A FÓRMULA FICÇÃO-VERDADE
Dias & Dias é o 7º romance de Ana Miranda. Nele, a escritora repete a fórmula ficção-verdade, exercita sua vocação para a pesquisa histórica e confirma que, sobretudo, a vida dos escritores seduz sua criação. Não é à toa que ela é considerada a “renovadora do romance histórico brasileiro justamente por buscar, na opacidade ambígua do passado, aquilo que, nos documentos e arquivos, lhes é lacunar: os elementos poéticos, psicológicos e dramáticos, em poucas palavras, o sentimento vivo do passado” (virtualbooks.terra.com.br).
Em 1989, ela estreou no gênero, com Boca do Inferno, um romance que conta a vida do poeta Gregório de Matos, sua relação com a igreja, a sociedade da época e, claro, com as mulheres. Ela se debruçou sobre o século XVI e resgatou a história do barroco brasileiro, utilizando, como pano de fundo, a Bahia do Brasil-Colônia, a corrupção e as contradições de uma sociedade que se debatia entre os prazeres mundanos e a salvação espiritual.
Em 1995, foi o poeta Augusto dos Anjos que a levou a reconstruir a história do final do século XIX e início do século XX, exatamente a Belle Époque, com A última quimera. Além de mergulhar no universo poético, na vida e nas inquietações metafísicas do poeta, ela traçou um panorama de fatos históricos, como o advento da República, as desavenças políticas, a Revolta da Chibata e a modernização do Rio de Janeiro, então capital do país; o panorama literário também é delineado, quando ela mostra a influência francesa no que se produzia no Brasil e o duelo real entre Olavo Bilac e Raul Pompéia.
No ano de 1996, Clarice Lispector, sob os véus da ficção, é a própria narradora da novela Clarice, uma coletânea de relatos intimistas, curtos e soltos (bem nos moldes clariceanos).
Ana voltou a mergulhar no passado literário, no ano de 2002, e foi buscar, em início/meados do século XIX, a história do poeta Antônio Gonçalves Dias, ou apenas de Antônio, como ele é referido em toda a narrativa, trazendo, com ele, todo o espírito romântico que encanta os leitores de Dias & Dias. A linguagem do livro é tipicamente romântica, bem como a personagem narradora que é a verdadeira protagonista: Gonçalves Dias é personagem in absentia. Não existe senão na recordação de Feliciana, uma mulher sonhadora que, desde os 12 anos, nutre pelo poeta um amor silencioso, que a acompanha pelo resto da vida.
Como nos outros, há, também neste livro, o resgate histórico da época, contextualizando as vidas reais e ficcionais. O rápido delineamento das Revoltas que atingiram o Maranhão é feito, inicialmente, quando Feliciana fala da chegada de seu pai a Caxias. Ela comenta que ele deixou o Ceará para, junto com Pereira Filgueiras e outros nacionalistas (soldados, lavradores, escravos, vaqueiros), capturar o Coronel Fidié, um português contrário à independência do Brasil, que montou resistência na cidade. Liderados por Lorde Cochrane, o pacifista inglês designado pelo Imperador, eles libertaram Caxias e tornaram-na província do Império. O Lorde acabou saqueando a cidade de São Luís por não ter recebido dinheiro pelo trabalho de pacificação.
A segunda referência histórica é à “Balaiada”, revolta dos pobres que dominaram a comarca de Caxias: “No ano de 38 ou 39, eu creio, uma rebelião popular, uma insurreição de ódio, borrachos facinorosos, chefiada pelo vaqueiro Cara Preta, e o Balaio, e o Preto Cosme que tinha sido escravo. Tudo começou na Vila Manga /.../ no Iguará, um vaqueiro chamado Raimundo Gomes entrou na cadeia e soltou seu irmão que estava preso inocente, os presos todos escaparam e aquilo virou uma rebelião que se espalhou pelo sertão inteiro” (p.107) Os pobres tomaram casas de pessoas importantes que fugiam de suas fazendas /.../ A casa de Dona Adelaide na Rua do Cisco fechou de tantos prejuízos, os balaios sabiam que ela era viúva de português (p.110). A revolta termina com a morte dos líderes e sérias conseqüências para Antônio, que, a partir de então, não recebeu mais ajuda financeira da madrasta que “não ia prejudicar os filhos do casal para custear os estudos de um bastardo” (p.111). Antônio “enviou uma carta muito ríspida”, exigiu ajuda e nem mais recebeu resposta. Ele permaneceu em Coimbra, com o auxílio de Teófilo Dias e outros amigos. Ao retornar ao Brasil, ganhou a simpatia do Imperador com seus versos e passou a ser membro do Instituto Histórico.
A INSPIRAÇÃO LÍRICA
O livro é o mais lírico de todos os inspirados em escritores. A estrutura em 10 capítulos, distribuídos em subcapítulos curtos, todos narrados por Feliciana, por meio de relatos confessionais, parece a de um diário pessoal. Os parágrafos longos e a pontuação muitas vezes ausente (ou arbitrária) concorrem para o fluxo quase ininterrupto do discurso, como se a personagem mal precisasse tomar fôlego para falar. O nome Antônio é repetido em frases seguidas, como se para se fazer ouvir em todo o tempo. A linguagem simples e poética é demais envolvente, e a leitura flui quase imperceptível na paixão que contamina página a página. A narrativa cíclica, tem início no dia 3 de novembro de 1864, quando Feliciana, já madura (40 anos), está decidida a encontrar seu amor e o espera no embarcadouro de São Luís, onde ele deverá chegar no brigue francês Ville de Boulogne.
No decorrer dos capítulos, ela conta o início de sua paixão e os acontecimentos transcorridos em sua vida, e o romance termina, exatamente como começa: ela esperando, no cais deserto, por aquele que jamais viria; o navio, conta logo em seguida o epílogo, naufragou. Todos foram salvos, menos o poeta que, doente, não teve forças para pedir socorro e foi esquecido em seu leito. O registro de que entre os pertences do poeta está a carta em que Feliciana finalmente confessa seu amor dá o grande enlace no leitor, deixando-o poder discernir o que é ficção e o que é realidade. Antônio Gonçalves Dias realmente existiu, o naufrágio e as circunstâncias de sua morte também são fatos verdadeiros, mas Feliciana pertence ao imaginário de Ana Miranda, está enredada nas artimanhas de sua criação.
Essa díade verdade-mentira tem sido a coluna vertebral da produção literária de Ana. Ela mergulha fundo na história verídica, depois cria um artifício para ‘embaraçar’ a verdade e faz um pacto com a mentira. Questionada a esse respeito, em entrevista à Revista Literária, ela respondeu: “é uma mentira como fantasia da realidade. Por que a ficção, o romance tem esse compromisso realístico. Você tem que viver, pela própria forma, essa espécie de mentira”. De fato, a vida pode ser inverossímil, a arte não. A responsabilidade de transfigurar a verdade e dá-lhe um toque de ficção exige uma pesquisa séria, e a escritora vai se tornando apenas um elo na construção das histórias, como ela declarou em uma das suas crônicas, publicada na Revista ‘Caros Amigos’: “A leitura sistemática e assídua que realizei nestes últimos anos, sendo grande parte sobre livros de história ou história literária, dotou minha mente de uma desconfortável consciência histórica. Assim, tenho sempre a sensação de que nada me pertence, de que nenhuma palavra que escrevi é minha, de que não sou autora de meus próprios trabalhos, mas apenas um elo na construção literária da humanidade, uma pequena e frágil conexão entre um e outro tempo, massacrada pelas circunstâncias históricas”.
A escolha pela história da vida de escritores não é arbitrária nem constitui uma forma apenas de resgatar a imagem deles. Na mesma entrevista à Revista Literária, Ana deixa clara sua intenção: “Faço isso como uma espécie de ato de gratidão. Eles me dão vivência espiritual e literária e, em troca, eu os mantenho vivos. Acabo os trazendo para um novo tempo, dando uma nova interpretação. Até por que o novo não passa de um esquecimento. Portanto, isso tudo (a literatura) não passa de uma herança, que a gente recebe, decifra e passa às gerações futuras com um toque bastante pessoal”.
O SABIÁ E A PALMEIRA
Os antológicos versos de Gonçalves Dias, imortalizados em sua “Canção do exílio”, funcionam como uma espécie de mote do romance e costuram toda a narrativa: minha terra tem palmeiras / onde canta o sabiá. A narradora, uma mulher simples, filha de um colecionador de pássaros, faz uma analogia de seu amor com os versos de Dias e conclui: “Antônio era o ausente, ele partia e eu ficava, ele sempre viveu em eterna partida, em estado de viagem, um pássaro migrador, e eu sempre parada no mesmo lugar feito uma palmeira, e ele, o sabiá que apenas pousa um instante” (p.113)
Ao referir-se ao livro Primeiros cantos, a narradora diz: “O livro começava pela “Canção do exílio”, que me deixou na maior das felicidades, pois mostrava o quanto Antônio tinha recordações de Caxias, uma saudade cheia de lirismo. Achei, aqui dentro de mim, de meu coração, que Antônio tinha escrito a “Canção do exílio” para mim, porque eu sabia remedar igualzinho o gorjeio do sabiá, então quando ele dizia “ as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”, para mim queria dizer que as mulheres do mundo não eram tão primores a desfrutar como as mulheres daqui, isso eu achava e acho ainda, e quanto ao sabiá, Antônio sabia que papai era um colecionador de sabiás, que tinha os mais belos sabiás das matas /.../ as palmeiras estão aqui, basta eu abrir os olhos e olhar para qualquer lado, eis as palmeiras! E nelas... os sabiás! Um céu cheio de estrelas, mais prazer ele encontra cá!” (p.140). Em várias passagens do relato ela se refere a Antônio como um sabiá. Veja-se mais um exemplo: “o meu sabiazinho criado em gaiola e solto no mundo cruel” (114).
Quando pela primeira vez Feliciana sai de Caxias, traduz a sensação experimentada pelo nômade amado de forma extremamente poética: “Então era aquilo o sentimento do adeus, a ventura do partir, os arpejos da liberdade tocavam meu coração e faziam meu corpo tremular, ventos e correntezas e cabelos, viver para o horizonte, então era aquilo a brisa favorável, a vasta amplidão do mundo que embriagava! as minhas horas passavam curtas e cheias de um inefável suspense, eu nunca havia experimentado aquela sensação de folha ao vento a esvoaçar sem custo /.../ então passei a compreender um pouco as partidas instáveis de Antônio, sua vida sem tino, sem labuta de lasso viandante extraviado” (p.163)
Seu amor se mantém platônico do início ao final do livro, correspondendo a uma das principais características do Romantismo: a idealização – “pensar em Antônio era viajar na minha imaginação, na verdade eu não queria encontrá-lo, tinha até medo disso, e às vezes, antes que cruzássemos na rua eu escapava numa carreira /.../ eu queria mesmo era um eterno monólogo, disse Maria Luísa, no dia que eu encontrasse de verdade Antônio, conversasse com ele, olhasse dentro de seus olhos, ele seria um estranho para mim!” (p.77).
Antônio, que desconhece a existência de Feliciana, em São Luís apaixona-se pele prima do amigo, Alexandre Teófilo, e nutre pela moça um amor quase igualmente idealizado: “Antônio pensou em desposar Ana Amélia, no momento em que a viu pela primeira vez, ele estava necessitado de uma grande paixão impossível, para ser poeta em sua plenitude era preciso algo por que corar, lamentar-se, desesperar-se, e cantar em versos e prosa sua poesia fugitiva” (p.125).
De acordo com a narradora, a recusa da mãe de Ana Amélia ao casamento dela com o poeta foi mais enfática por conta da carta que o poeta a escreveu, falando de sua condição inferior e mostrando-se praticamente indigno de receber a mão da moça em casamento: “Maria Luíza acreditava que Antônio escrevera aquela carta naqueles termos tão desfavoráveis a si mesmo porque desejava no fundo que Dona Lourença Francisca não lhe desse o consentimento para casar com Ana Amélia porque precisava mais de um grande amor impossível do que de uma esposa amorosa e dedicada, porque um amor absurdo seria fonte de inspiração para sua poesia para o resto da vida, um amor discrepante não se desgastaria com a trilha vulgar dos dias e dias, em vez de olhar Ana Amélia na cozinha a descascar batatas ele a veria em sua imaginação, as formas femininas envolvidas numa densa nuvem de musselinas sem romper a corda da lira que o jogaria no mundo real” (p152). Confirma-se, assim, a idealização do amor e a necessidade dele não como vivência, mas como fonte de inspiração. De fato, Ana Amélia foi a inspiração de seus mais belos poemas de amor.
A HISTÓRIA DE ANTÔNIO
O menino Antônio Gonçalves Dias, “filho de português, filho espúrio, mestiço /.../ e de uma mestiça de africano com índio” (p.26) nasceu no sítio Boa vista, nos arredores de Caxias-MA, “lugar de negros escravos e índios, índios bravos e índios mansos das nações aponegri—crans e macame-crans” e foi criado, a partir de certa idade, pela madrasta. Aos dez anos, demasiado precoce, trabalha como caixeiro e auxiliar da escrituração no comércio do pai. Sua inteligência, entretanto, como seu gosto pela leitura, fez com que o pai, em 1835, o desligasse do comércio e o matriculasse no curso Prof. Ricardo Leão Sabino, onde o menino aprendeu latim, francês e filosofia. Anos depois, acompanha o pai a S. Luís, de onde embarcaria para Portugal. Todavia, o pai morre em seus braços, fato que impede a viagem, levando-o de volta a Caxias. Em 13 de maio de 1938, a madrasta o encaminha a Coimbra, onde ele passa a estudar Direito subsidiado por ela, até o episódio da Balaiada, quando as finanças entram em baixa e ela deixa de custear o enteado, que passa a viver dos favores dos amigos.
Regressando ao Brasil em 1845, passou rapidamente pelo Maranhão, voltou a Caxias e chocou seus conterrâneos, por conta do comportamento avançado para a época: fumava e bebia em público, como já se fazia na Europa. Revê a irmã Joana, seu único afeto familiar verdadeiro, e passa uma curta temporada em São Luís, onde se hospeda na casa do amigo Alexandre Teófilo. Lá, conhece a jovem Ana Amélia Ferreira do Vale, então com 14 anos. A paixão resiste à sua temporada, a trabalho, no Rio de Janeiro.
Em 1851, ele volta ao seu estado em missão oficial e no intuito de casar-se com Ana Amélia, já com 19 anos. A mãe da moça, entretanto, não concordou com a união por conta da origem bastarda e mestiça do poeta. Frustrado, ele casou-se, no Rio, em 1852, com Olímpia Coriolina da Costa, por conveniência, o que lhe causou grandes problemas e tristezas por conta do temperamento da esposa que, segundo falavam, era extremamente possessivo: “Olímpia Coriolana não demorou a mostrar sua verdadeira natureza /... Antônio escreveu ao Capanema que sua mulher era educada livremente em uma sociedade livre, e a essas mulheres não se deve crer: é tudo mentira, astúcia, fingimento, hipocrisia, mas em alguns momentos de verdade, na cólera por exemplo e Deus sabe quanto fel cabe na alma de uma romântica” (p.186-7); ela, dizia-se, além de sufocá-lo, o traía. Para fugir dos seus ciúmes, ele, em 1854, viaja pelo Brasil e pela Europa em caráter oficial, a fim de colher dados sobre a História do Brasil. Em Portugal, reencontra Ana Amélia, então casada com um comerciante português falido. Percebe o equívoco que cometeu em sua juventude e compõe o belo poema "Ainda uma vez - Adeus!". Teve uma filha com Coriolana e dela se separou em 1856.
Todos esses fatos da vida do poeta maranhense são desfiados por Feliciana, ao contar a história do seu amor, que tem início quando ela, aos 12 anos, vai ao armazém do seu João Manuel e é atendida pelo menino, então com 13. Ele embrulha o meio quilo de feijão verde; em casa, ela lê no papel o rascunho de um poema: “Olhos verdes”, e passa a acreditar que ele o escreveu para ela, embora não tenha os olhos exatamente verdes: “Talvez ele tenha confundido meus olhos com as vagens do feijão e com as paisagens que ele tanto ama de palmeiras esbeltas” (p.19). Na opinião de Maria Luíza, entretanto, “ele escreveu os versos no papel de embrulho num momento de inspiração e embrulhou por engano o /.../ feijão verde no papel com os versos escritos para outra” (p.22). (* lá embaixo eu comento algo sobre esse trecho).
Ela, então, já adulta, recordando o episódio, conta a história da origem do menino, de quando o pai dispensou a negra-mãe, casou com Dona Adelaide e levou-o para educar. Sobre o menino ela descreve: Antônio era um menino compenetrado, estudioso, o melhor para trepar nas árvores, para fazer armadilhas e passarinhar (p.26) /.../ aquele menino se comportava como adulto /... / tinha treze anos e já sabia cuidar das contas do negócio da família, era tão miúdo, desamparado! E já sabia escrever versos/.../ já era um menino de indissipável melancolia no coração, já de todo emaranhado nos seus fios sutilíssimo (p.52). A madrasta, embora o tolerasse, não lhe dava o mesmo tratamento que dispensava aos filhos: /.../ vi o quanto seus sapatos eram velhos gastos, embora limpos, isso me cortou o coração porque as outras crianças filhas de comerciantes usavam sapatos bons /.../ Antônio estava sempre com a mesma roupa, até no domingo ,.../ sua roupa surrada, sua única roupa talvez, até mancha de ferrugem havia em suas calças (p.20)/.../ ele nem tinha quarto, dormia numa rede na cozinha com as escravas /.../ dona Adelaide fazia cara feia para as leituras de Antônio e ele ia ler na praça /.../ O pai, a despeito de tudo, investiu no seu futuro intelectual, embora desejasse que ele fizesse carreira no comércio: O pai compreendeu o espírito ansioso do filho, seu amor por aprender /... e/ o tirou do balcão para que ele fosse estudar com o professor Sabino (p.52)”.
As descrições feitas do poeta mostram-no como um menino triste e solitário, vocacionado para a poesia: “...um menininho gasto pela dor, antes do tempo (p.22) /.../ Ele nasceu poeta ou talvez tenha se tornado poeta quando leu os primeiros livros de poesias e sentiu-se tocado por aquela expressão de mundos sensíveis /.../ Havia alguma coisa já que o arrastava a outros reinos, algum bálsamo, alguma ânsia de mudança /.../ Antônio deu na poesia contra o vento (pp.24-5) Antônio caminhava na rua, magro, pequeno, com um livro debaixo do braço, menino qual gazela educada pelo deserto, nas águas da corrente da vida, ido pelo orvalho do céu, parecendo mergulhado em um mundo perdido bem no fundo de si” (p.53).
De acordo com a narração, a poesia nasceu com esse espírito melancólico e meditativo do menino solitário. Na vida adulta, levou vida nômade, de pouso em pouso, por casas alheias, sem um porto seguro. Foi recusado pela família da moça que amou verdadeiramente e acabou se casando com uma mulher temperamental, mentirosa, que só acresceu suas dores. Como não bastasse, foi acometido de diversos males: “...ele teve uma inflamação crônica no fígado, um problema no coração que lhe deixava as pernas inchadas /.../ ficou com a voz rouca e presa por uma desordem nos pulmões. Teve uma hepatite subaguda, perturbações no coração, palpitações, inchação nos testículos /... foi para Paris a fim de consultar-se com o famoso doutor Fauvel, teve angina, gastrite...” (p.206). A solidão e a melancolia nunca o abandonaram. Mesmo adulto, vivendo entre mulheres e cercado de amigos, ele “era muito só. Quando sentia melancolia passeava sozinho pelas ruas desertas e silenciosas da cidade, ao luar, respirando a viração noturna ou então embarcava em uma falua a correr o mar, a contemplar as luzes refletidas n’água, a lua, a olhar os navios como se quisesse partir” (p.114).
Fez várias viagens ao exterior, a tratamento; numa dessas viagens, no brigue francês Grand Condé, (p.208) morre um passageiro a bordo e o consignatário, em Paris, considerando o estado de saúde do passageiro Antônio, a quem só permitiu o embarque por ordem superior, dado o seu estado de saúde, manda a Recife, de onde o poeta partira, a nota de seu falecimento. A notícia se espalha por todo o Brasil, e os amigos choram sua morte prematura. “O Imperador [Pedro II] suspendeu a Sessão do Instituto Histórico em homenagem ao poeta que era um dos mais atuantes sócios da instituição” (p.208). Depois de “missas, exéquias e necrológios”, Antônio ‘divertiu-se’ em passear entre os vivos e escreveu aos amigos, avisando-lhes que estava vivo. É publicada, inclusive, no Jornal do Recife, uma carta bastante irônica do poeta sobre a sua própria morte (p.215).
Em 1859, ele continua a fazer suas viagens pelo País, inclusive vem a Fortaleza. Em 1862, volta à Europa para recuperar-se de uma hepatite crônica e dos males que afetam sua saúde. Achando-se gravemente enfermo em Paris, no ano de 1864, é aconselhado a voltar à pátria-mãe. No seu retorno, o navio naufraga e ele, aos 41 anos, é o único tripulante a não escapar, dada a fragilidade de seu estado.
A ESTÓRIA DE FELICIANA
Feliciana, filha de um tenente do exército, que se fixou em Caxias na época do cerco ao coronel Fidié, cedo fica órfã de mãe e é criada pela tia, Natalícia, que se torna amásia de seu pai. Ela mantém contato com a prima Maria Luíza, que mora em São Luiz, casada com Alexandre Teófilo, o melhor amigo de Antônio. Por meio da correspondência trocada entre os dois amigos, Maria Luíza mantém Feliciana constantemente informada do que se passa na vida do poeta. Somente ela e Natalícia sabem da paixão de Feliciana e de suas silenciosas ilusões. Luíza tenta dissuadir a amiga da ilusão de que o poema “Olhos verdes” foi escrito para ela e a aconselha a casar-se com o professor Adelino, que lhe dedica verdadeira afeição. Feliciana, no entanto, limita-se a acompanhar os passos de Antônio e a esperar a sua volta, ler os seus poemas, escrever cartas confessando o seu amor e rasgá-las em seguida.
A primeira vez que sai de Caxias, Feliciana vai a Fortaleza, junto com Natalícia, sonhando encontrar Antônio. Pelas últimas notícias, ele lá estava com a Comissão Científica. Após uma viagem longa e tumultuada, ela chega à casa do avô e, através de amigos, tem informações desencontradas sobre o destino do amado: “Em novembro Antônio estivera no Ceará, em Dezembro Antônio se achava na Paraíba, diziam uns, outros diziam que estivera no Ceará em março e partira para Manaus, outros que Antônio estava em Recife desde fevereiro, outros ainda que viajava para o Rio de janeiro em maio, outros que Antônio tinha voltado para o Mearim em dezembro e havia casado com a Ana Amélia, que indigestão!” (p.175). Desiludida, Feliciana volta com o pai e a tia para Caxias, já sabendo que a informação do casamento dele era falsa.
Da cidade de Fortaleza do século XIX, ela faz as mais belas descrições: “Uma carroça levou-nos pelas ruas largas, limpas e bem calçadas de Fortaleza, um vento frio açoitava o meu rosto, uivando nos coqueiros, correndo as casas pintadas de variados tons, despenteando os cabelos das moças que vinham à sacada /.../ Uma cidade de calma imperturbável, indiferente às leis do tempo, tangida por um vento noturno suave e cortante. Tinha uma bela fortaleza com seus canhões, mas era pequena, largada,parecia mais uma comarca de interior do que uma capital de província. Sua grande beleza era o mar bravo” (p.172-3). A sua felicidade é saber que Antônio também passou por ali.
Ela volta à sua vida simples de mulher sonhadora e continua a alimentar a ilusão de que o poema foi escrito para seus olhos. Mantém a amizade com o professor Adelino, mas não faz promessa de vir a se casar com ele, como o pai chegou a planejar. Depois da falsa notícia da morte do poeta, ela escreve mais uma carta, confessando seus sentimentos: “Escrevi a última carta da mesma maneira como escrevera as outras, trancada em meu quarto, com minha mesma letra rabiscada /.../ escrevi minhas palavras tolas e sem poesia mas carregadas de amor, de paixão, porque quando busco dentro de mim é o que encontro..”. (p.218). Ela revela tudo o que se passou, desde o episódio do poema no papel de embrulho. Escreve, após, uma carta à prima e coloca-a no correio. Angustia-se por não encontrar o rascunho da carta a Antônio e, em visita a Caxias, Maria Luíza diz que no envelope que lhe foi endereçado, estava a carta de amor, que ela tratou de encaminhar ao verdadeiro destinatário. As duas conversam sobre o amor carnal e Feliciana, dias depois, resolve entregar-se ao professor, sem compromisso. Finalmente, quando sabe que Antônio está voltando de Paris, vai esperá-lo no porto de São Luís. Como a espera é inútil, ela decide ir embora. Seu discurso deixa entrever a possibilidade de uma nova vida: “... decido ir embora, escuto o som do bandolim do professor Adelino, fecho os olhos e escuto, com a sensação de que é apenas o som do vento nos mastros dos barcos, sinto assim como um raio me partir ao meio e então nesse instante meu coração começa a bater de um jeito como nunca batera antes”. Resta a possibilidade de uma história com o professor, iniciada despretensiosamente na noite em que ela desejou conhecer o amor carnal?
Não se sabe, entretanto, sua reação à notícia de que Antônio morrera no naufrágio da barca francesa Ville de Boulogne, na Baixa dos Atins, costa maranhense. A informação é dada já no ‘epílogo’, por um narrador em terceira pessoa, para certificar o leitor de que, antes de morrer, Antônio recebera a carta de Feliciana: “Restaram no porão do brigue três malas do poeta uma grande e duas pequenas, e uma mala-saco de viagem /.../ assim como dois baú com roupas, cartas, botinas velhas e uma dentadura postiça. Também foi achada uma pequena caixa com charutos, medicamentos, pequenas peças em ouro, um álbum, um dicionário de língua tupy emendado com letra do poeta, fotografias de escritores, cortesãs, reis, poetas europeus /.../ Recuperou-se a sua tradução dos caracteres góticos do livro ‘A noiva de Messina’, e também cadernos, livros e papéis avulsos. Dentre esses papéis, estava a carta escrita por Feliciana” Realidade e ficção se entrelaçam, dando ao leitor a ilusão de que Feliciana realmente existiu e viveu esse amor.
OS POEMAS CITADOS
A paixão de Feliciana começa, como se disse, quando ela vai ao armazém do Sr. Manuel e é atendida por Antônio. Recebe das mãos dele o pacote de feijão verde e, em casa, observa, no papel de embrulho, um poema rascunhado: “Olhos Verdes”
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos cor de esperança
Uns olhos por que morri;
Que, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais branda e mais forte.
Diz uma - vida, outra - morte;
Uma - loucura, outra - amor.
Mas, ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
A partir de então, a menina acredita ter inspirado os versos e passa a viver uma paixão silenciosa que a acompanha até a maturidade. No discurso do relato-diário de seu amor, existe referência a trabalhos literários e ao Dicionário de língua Tupy do poeta; há citação do Prólogo dos Primeiros cantos (“a santa poesia” p.49), bem como de trechos de cartas por ele escritas ao amigo Teófilo. “Olhos verdes” e “Canção do exílio”, poemas que perpassam toda a história, são seguidos de tantos outros versos diluídos, no romance: “I-Juca Piarama”; “Marabá” (pp.30-141); “Leito de folhas verdes” (p.30); “Orgulhoso” (p.33), “Como eu te amo” (p.54, p.80); “O soldado espanhol” (p. 75); “Os Timbiras” (pp.75-175); “Saudades” (p.97); “A Leviana” (p.127); “Adeus” (Aos meus amigos do Maranhão) (p.138); “O canto do guerreiro”; “O canto do Piaga”; “Caxias”; “O gigante de pedra”; “No jardim” (p.148) , “Adeus” (p.163); “O mar” (p.169); “A tarde” (p.172); “Nênia”; “A infância”; “urge o tempo”, “A mãe D’água” (p.179); “Ainda uma vez, adeus!” (pp.196- 234); “Amor! Delírio – engano” (p.199). Alguns têm apenas o título citado. Os versos “Numa doce poeira de aljofradas gotas, pó sutil de pérolas desfeitas” (pp.75-175); “sobre a veiga formosa, uma menina travessa e ruidosa, a pele coberta de um pó sutil de rubins e de safiras, um humano serafim” (p.103) “Acorda! Acorda ó Vate! Eis que a alegria do profundo cismar” (p.119); “fresca como um pé de alface colhido há três dias, porém há três dias mergulhado n’água” (p.138); “praias desconhecidas os destroços de um mastro embrulhado nas vestes de um navegante” são alguns dos incorporados à fala da narradora.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Além da minuciosa pesquisa que fez sobre a vida de Gonçalves Dias, suas origens, seus amores e desventuras, suas perdas, os cargos que exerceu e as amizades que fez, Ana Miranda se aprofundou na sua poesia, em grande parte autobiográfica e, na voz de Feliciana, contou a história do poeta também através dos versos escritos por ele. As transcrições em itálico, junto ao discurso da narradora, têm uma costura perfeita e, muitas vezes, traduzem os próprios sentimentos dela. O livro, embora escrito no século XXI, resgata toda a atmosfera romântica e traz aos nossos dias os Dias e Dias de amor entre uma palmeira e um sabiá (que nunca lá cantou), contrariando os versos emblemáticos da “Canção do exilo”. O passado, dessa forma, ganha vida, se atualiza e nos deleita através de uma história bem escrita, um verdadeiro poema em prosa.
Aíla Sampaio
(Artigo publicado no Caderno de Cultura do Diário do Nordeste de 08/09/2007)
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