela, passa a viver am função da terra:

Procurava a todo instante me lembrar de como Senhora fazia; e tudo se repetia agora como no tempo dela, porque mesmo que eu quisesse não sabia fazer nada diferente, e então era a lei dela que continuava nos governando. [...] E aos poucos eu também ia endurecendo, na couraça do meu vestido preto... (p. 239)

Ela se apossa da Soledade com um apego material que a dispersa do mundo interior que se encontra aniquilado. Lá, até a solidão é diferente, porque é conhecida, como ela fala, é antiga e já estava no seu próprio sangue. E nenhum lugar era mais adequado do que a fazenda, que, além de sua, trazia no nome, Soledade, a significação do deserto, da tristeza característica do total abandonado, exatamente como se encontra Dôra, “com a carne esfolada sangrando”.

A rivalidade, certamente, residia no fato de serem parecidas e quererem disputar o domínio dos mesmos espaços, o amor das mesmas pessoas. Com Senhora viva, Dôra ficava em desvantagem, pois era sua mãe, a autoridade da terra que administrava, mesmo sendo Dôra a dona da metade. Era a guardiã das lembranças do pai e, certamente, o alvo do maior interesse de Laurindo.

A personificação da Dor

Observamos que Dôra, em toda sua trajetória, é marcada por uma espécie de predestinação para a dor. Poderemos, seguindo a narrativa, comprovar que tal estigma a acompanha a partir do seu próprio nome __ o que se torna extensivo a sua experiência de vida. É bastante oportuno citar o que diz Monteiro (1991, p. 31) ao comentar o acento diferencial no nome Dôra, que, à época, já havia sido abolido por lei:

[...] a ausência dele (do acento diferencial) faria que o nome Dôra pudesse ser lido como Dora (ó). Rachel de Queiroz quis associar o nome da personagem às conotações do vocábulo dor e, para tanto, a vogal tônica de Dora teria que ser fechada.

Ele comprova sua análise com as primeiras palavras do romance:

Bem, como dizia o Comandante, doer, dói sempre. Só não dói depois de morto, porque a vida é toda um doer. (p. 9)

Maria das Dores é um nome repudiado pela personagem. A fria relação com a mãe a faz supor que a escolha do mesmo foi uma espécie desabafo, como se a mãe, ao nomeá-la, tivesse desejado proclamar ao mundo que aquela criança era as suas dores.
Embora Senhora tenha uma justificativa plausível, que o nome veio em função de uma promessa para não morrer de parto, a simbologia dele não é arbitrária (como não é a do próprio nome de Senhora e o do Comandante). Dôra é, talvez, o que Senhora considera uma “pedra no seu sapato”, já que, em nenhum momento, demonstra amor pela filha.

A dor física

Além do sofrimento que atingia a alma, Dôra experimentou, também, a dor física. Tinha problemas com a vesícula:

Uns dias depois o dor veio de novo com febre e vômitos. E aí fui ao médico nas Aroeiras ... o meu mal era vesícula, algum resto da inflamação do ano passado... (p. 51)

Em função das crises, tanto buscou alívio nas gotas prescritas de Atroveran, que até o remédio foi perdendo e efeito no seu organismo:

[...] engoli o cálice com dois dedos de água e as trinta gotas do remédio, me deitei, esperei, mas não tive o alívio que esperava, fiquei rolando na cama com aquela pontinha do lado, pensando se Laurindo não tinha razão e eu já estava era mesmo viciada e o remédio perdendo o efeito. (p. 52)

Mas não foi a dor física que mais perseguiu Dôra, foram as dores da vida, as marcas de suas irrealizações ou de suas perdas.

As dores da vida

No início do romance, quando se dispõe a narrar a sua história, como lemos há pouco, Dôra já introduz a dor como algo natural à vida: “doer dói que a vida é toda um doer”. Teçamos o trajeto das situações mais difíceis, das quais se originaram todos os seus padecimentos:

• A perda do filho

Dôra tinha um desejo inconfessável de ter um filho. Chegou a engravidar de Laurindo, mas a fruto não vingou. Esse assunto é poucas vezes referido, como se ela nunca estivesse pronta para falar:

Mais de uma vez eu disse que se tivesse uma filha punha nela o nome de Alegria. Mas não tive a filha. [...] Afinal, nem filha nem filho __ um que veio foi achado morto; me dormiram, me cortaram, me tiraram, estava morto lá dentro, ninguém o viu. Mas isso eu falo depois, numa hora em que doer e menos ou não doer tanto. (p. 9)

Como se comprova, o nome que ela escolheria para a sua filha tem uma significação oposta à do seu, como se ela não desejasse nunca para seus filhos a frieza da relação que mantinha com Senhora; nem o sofrimento que a acompanhou a partir do nascimento, quando lhe atribuíram, como de forma premonitória, o nome de Maria das Dores.

A renúncia à maternidade, embora apareça de forma sublimada, deixa entrever um sutil lamento:

Dor se gasta. E raiva também, e até ódio. Aliás se gasta a alegria... Filha, filho, falar franco, eu raramente me lembro do filho perdido. Mas tenho inveja das outras com seus filhos, netos e genros. (p. 9)

Ela sabe que o tempo é o maior aliado para arrefecer os males. Mas, por mais que se resigne, a dor de não ter sido mãe fica clara.

• O desprezo da mãe

Dôra perdeu o pai ainda criança e Senhora nunca lhe demonstrou nenhum carinho. Menina, ainda, era cuidada pelas empregadas da casa, sequer teve uma ama só para si, como as outras meninas também filhas de fazendeiros. Era levada ao Colégio por Antônio Amador, o vaqueiro da fazenda e, freqüentemente se sentia como uma estranha na própria casa, tal o descaso da mãe com as suas opiniões ou vontades. O amor materno inexistia, provavelmente desde o doloroso parto, o que, de certa forma, foge à norma de um amor que é tido “quase” sempre como irrestrito. Badinter (1980, p. 15) diz que a tendência natural é achar que “a maternidade e o amor que a acompanha estariam inscritos desde toda a eternidade na natureza feminina. [...] Toda exceção à norma será necessariamente analisada em termos de exceções patológicas”, mas que a maternidade, por si, não é condição para a incondicionalidade do amor, já que a mulher, antes de mulher e mãe, é um ser como qualquer outro, com qualidades, defeitos e limitações.

As atitudes de Senhora, de fato, não se adequam a uma situação familiar normal; excedem à norma do amor materno incondicional preconizado na própria natureza feminina. Ela demonstrava atitudes propositais, para machucar a filha, como se não se importasse com a mágoa que pudesse causá-la. Quando Dôra teve o aborto, Laurindo vendeu um gado (de propriedade dela) para cobrir as despesas. Só depois ela veio a descobrir que a sua melhor vaca de leite havia sido adquirida pela mãe:

Tinham vendido três reses solteiras, sim, mas a quarta era a minha melhor vaca de leite... por nome Garapu. /.../ E o engraçado era que o comprador do lote todo – quer seria? __ era Senhora mesma. Os bichos de abate revendeu ao magarefe, mas a Garupu ficou no curral da Fazenda, sua.[...] E eu fiquei sentida, fiquei danada, sei lá. Me doeu... (p. 50)

Depois, o relacionamento da mãe com o seu marido extravia toda possibilidade de convivência e a fere de modo irreversível. Mais uma vez a mãe atravessa o caminho da filha como uma rival. Badinter (1980, p. 22) nos adverte que “vemos sempre como uma aberração, ou um escândalo a mãe que não ama seu filho”. Mas acrescenta que o amor materno é apenas um sentimento humano. E como todo sentimento humano, é incerto, frágil e imperfeito. Neste caso, Senhora é tão vítima da situação quanto Dôra, já que ambas são humanas e imperfeitas, o que, de nenhum modo, atenua o conflito gerado pela situação.

É tão forte a certeza de Dôra quanto à frieza da mãe, que ela preferiu a distância absoluta à convivência, o que a fez, cada vez mais, aniquilar qualquer sentimento filial. Quando recebe a notícia da morte de Senhora, ela se mostra indiferente e quase aliviada. Observemos:

Pois a mesma Senhora, que eu pensei que ia carregar comigo pelos séculos e séculos, nem precisou morrer para ir passando. [...] Quando veio a notícia da morte de verdade quase dei um suspiro aliviada. (p. 11)

A ausência do amor da mãe foi uma das marcas mais profundas da vida da personagem. Sobretudo porque ela concebia a figura de mãe como raiz, matriz de sua existência, como o é normalmente. Essa concepção sobre o amor materno aparece esporadicamente durante a narrativa, sempre que ela se refere a algum sentimento em que não se impõem condições. Quando fala do asqueroso tira de nome Bigode, diz que, mesmo ele sendo mau-caráter, a mãe deveria amá-lo porque “mãe é mãe”. No momento em que se refere ao seu amor pelo Comandante, consciente de que ele é um contraventor, ela arremata, como para justificar a sua total aceitação dos defeitos dele: “amor de mãe não é assim?”

No caso, não foi esse tipo de amor o que Dôra recebeu da mãe, aliás, ela nem recebeu amor. Senhora foi uma mãe indiferente, ou, mais que isso, uma mãe que não demonstrava sentimentos pela filha, a não ser de mágoa ou de despeito velado. Entretanto, Badinter (1980, pp.15-6), como temos mostrado, não toma essa ausência do amor materno como uma anormalidade, embora seja essa a tendência das opiniões; ela afirma que “o amor, no reino humano, não é uma norma. Nele intervêm numerosos fatores que não a respeitam e que o inconsciente da mulher predomina amplamente sobre os seus processos hormonais.” Assim, Senhora, no território da psicologia, não se constitui o protótipo da mãe desnaturada, é uma mulher insegura que se afirma pela arrogância e pela negação de toda ameaça aos seus frágeis alicerces. Seja como for, ela se torna a razão da maioria das dores da filha, já que o amor materno não se afigurou, em nenhum momento, inscrito em sua natureza, como ocorre na maioria dos casos.

• A traição

O casamento com Laurindo, aos 22 anos, foi, para Dôra, um meio de afirmação perante Senhora e representava uma forma de mostrar que era capaz de ser vista, amada, como nunca fora, como a mãe jamais acreditou que a filha seria:

Era a primeira vez que uma coisa para mim vinha de graça, sem que eu lutasse por ela, pois tudo partia dele: ele que me procurava com a mão e com os olhos. [...] Ele que me dava as sua promessas e a sua pessoa. (p.28)

Como sempre se sentira sem graça: “eu mesma não tinha grandes esperanças de me casar, [...] namorado nunca achei” (p.21); e sentia-se só, como uma hóspede em sua casa, sem pai, sem avô nem avó, sem tio nem madrinha, Laurindo significava a possibilidade de ter alguém só seu:

Imagine se eu ia dividir a menor parte, quer do namoro, quer de Laurindo com Senhora ou com ninguém! (p.28)

Ela se irritava às vezes com os paparicos das mulheres da casa com Laurindo, sobretudo com os cochichos de Senhora com ele. No fundo, ela preferia não perceber o que se passava à sua frente:

Eu confesso que [...] achava que podia levar tudo do meu gosto, viesse Xavinha com as suas histórias, sentisse Laurindo me escorregar pelos dedos sem que eu tivesse como prender a criatura. [...] E assim ia notando mas não me alarmava – ou não me alarmava muito. [...] E as distâncias que Laurindo ia tomando de mim eu, inocente, achava que devia ser “coisa de homem”. (p. 44)

Como tinha a convicção de que “casamento era para sempre”, Dôra não se abalava com a frieza do marido nem com a sua própria. Ia consentindo essas atitudes como comuns à rotina de qualquer relação.

A certeza da traição, entretanto, acontece. Em uma noite em que Dôra, com dores na vesícula, recusa Laurindo e diz ter tomado um remédio para dor, que logo a faria dormir, ela acorda com o tropel do jumento de Delmiro e vai abrir a porta para receber as dádivas que ele gentilmente lhe traz. É quando ouve vozes no quarto da mãe e se certifica da dupla traição:

[...] quando de repente se ouviu um som abafado, um som de voz no quarto defronte – que era o quarto de Senhora, pegado à sala. [...] E escutei a fala dela: – Vá embora! E depois a voz de Laurindo protestando: – Ela tomou o remédio, não tem jeito de acordar.

Delmiro não sei se escutou tão bem como eu, mas vi que entendeu. E eu, saí correndo pelo terreiro, descalça e de pijama, no pavor de que os dois me descobrissem. Do lado de lá dos quartos do paiol, cai sentada num monte de tijolo e rompi num choro fundo que era mais um soluço fundo – eu tremia com o corpo todo e me vinha aquele engulho violento. Eles dois, eles dois. (p. 53)

Após a descoberta, Dôra fica dois dias de cama, sem querer falar com ninguém. Laurindo, sem nada saber, viaja a trabalho e retorna, depois de três dias, quando ela, indiferente, delega à mãe os cuidados com o cansaço e a alimentação dele. Passa a recusá-lo na cama, mas desconfia de que ele procure “outros consolos” dentro de sua casa e esconde a cabeça no travesseiro para não ouvir nada, numa atitude resignada e, ao mesmo tempo, humilhante.
Quando Laurindo é encontrado morto, e ela fica lado a lado com a mãe a contemplar o cadáver, percebe claramente os sentimentos dela por ele:

Nós ficamos as duas ajoelhadas, de um lado e do outro do corpo; nem eu nem ela chorávamos; mas respirávamos com força, como se a nós duas faltasse o ar, como dois que brigam parando para um momento de descanso. [...] E Senhora não tirava dele os seus olhos, mas também não o tocava – segurava a própria garganta com as duas mãos. Como sufocando um grito. (p. 57)

Com a morte do marido e a lembrança da traição que confirmava a total impossibilidade de permanecer morando com a mãe, Dôra resolve ir embora da fazenda, já que a ferida aberta não é capaz de fechar. Ela revela que tirou o luto, na impossibilidade de tirar a própria pele, arrancar os cabelos. A relação com a mãe chega ao mais extremo silêncio, que a partir da despedida (que nem houve) se torna definitivo.

Não marcaram os três anos, dois meses e dezessete dias de seu casamento, nem a perda do marido; a sua marca mais profunda foi a atitude da mãe, em fazer-se também mulher do genro, como para mostrar que ela, Dôra, não tinha nada de exclusivamente seu: o pai morrera sem que ela pudesse guardar sequer uma recordação de carinho; a mãe não lhe tinha afeto; o marido que lhe coubera nunca fora de fato seu, dividia-o com a própria mãe. Foi tão forte o impacto da certeza dessa traição, que seus estilhaços continuaram em Dôra como se seu corpo permanecesse em carne viva:

Queria não pensar em nada, nada daquilo passado, nunca mais. Doía ainda, como doía de noite! Eu chegava quase a meter os pés da cama e sair gritando – doía, mas tinha que sarar. (p.83)

Ela mesma confessa que, embora depois de todo o ocorrido Laurindo só mereça o esquecimento e a petulância, não foi sempre assim; ela nutriu sentimentos por ele e se sentia atraída, embora logo admita que tudo foi possível porque ela não teve chance de encontrar alguém com quem pudesse pelo menos compará-lo.

Essa revelação nos mostra que, à época da dupla infidelidade, ela gostava dele, ou vivia essa ilusão. Só o verdadeiro amor, o amor do Comandante, a fez ouvir “o nome de Laurindo como um nome de uma história contada por outra pessoa.”(p.11)
Quanto à Senhora, nem a morte fez estancar sua mágoa. Quando o Comandante a repreende pela insensibilidade diante da notícia da morte da mãe, ela confabula que não quer jamais falar a verdade de sua relação com a mãe ao Comandante, não quer abrir a ferida já fechada. Só o tempo e a dor maior, a perda de seu grande amor, pôde transformar a sua mágoa em indiferença:

Senhora. Passo às vezes um mês, mês e meio – e sem ninguém falar nela passo muitos meses, ah, passaria até anos sem me lembrar de Senhora. Mas teve um tempo em que ela me doía e me feria e ardia como uma canivetada aberta. (p.10)

• A falta do pai

O pai sempre foi, para Dôra, a significação do amor filial que ela não encontrava na mãe. Ele morreu quando ela ainda era criança, não lhe deu tempo nem para guardar na memória alguma recordação. Há um desejo incontido de reconstruir a imagem dele.
Na discussão sobre a escolha do seu nome, Dôra expõe a sua curiosidade em saber como o pai a chamava. Senhora não se manifesta. É Xavinha quem fala.

– Seu pai levantava você nos braços, bem alto, e lhe chamava Doralina – “Doralina minha flor:” – Lhe fazia cócegas, você dobrava a risada, era tão pequenininha que ainda estaria dizendo “angu”, “angu”. (pp.19-20)

A falta do pai doía tanto em Dôra quanto o desinteresse da mãe quando ela manifestava a vontade de saber algo sobre ele. Quando Laurindo resolve passar a dormir de rede e Dôra o acomoda no quarto ao lado, Senhora leva para compor a mobília, um cabide de pé que fora do marido e solta, sem querer, que ele era tal e qual, adorava dormir de rede.
Ouvindo a despretensiosa declaração da mãe, Dôra fica ressentida: se nstra ressentida:

O que mais me doía era que os casos e as lembranças de meu pai eu só apanhava assim atirados aos retalhos, que eu ia remendando, sempre com cada fa1ha enorme entre um e outro; por muito que eu pedisse e rogasse quando pequena, me sentasse aos pés dela no chão, suplicando “me conta coisas de meu pai”, Senhora se recusava e o mais que concedia era assim: “Seu pai era um homem muito bom, mas morreu muito moço e me deixou com uma carga por demais pesada nas costas. Não tem nada que contar, a vida de to do mundo é igual”. Crescendo foi que aprendi a ficar de orelhas arrebitadas, pronta para apanhar e esconder comigo, como quem furta, algum pequeno sucedido, recordação, palavra dele, a cor dos olhos, um ar de riso, o número do sapato... (p. 45)

Como não conseguia saber detalhes sobre o pai, Dôra procurava meios de se aproximar do seu passado, através do que era possível resgatar:

[...] de dia gostava de me fechar na alcova, sozinha e pensar no meu pai, ali, como ele era no seu retrato da sala, com o bigode retorcido, a gravata grande com um alfinete de coral rodeado de brilhantes miúdos. (p. 13)

É também outro motivo de mágoa quando Senhora dá esse alfinete a Laurindo, sem importar-se com o fato de ser sua filha a maior interessada na posse da jóia e, neste caso, a pessoa mais apropriada para dar o presente ao marido. Dôra toma essa atitude como um acinte, uma provocação.

Talvez Senhora se recusasse a dividir as lembranças do marido por ciúme. Ele, pelo pouco que se sabe, tinha um grande apego à filha e isso a desafiava, sobretudo porque Dôra era o avesso do que ela era: não tinha a sua beleza, não se curvava às suas vontades, mas havia sido muito amada pelo pai, a quem mal conhecera, mas por quem nutria amor, o amor que nem dava à mãe, nem dela recebia.

• A dor da separação

A dor mais forte, a última e definitiva, fez com que Dôra visse o seu círculo se fechar. A morte do Comandante, o seu grande amor, leva-a a escolher a única forma possível de continuar viva: a opção pela solidão, o rompimento com o mundo que foi partilhado com ele. O Rio de Janeiro passa a ser um lugar símbolo do abandono, já que em nenhum momento ela vivera lá sem a presença dele ao seu lado. Ela decide voltar para a fazenda Soledade como uma forma de reencontrar-se já que a sobrevivência era uma fatalidade, não uma escolha.

No primeiro momento, ela pensou que fosse morrer, dilacerada pela certeza de que aquele homem forte, bonito, idealizado como um deus não existia mais. Depois, entregou-se à inevitabilidade da vida e seguiu seu percurso por puro instinto:

A gente não se enterra em cova de ninguém. Fiquei por ai, dormindo sozinha, comendo sozinha, andando à toa pelo meio dos outros, boiando na corrente como uma casca seca. (p. 235)

A falta dele a habitava e invadia sua alma até atingir a própria carne. Ela sabia que não havia remédio, nenhum recurso possível para aliviar a dor.

Vivia ainda tão cheia dele e ainda tão no espanto da falta dele que a dor daquela falta me roia constante como quem tem fome. [...] eu tinha era que procurar alguns momentos de pensamento livre, tirar a dor dele de cima de mim, tomar aspirina, passar linimento, pra não ter que sair gritando... (p. 237)

Dôra sabia que doeria para sempre, porque a ausência era um fato consumado, definitivo, fora das suas forças:

Nada que eu fizesse, nada nem chorar, nem me rasgar, nem ficar louca e bater com a cabeça na parede, nem cortar as veias – nada era capaz de provocar reação nenhuma nem provocar qualquer resposta, a mais distante. [...] O mais que eu fizesse – se eu fosse dona do mundo não adiantava; se eu fosse o papa não adiantava. Não tem mágica nem milagre nem poder que adiantasse. (p. 238)

Como a personagem mesmo revela, nada era capaz de consolá-la ou pelo menos suavizar o seu desencanto. A saída do Rio de Janeiro e a volta à fazenda foram as únicas decisões capazes de atenuar o peso da ausência dele. Ela deriva para o trabalho, para a possibilidade de reconstruir a Soledade e, através do renascimento de todas as coisas, ela própria redescobrir-se. Assim, o pasto extinto era replantado, os velhos iam morrendo e os novos assumiam seu lugar: o filho de Antônio Amador era o novo vaqueiro; nascia o bezerrinho, neto de sua vaca Garapu. Com Senhora morta, ela era senhora de sua vida, de suas decisões, de sua terra, de suas lembranças, de sua dores, sobretudo.

Nada, entretanto, estancava seu sofrimento; atenuava-o o trabalho, a obstinação em continuar sua história já que ela não estava sob seu arbítrio, mas nas horas em que se via só, com as suas recordações e a certeza da impossibilidade de recuperar o amor perdido para sempre, voltava a doer a ferida que ela guardava em carne viva.

Dormindo, acordada, rolando na cama. [...] Dormindo, acordada, sonhando. [...] E revivia, e relatava e relembrava, naquela horas sozinha eu não podia abafar. (p. 239)

A dor personificou-se nela, adquiriu a imagem dela, se apoderou de sua carne e de sua alma, criou forma, mas não a destruiu. Coexistiram.

Considerações finais

Como vimos, Dôra é uma personagem marcada pala dor. Perde o pai muito criança e é criada pela mãe – uma mulher dominadora, seca, que em vez do amor maternal lhe oferece a indiferença. Elas não se amam, mal se suportam numa competitividade pouco natural. Dôra talvez desejasse ter a força da mãe; ela a admira, acha-a robusta, rosada, enquanto ela sente “um fiapo de gente” e tem, em casa, a posição de uma hóspede. Do outro lado, Senhora, quem sabe, desejasse a juventude da filha; não queria dividir com ela sequer as recordações do marido. Firmava-se numa postura de superioridade como se Dôra, por ser a mais nova e igualmente dona da fazenda, ameaçasse a sua posição.

Laurindo escolheu Dôra para casar-se pela idade e, principalmente, como diziam as más línguas de Aroeiras, porque, escolhendo Senhora, ele teria direito apenas a um pedaço daquela terra. Mas era Senhora, imediatamente, a dona do poder e, por isso, ele precisava ter as duas. Senhora aceitava, porque lhe era cômodo; tinha o seu homem, que era o homem da sua filha, com quem sempre parecia competir, mas permanecia com a sua liberdade e não perdia a proteção do título de viúva. Mas Dôra sabia que merecia mais do que aquele amor de conveniência; casou-se com ele por falta de opção, para mostrar à mãe que existia quem a desejasse. O casamento, entretanto, foi uma decepção; sequer o filho que geraram chegou a nascer.

Mas é a decepção que dá impulso para que Dôra lute e consiga a sua liberdade. A Companhia de Teatro foi o passo seguro para a sua independência. Ela passa a saber o que quer e, sobretudo, o que não quer. Deseja um amor e não qualquer um, como o daqueles homens que se aventura a conhecer. Sabe conviver com o espírito malandro de Seu Brandini, sem que isso a incomode; torna-se atriz, enfrentando as adversidades da profissão, e não perde a sua essência de mulher correta, com princípios bem definidos, embora não queira se ater a nenhum questionamento a respeito do certo e do errado. A fase da Companhia é de liberdade e aprendizagem. O passado permanece como uma pontada bem do lado, que ela vai driblando sem anestesia.

Com o Comandante, Dôra abre mão da independência conquistada em nome do amor. A moça que enfrentava a altivez de Senhora e que não se submetia aos desmandos do primeiro marido, renuncia à profissão que confessadamente lhe agradava e se entrega de corpo e alma a um homem machista, contraventor, com vícios e ímpetos de violência. Ela cala, mas o seu silêncio é expressivo, conveniente. Nesse homem tão cheio de defeitos, ela encontrou o amor e a pessoa amada é o Deus terreno de todo ser humano. Ele lhe deu o amor que o pai não pode dar e que fez tanta falta, o mesmo amor que a mãe e o primeiro marido lhe negaram. Dôra jogou tudo para o alto, porque todo o resto ficava minúsculo diante da sensação de amar com loucura e ser correspondida. Ela não se despersonalizou, porque soube pesar bem os seus desejos e, se cedeu, foi porque foi forte. Os fracos (ou as falsas fortalezas) não são capazes. Se ela se tornou submissa e passiva, foi conscientemente Deveria conhecer as suas necessidades e carências como mulher e fêmea.

Com a perda definitiva desse amor, uma metade foi extraviada. Mas ela não foi destruída; doeu tanto que ficou dormente. A sua chance de se reedificar é no reencontro de suas raízes, é assumindo o lugar que Senhora lhe tirou, enquanto viva. Reconstruindo a fazenda, ela toma posse do condado de sua mãe e passa a ter a posição que outrora, inconscientemente, ambicionou. Só, mas com a certeza de ter-se dado a chance de conhecer a vida e o amor verdadeiro. Ela é a própria personificação da dor, porque a conheceu na carne; sobretudo porque viveu e, como dizia o Comandante, “a vida é toda um doer”.

Dôra á uma personagem complexa, na classificação de Forster (apud CÂNDIDO, 1976), diríamos esférica, já que tem dinamicidade e apresenta diversas qualidades e tendências. O leitor não pode prever que Dôra, a filha de Senhora, tenha coragem de virar atriz e sair pelo país numa trupe mambembe, recebendo presentes de admiradores e até se dispondo a conhecer a garçonnière de um deles; nem que ela vá se ligar a um homem como o Comandante, numa entrega total. Ela diz sim, somente quando quer. É a amiga fiel de Seu Brandini e de Estrela, mas fez questão de ser uma pedra no caminho de Senhora e soube dizer não a Laurindo, quando ele a queria na cama e ela não o desejava. Foi a moça recatada da Soledade, mas foi também a amante fogosa do Comandante sem que sequer fizesse questão de oficializar o casamento. E Dôra é convincente, tanto no riso quanto nas lágrimas.

Rachel de Queiroz atingiu, com a criação de Dôra, a plenitude da personagem feminina iniciada em Conceição (protagonista de O Quinze) e finalizada em Maria Moura (protagonista do Memorial de Maria Moura), como afirmou Lourdinha L. Barbosa (1999). Suas personagens são tão fortes, tão frágeis, tão “humanas” como todas as grandes mulheres do mundo.

Referências bibliográficas

BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
BARBOSA, Maria de Lourdes Leite. Protagonistas de Rachel de Queiroz: Caminhos e descaminhos. São Paulo: Pontes, 1999.
BRAIT, Beth. A personagem. 4a. ed. São Paulo: Ática, 1990.
CÂNDIDO, Antônio et alii. A personagem de ficção. 5a ed. São Paulo: Perspectiva, 1976.
MONTEIRO, José Lemos. A estilística. São Paulo: Ática, 1990.
OVÍDIO. A arte de amar. Porto Alegre: L&PM Editores, 2002
LUCÁCKS, Georg. “Narrar ou Descrever?”. In: Ensaios sobre Literatura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965.
QUEIROZ, Rachel de. Dôra, Doralina. 18a. ed. São Paulo: Siciliano, 1992