quinta-feira, 11 de outubro de 2007

O ROMANCE HISTÓRICO DO PERÍODO ROMÂNTICO

O Romance tem o seu embrião nas novelas de cavalaria da Idade Média e somente em meados do século XVIII a palavra passou a designar o gênero como o entendemos hoje: um texto em prosa, com vários núcleos narrativos em torno de um núcleo central. Narra fatos criados ou relacionados a personagens, numa seqüência de tempo relativamente ampla, centrada num determinado espaço.
O seu texto foi-se modificando de acordo com as transformações e exigências do público, haja vista que, inicialmente, não surgia já a história completa, mas por capítulos, publicados semanalmente nos folhetins. O primeiro romance a ser publicado no Brasil, em 1843, foi O filho do pescador, de Teixeira e Souza, que logo abriria caminho para A Moreninha (1844) de Joaquim Manuel de Macedo, romance que realmente causou impacto por ir mais ao encontro das expectativas do público leitor da época. É importante se considerar que àquela época esse público leitor era bastante restrito, constituído basicamente de jovens (moças e rapazes) das classes alta e média. Eram profissionais liberais que trabalhavam na corte ou na província e buscavam entretenimento através das leituras que faziam. Atendendo às exigências desse leitor de folhetins, os romances proliferaram e abrangeram tendências diversificadas, cujos enredos giravam em torno da descrição dos costumes urbanos, da vida no campo, das tribos indígenas, ou de personagens e fatos da história, todos apresentando personagens concebidos pela imaginação e pela ideologia romântica, com os quais o leitor se identificava quase invariavelmente.
A crônica de dados históricos, que esteve presente na maioria dos textos do Brasil colônia, só então (século XIX) se apresenta como prosa esteticamente elaborada, em forma de romance histórico, cuja trama se delineia em torno de um acontecimento ou de um personagem da história do nosso país. Foi buscando definir a nossa identidade nacional, copiando seus traços e indicadores culturais, que esse tipo de narrativa estabeleceu um espaço verdadeiro em que se desenrola a ficção.
Mais baseados na imaginação do que propriamente nos fatos, os enredos referem-se à conquista definitiva da terra brasileira e à ambição de imigrantes e aventureiros interessados nas riquezas da nova terra. O seu caráter histórico, embora não desvinculado do caráter ficcional, permitiu a intenção de representar as nossas origens e formação como povo. Nesse sentido, José de Alencar entende os enredos como incorporadores de figuras históricas ou até lendárias, situadas em seu tempo e espaço reais.
O Romantismo foi pródigo no aparecimento dessas narrativas históricas. O tempo, entretanto, não garantiu o legado de um valor estético que as fizesse permanecer, e atualmente se pode verificar o pouco interesse pela leitura dos romances desse gênero, produzidos àquela época. Quem hoje encontra facilmente para ler ou se aventura a estudar romances como As Mulheres de Mantilha e O Rio do Quarto, de Joaquim Manoel de Macedo? Alfredo Bosi (1992:145), um dos estudiosos mais sérios da nossa literatura, limita-se a dizer que faltava a Macedo, nessas obras, o senso do ridículo em que as convenções enredam o homem, acrescentando que o romancista respirava essas convenções – o que o “conduzia a aceitar por molas e fins das suas histórias os preconceitos vigentes em torno do casamento, do dinheiro, da vida política”. Ainda segundo o crítico, em função disso, “certa moral passadista empresta um tom doméstico às considerações com que entremeia seus romances históricos”. Dos livros Maurício e O Bandido do Rio das Mortes, de Bernardo Guimarães, pouco se comenta, além de que fazem parte da literatura que tem como pano de fundo o Brasil colônia.
Alfredo d’Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay) escreveu, em 1871, o livro La Retraite de Laguna, traduzido em 1874 por Salvador de Mendonça __ A Retirada da Laguna. Sabe-se que, após ter concluído o Curso de Ciências Físicas e Matemáticas na Escola Militar, o escritor seguiu como engenheiro para o Mato Grosso no começo da Guerra do Paraguai, o que lhe deu oportunidade para testemunhar __ e depois narrar __ o episódio da retirada da laguna. Durante o conflito, redigiu um Diário do Exército, que publicou em 1870, o que viria a ser o embrião do seu primeiro e único romance histórico. Também não tem repercussão qualquer estudo aprofundado acerca dessa obra, nem há disponibilidade do título nas livrarias.
A mais conhecida narrativa do gênero, no Romantismo, é a de José Martiniano de Alencar. Ele próprio define, no prefácio de seu livro Sonhos d’ouro (1872), o segundo período da sua prosa como histórico e enfatiza que ele “representa o consórcio do povo invasor com a terra americana, que dele recebia a cultura e lhe retribuía nos eflúvios de sua natureza virgem e nas reverberações de um solo esplêndido”. Enfatiza que tais narrativas trazem “a gestação lenta do povo americano, que devia (sic) sair da estirpe lusa, para continuar no novo mundo as gloriosas tradições de seu progenitor”. A essa fase histórica da criação de Alencar pertencem as obras O Guarani (1857), As Minas de Prata (1862-6), e A Guerra dos Mascates (1873) – romances __ e o livro de contos Alfarrábios (1873). Ele considerou que há nessa sua produção “boa messe a colher para o nosso romance histórico; mas não exótico e raquítico como se propôs a ensiná-lo, a nós beócios, um escritor português”.
O primeiro volume de As Minas de prata, publicado em 1862 pela Biblioteca Brasileira, apesar de todas as tentativas, não conseguiu vingar, dada a falta de interesse do público pelo seu gênero. A obra retrata o início da procura de metais, ou seja, a saga dos bandeirantes desbravando os sertões brasileiros em busca de tesouros da colônia, o que invoca o mito de Eldorado na paisagem baiana do século XVII. Segundo Araripe Júnior (1980:181), foi a obra de mais tomo composta por Alencar e em que o escritor parece ter derramado mais “amor paterno”. O que demonstra isso é o fato de a obra parecer ter sido executada com tranqüilidade de espírito e composta com “esforço visível e intuitos de artista”. Apesar de todo esse esforço, de acordo com o crítico, As minas de prata obedecem à educação artística do autor, mas não têm “perfume de flor”, mais se assemelham a “frutas sazonadas”. Tais críticas decorrem do fato de o romance trazer um alvo muito visado, uma encenação demasiadamente cuidada e um rumoroso jogo de bastidores, como ele mesmo justifica.
Alencar utiliza-se de variados recursos para transformar a imaginação do leitor em um cenário, onde se desenrola uma infinidade de paisagens, enredos, surpresas, um grande e desorganizado número de personagens, além de trabalhados efeitos óticos. Assim consegue manter a ansiedade do leitor diante das peripécias sempre crescentes, não ficando nada a dever a qualquer romance “de capa e espada”, que faça desfilar a encenação de alçapões bem manejados, máquinas corrediças, mutações rápidas, decorações, ribaltas, desafios e duelos, cenas de calabouços, caçadas vertiginosas, rendez-vous, evasões, perseguições por amor, dedicações cavalheirescas e conspirações abortadas, como o fazia o português Alexandre Herculano em romances seus do mesmo gênero. A inspiração decorre, certamente, da igreja católica, que, com os seus autos sacramentais, criou a arte da encenação e dos alçapões, o que motivou a idéia dos dramalhões e das “engenhosas transposições teatrais”, de que se valeram muitos escritores da época, inclusive Alencar.
Foi através da leitura das crônicas do nosso Quinhentismo que ele desenvolveu um intenso sentimento pela vida colonial. Tanto é verdade que a arqueologia se acentua a cada página e o Brasil se apresenta com traços quinhentistas, misturados à selvageria indígena. Da vida dos colonos de São Salvador, a imaginação do romancista se transporta até o deserto inundado de luz para mostrar o vulto do velho pajé acocorado na crista do rochedo. O selvagem ancião, que aparece qual um mito religioso, parece “algum ídolo americano que o rude labor dos aborígenes houvesse lavrado no píncaro da rocha” (As minhas de prata, p. 335). O velho índio é um guardião feroz dos tesouros de Jacobina, que consegue fantasticamente desviar as águas dos rios para sepultá-las no “abismo eterno”, a qualquer pressentimento da chegada do aventureiro. Trata-se, na verdade, de uma alegoria da invasão dos colonos, ávidos por ouro. As grutas aparecem nas descrições como magníficas, com aspectos de “cidades subterrâneas vazadas em prata”, com as suas torres góticas, que, segundo Araripe Jr. (1980), fazem lembrar As mil e uma noites. A lenda do Moribeca poderia ser interpretada como uma das histórias das riquezas de Ali Babá. É uma fantasia pomposa, que se esmera através dos efeitos visuais que evoca. As inclusões de fatos reais da nossa história parecem querer passar a ilusão de que na vida tudo poderia ser perfeitamente possível. A criação dos índios de João Fogaça, representando os cinco sentidos do homem em seu maior grau de perspicácia, dão toda a medida da inventividade vertiginosa do autor, que perpassa toda a obra.
A primeira impressão que se tem ao ler o romance, bem característica do gênero histórico, é que tudo é narrado como em tom de solenidade. O leitor tem, inclusive, intuitos de duvidar do excesso de festividade da colônia portuguesa, no tempo de Fernão Cardim. Embora a Narrativa Epistolar do jesuíta reconheça que as manias daquele tempo eram as representações e solenidades, em Alencar há exagero nos enfeites, no excesso de sedas, veludos e jóias. Também demasiado é o cavalheirismo português, nas reminiscências de Magriço; seria tanta a nobreza dos aventureiros que primeiro exploraram o Brasil?
Tais exageros talvez decorram da insuficiência dos trabalhos então existentes sobre a vida na colônia, da falta de estudos sobre a fonte tradicional dos cantos e contos populares, e, sobretudo, da “indisciplina filosófica”, que certamente pode ter prejudicado o trabalho do romancista. Mas, “do seio dos crepúsculos extraordinários, coloridos por sua imaginação, do centro das paisagens do sertão da Bahia, azuladas pelos fogos projetados em uma verdadeira orgia de cores e efeitos de luz”, como analisa o crítico Araripe Jr. (1980), emergem os bustos do Pe. Molina e de Pero Vaz de Caminha, que são personagens reais. Emergem, com eloquência, as restrições do autor à Companhia de Jesus, a quem, àquela época se atribuíam valores positivos concernentes sobretudo à inteligência. A sua idéia parece ter sido simplesmente construir o tipo do jesuíta astucioso e mau, tal qual existia na crença popular. O “náufrago do amor”, amante de Dulce, o padre pálido e macerado, ave-agoureira ciente de todos os segredos da colônia, se transforma numa figura tenebrosa, capaz de perdurar para sempre na mente do leitor. É uma caricatura proposital, como a querer desnudar a verdadeira face dos jesuítas que aqui estiveram na era colonial.
A Guerra dos Mascates, por sua vez, reconstitui o conflito entre Olinda e Recife, ocorrido no início do século XVIII, permeado de críticas à política de Dom Pedro II. Surge, neste romance, um elemento novo em Alencar, que é a sátira. Sem querer, o escritor transformou o romance em um panfleto político. Como diz Araripe Jr., ora ele olha para os cronistas, para as memórias históricas de Gama Rabeca, ora para os indivíduos que o cercam, para os que o fazem rir ou para os que o aborrecem. Em todo caso, o que prevalece é “a preocupação maligna do presente”. Alencar diz:

Copiando o vulto histórico (Sebastião de Castro Caldas), além de vingar sua memória contra a injustiça e o aleive dos coevos, erigi uma vera-efígie, para exemplo dos pósteros, a estátua dessa política sorna, tíbia, sorrateira e esconsa, que, à maneira de carcoma, rói e corrompe a alma do povo.

Se em lugar do governador se colocar o imperador, ter-se-á a época em que se desenvolve essa política que ele qualifica como sorna e sorrateira. O protesto antecipado contra aqueles que hão de querer divertir-se experimentando carapuças, à custa de seu livro, evidencia-se quando Alencar ironicamente atribui à imprensa a sua indisfarçável intenção mordaz: “o mais inocente de quantos já foram postos em letra-de-forma, desde que se inventou esse gênio do bem e do mal chamado imprensa”. Os intuitos são claros, e as referências envenenadas quase sufocam o sentimento das belezas coloniais, que se manifestam diferentemente em As Minas de prata. Os personagens de A Guerra dos Mascates “não são mais do que os manequins da crônica, semelhantes às figuras de pau e cera em que os alfaiates e cabelereiros põem à mostra, na vidraça, roupas e penteados”, como assegura o próprio Alencar. Araripe Jr. (1980), lucidamente, diz que o livro é uma risada à força, e o humor a custo esconde o estado desagradável em que, talvez, se encontrasse a alma do autor. Tudo parece mascarado e cada personagem é uma caricatura que mais e mais vai se deformando no decorrer da trama. O próprio autor deu a sua obra o nome de “Prólogo de comédia”.
Essa “pretensão chocareira” parece estar contida, também, nas páginas de O Garatuja, narrativa constante de Os alfarrábios, obra composta de três narrativas menores (O Garatuja, O Ermitão da Glória e Alma de Lázaro). Todas forram publicadas ao mesmo tempo que A Guerra dos Mascates. O Garatuja relembra, de vez em quando, os belos quadros de As minas de prata. Há, por exemplo, o tipo de um velho escrivão que, segundo Araraipe Jr. (1980), é, sem dúvida alguma, um parente próximo de Pero Vaz de Caminha.
Mas os traços ideológicos de reprodução dos painéis coloniais e nativos não se limitam aos romances puramente históricos. Estendem-se aos romances indianistas, que representam, também, fatos da nossa história. Assim, O Guarani (1857) mostra o início da colonização do Sudeste (Vale do Paraíba, século XVI) e da aculturação do índio, que aparece sob o domínio do elemento branco. Muitos críticos o entendem como a lenda da povoação do solo brasileiro. Iracema (1865) mostra o primeiro contato entre o índio e o branco, cria um mito das origens de um povo na lenda da formação do estado do Ceará. Ubirajara (1874) focaliza o índio na fase anterior ao contato com os colonizadores, livre nas selvas, distante de qualquer conceito de civilização.
Seja como for, ostentando idealizações ou esmerando-se em intuitos artísticos, Alencar conseguiu construir um retrato do Brasil e legou à posteridade os costumes e a história do nosso povo até a sua época, cumprindo o seu projeto literário. Ele, como Macedo, Guimarães e Taunay são precursores de uma tendência que renasce com o Modernismo e constitui já uma característica de bons e consistentes romances pós-modernos, que utilizam como leitmotiv a história do Brasil contemporâneo. Vale conferir e investir na permanência do gênero.

Referências bibliográficas

ARARIPE Jr., T. A. (1980). Luizinha: Perfil literário de José de Alencar. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras.
BOSI, Alfredo (1992). História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix.
LUCKACS, George (1964). Le roman historique. Trad. francesa de Robert Sailley. Paris: Payot.
MONTELO, Josué (1973). Para conhecer melhor José de Alencar. Rio de Janeiro: Bloch.

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