... sou um oásis, cercado de desertos por todos os lados.
Campos de Carvalho (1995: 61)
Desde o advento da modernidade, erigida a partir da primeira Revolução Industrial, quando o homem se viu substituído pela máquina, a cidade passa por uma reconfiguração. As décadas que marcaram a transição entre o século XIX e o século XX foram pontificadas por inúmeras mudanças que, evidentemente, não deixaram de ser registradas pelo texto literário. Nicolau Sevecenko (1996) diz que essas mudanças não apenas foram registradas, mas se transformaram em literatura. A cidade é, por excelência, o lugar da modernidade, como bem assinala Zilda Lima (2002), já que nela é que se operam os grandes projetos arquitetônicos e onde primeiro chegam as maravilhosas descobertas tecnológicas. Por ser esse espaço privilegiado para as novidades, ela revela uma dupla face: de um lado é encantadora com os avanços que abriga, com o progresso que chega para facilitar a vida das pessoas; de outro, torna-se cenário dos conflitos gerados pelas mudanças sociais e econômicas que resultam na desestabilização do homem e do seu espaço.
Essas questões não foram observadas somente neste século. Baudelaire (apud Hyde: 1989), diante da Paris no esplendor do segundo império, percebeu que Multidão e Solidão eram termos conversíveis, e atinou para a dificuldade de adaptação ao novo modelo de solidão povoada da cidade que se tornava a-poética. Para Engels (2003), também a cidade moderna não passou despercebida. Ele experenciou o impacto dessa mudança, quando recém-chegado a Londres, por volta de 1840, se deparou com um cenário diverso do da Alemanha, então pouco atingida pela indústria: ele sentiu o individualismo e o atribuiu ao confinamento da população. Mais recentemente, Marcos Rezende (2003) atentou para a mesma problemática e, ao considerar o espaço citadino atual, disse que “os olhares se cruzam e se perdem em meio a tantos outros milhares de olhares aturdidos”.
Essas experiências estão presentes em dois textos muito conhecidos e bastante simples, constantes de diversos livros didáticos. Falo de “24 de outubro”, de Lygia Fagundes Telles (1980), e “Recado ao Senhor 903”, de Rubem Braga (1951), em que se denuncia o isolamento do homem em suas ilhas verticais, que são os apartamentos. No texto da Lygia, a personagem, na solidão da noite, fica tentando conhecer um pouco do seu vizinho de cima através dos ruídos. Quando ela começa a desvendar o mistério dos sons emitidos, eles se modificam e ela percebe que, então, tem um novo vizinho. Nunca chega a conhecer algum deles. Já na crônica de Rubem Braga, os vizinhos são referidos pelo número do apartamento. Nas cidades verticais, o homem perde sua individualidade e se reduz a um número, o que é explicitamente revelado e lamentado pelo narrador.
De acordo com o pensamento de Hyde (1989), a literatura modernista nasceu na cidade que, como já falei, é sempre um espaço onde as novidades encontram ressonância. E, como não poderia deixar de ser, a arte moderna lançou os seus olhos para o “novo” cenário, onde a desagregação da sociedade em células cumpria a profecia de Engels (2003) e fazia a atomização do homem, que se fragmentava na prisão à rotina. No Brasil, essa reconfiguração se dá a partir do início do século XX, face ao intercâmbio cultural entre os grandes centros urbanos. O Modernismo, estilo então nascente, fez visíveis as interferências desse cenário transfigurado nas artes, cujo enfoque passou a destoar da configuração urbana solidificada nos romances românticos de costumes que, usando a terminologia de Antônio Cândido (1965), apresentavam a visão pura da cidade.
As concepções de Engels, Baudelaire e, mais proximamente, de Marcos Rezende, estão presentes na maior parte das narrativas contemporâneas. Claro que há outros olhares sobre a cidade. Malcom Bradbury (1989), considerando-a como um tema prodigioso, fala da ambivalência de seu poder de atração e repulsão. Com efeito, o caos citadino tem adeptos como Ferreira Gullar (1981), que se declara um bicho urbano, movido a gasolina, tal a sua integração ao burburinho das ruas: “Já me perdi / Como tantos outros brasileiros me perdi / necessito desse rebuliço de gente pelas ruas / e meu coração queima gasolina (da comum) / como qualquer outro motor urbano”. João Cabral de Melo Neto (1994), por sua vez, celebra a cidade como parâmetro para a perfeição da mulher que idealiza, no livro Sevilha andando, resgatando a simbologia (de Chevalier e Gheerbrant, 1998) da cidade como mulher, na sua função de mãe, agregadora de destinos: “Quem fez Sevilha a fez para o homem, sem estentóricas paisagens / Para que o homem nela habitasse / não os turistas de passagem. // E claro, se a fez para o homem / fê-la cidade feminina / com dimensões, acolhimentos / que se espera de coxas íntimas” (As plazoletas, p. 641).
A voz mais constante, entretanto, é a que toma a cidade como cenário de automação e incompletude. E aqui cabe a oposição cidade/campo elaborada por Leite Jr. (2003), que eu transponho para a cidade antiga e a cidade moderna, retomando a mesma oposição natureza / artifício // verdade / simulacro: as praças são substituídas pelos Shoppings Centers; as janelas são trocadas pelas telas de TV ou pelo computador; os jardins ficam confinados atrás de muros altos, numa simbologia do interdito entre o homem e sua individualidade, ou sucumbem ao concreto dos arranha-céus, cidades verticais. Essa substituição é muito evidenciada nas obras de Ricardo Ramos, sobretudo no conto “O pífano e as árvores”, narrativa marcada pela oposição cidade antiga / cidade moderna (ou cidade pequena / cidade grande), em que a personagem é tomada de euforia quando do 25o andar escuta o som do pífano, o que julga impossível, numa cidade sem árvores, cuja “paisagem é de pedra”, no meio da madrugada. Quando amanhece, ele sai em busca do espaço possível, mas não encontra as árvores, as praças só têm relva e as copas das árvores se escondem por detrás dos muros que recobrem os jardins. Depois de percorrer um espaço não dimensionável, ele chega finalmente a um lugar onde é possível ouvir aquele som que tanto lhe recorda o avô. Antes disso, porém, observa a cidade como um espaço de automação, em que as pessoas não passeiam: “Ninguém passeia pela cidade. Quando se quer sair toma-se uma condução, vai-se à montanha ou ao mar” (p.97). E o narrador, embora saudosista, admite que a “cidade é irreversível” e se pergunta: “Precisava de bosques, florestas? Que idéia. Tanto quanto de javalis para caçar ou de um retorno ao feudal” (p.94). O conto é bastante simbólico. O protagonista encontra um menino, finalmente, numa praça distante, que ele define como “parada no tempo, ficando... marginal como um livro” (p.98), e é como se, através desse menino que ele pouco a pouco reconhece, encontrasse ele mesmo, sua “opaca” identidade.
No conto “Peão e Pastor”, após narrar a epopéia da personagem João Francisco pelo caos do centro da cidade de São Paulo (aqui o espaço aparece nominado), o narrador não resiste e se coloca na narrativa para declarar: “Esta plataforma de cimento, juntando as mesas do escritório e do restaurante. Eu também sou o muro. Sem lamentações, meu santo homem. Sem crediários. Enquanto suportar, junto com a cidade eu sou o muro” (p.168). Ou seja, tem de se transformar. E agora eu não posso deixar de lembrar Augusto dos Anjos (1983, p.143) e os seus “Versos íntimos”: “O homem, que, nesta terra miserável, mora entre feras / Sente inevitável necessidade de também ser fera”.
Todo esse percurso torna inevitável a abordagem dos cinco contos intitulados “Circuito fechado”, constantes do livro homônimo (1972), que serão enfocados, a partir de agora, levando em consideração os efeitos narrativos e as inferências textuais, para mostrar o espaço urbano como cenário de incompletude e automação do Ser, que é a nossa proposta.
O próprio nome da obra já deixa entrever um movimento circular, configurando, portanto, um espaço restrito. A seqüência de cinco contos com o mesmo título, (ou o mesmo conto desdobrado em cinco momentos), parece desmembrar os vários núcleos de um só enredo, como a mostrar as múltiplas nuances de uma mesma situação: o automatismo da vida urbana que se traduz no condicionamento à linguagem clicherizada pela repetição e pela falta de espaço para o afloramento do “eu” e do “ser”. Denota-se a falta de identidade e de condição para a busca, já que o cotidiano se apresenta como detentor do poder de delegar o fazer, e não o homem por escolha própria. Ele parece levado por uma torrente compulsiva de vida, esfacelando-se na impossibilidade de arbitrar suas vontades. Todos os textos são curtos, estruturados num único parágrafo como a atender a rapidez com que tudo precisa ser consumido (vivido) na sociedade moderna. O narrador, completamente impessoal, ausenta qualquer comentário individual; a voz que fala, fala por/de qualquer um, não dela própria especificamente. E é a cidade que, implicitamente, aparece como elemento de opressão.
A ausência do termo cidade não importa. Os indícios do cenário são sinalizados pelo próprio léxico. Esta ausência, inclusive, tem sido considerada um artifício discursivo. Marc Augé (1994), levando em consideração essa constante “ausência” na narrativa contemporânea, disse que o conceito de lugar é substituído pelas cidades imaginárias, os “não-lugares” que podem ser ao mesmo tempo uma única cidade ou todas e que essa não-presença não extingue os sinais da vida urbana: a violência, a solidão e a ausência de valores morais. A omissão dos marcadores temporais e espaciais reforça a idéia do não-lugar. É assim a cidade em Ricardo Ramos: os traços identificadores de um espaço urbano definido quase nunca se apresentam, de forma que os cenários podem ser qualquer um, não se fazendo necessário localizar identidades. Shirley Correia (2003), em seu trabalho sobre A cidade ausente e a representação da cidade na literatura latino-americana contemporânea, diz que “a cidade é o espaço polifônico formado pela multiplicidade de vozes”. Renato Cordeiro Gomes (2003), na mesma linha de raciocínio, declara que “há mais de uma cidade na cidade”. É uma e todas.
O primeiro conto da série, Circuito Fechado 1, traz uma seqüência de palavras apenas, nenhum verbo que denote ação voluntária ou estado de coisa. Todas elas, porém, denotam elementos e atos que fazem parte da rotina, desde o amanhecer até a hora de dormir, e o campo semântico a que pertencem permite-nos inferir que retratam o universo masculino que se delineia em cenas cotidianas, provavelmente de um executivo da área de publicidade. E as palavras seguem num fluxo narrativo ininterrupto, como se reproduzissem a falta de pausa entre as ações diárias, a falta de tempo para a percepção do essencial. Observe-se que as ações conotadas independem da presença de verbos; os próprios elementos lingüísticos as apontam. Embora sem paragrafação, os campos semânticos em que os vocábulos se circunscrevem permitem identificar os vários momentos do dia: a higiene matinal, o ato de vestir-se, a leitura do jornal, o café, o trajeto e o transporte, o expediente no escritório, o cafezinho, a ida ao banheiro, o almoço, a escovação dos dentes, a volta ao escritório, o trabalho, o retorno a casa, o jantar, a TV, o despir-se e a hora de dormir (sozinho). Alguns elementos se repetem entre e durante cada instante descrito: cigarro e fósforo, e o relógio, como a mostrar a compulsão do vício e o registro constante de um tempo controlado, sistematizado. É também a partir do léxico que se sugere a profissão da possível personagem: cavalete, esboços de anúncios, fotos, bloco de papel, caneta, projetor de filmes, prova de anúncio, denotam objetos ligados, provavelmente, a uma agência de publicidade. Este indício é reiterado pelo hábito de manter-se ligado aos meios de comunicação: ao longo do dia, há consultas repetidas ao jornal e à revista e, durante a noite, a televisão é ligada. Na composição dos ambientes doméstico e profissional, objetos utilitários e de decoração aparecem como decodificadores da condição social do indivíduo, bem como a indumentária descrita como parte de sua vestimenta. Perceba-se, ainda, que é um conto sem personagem explícita, mas com um sujeito presente, sem identidade, massificado no espaço profissional que automatiza a rotina e condiciona a vida ao trabalho, o que é típico da sociedade urbana contemporânea.
No Circuito Fechado 2, a narrativa começa a tomar impulso. Já não se tem mais somente uma seqüência de termos que denotam a exterioridade das ações robotizadas, o percurso figurativo mostra a repercussão que os objetos relatados ou as situações diárias têm no ser que as vivencia. É como se o texto fluísse na delineação das fases da vida, entremeado com registros de memórias saudosistas da infância, as descobertas, as ansiedades e inseguranças da vida adulta, findando com o lamento da passagem do tempo e da perda do essencial. O cheiro da cidade agrada na medida em que se transfigura no cheiro da chuva, indício de rememoração e aguçamento da sensibilidade.
Os clichês, as frases banais do dia-a-dia, aparecem em Circuito Fechado 3. São frases e tipos de chavões, que vão desde a solicitação ao gerente do banco ao contato ligeiro com o frentista do posto de gasolina ou com o garçom do restaurante, passando pelas relações familiares que inexistem (e parecem fazer falta), pelas frases soltas no elevador, quando não se tem o que falar, ou pela desculpa ao não se dar uma esmola. São todos enunciados corriqueiros, que poderiam ser utilizados por qualquer habitante da cidade grande, onde todos se igualam na automação imposta pelo trabalho e pela falta de tempo. Observe-se, por exemplo, a frase “Amanhã eu telefono e marco, mas fica logo combinado, quase certo” (p.63), em que se percebe um encontro entre conhecidos que até desejariam ter mais contato, mas que, na pressa, prometem-se um reencontro, mais como uma forma de demonstrar ainda haver alguma afetividade do que como um intuito de expressar verdadeiras intenções de que o encontro se realize. O fato de marcar decorre da necessidade de encerrar o atropelado momento em que literalmente se “esbarram” atropelados pela obrigações.
A propósito, não há como deixar de lembrar a música “Sinal Fechado”, de Paulinho da Viola (Disco: Raimundo Fagner, CBS, 1976), cuja letra fala de um encontro entre amigos enquanto o semáforo está vermelho. O tempo da conversa é o tempo de acender a luz verde, mas, mesmo assim, combinam um encontro que, a bem da verdade, nenhum se empenhará para realizar, mas ambos se sentem incapazes de dizer isso: “Olá, como vai? / Estou indo e você, tudo bem? / Quando é que você telefona?/ Precisamos nos ver por aí. /.../ Pra semana, prometo, talvez, nos vejamos /.../ É a alma dos nossos negócios ou não tem de quê...” É, também, bastante expressiva a frase final do conto __ “Me acorde cedo amanhã, viu?”__, mostrando que o dia finda, mas recomeçará igual na manhã seguinte, como na música “Cotidiano”, de Chico Buarque de Holanda (Disco: A Arte de Chico Buarque, Phonogram, 1980): “Todo dia ela faz tudo sempre igual / me sacode às seis horas da manhã...”
Essa idéia de massificação do ser contemporâneo nos grandes centros urbanos se estende à ampliação da cidade a todo um universo, nivelando e unificando atitudes, cotidianos e até sensações. Bela Josef, no prefácio do livro Melhores contos de Ricardo Ramos, assinala que a voz dele é “oriunda dos espaços e da história do nosso tempo” e que “o crescimento de São Paulo __ espaço em que se localiza a maioria dos contos __ e o ritmo de urbanização e industrialização conformam um localismo aparente, pois o plano em que se desenvolvem (seus) contos é universal, modulando uma dimensão mais ampla, visão global de um período” (1998: 11). As marcas identitárias, portanto, de espaço, tempo ou personagens, se diluem na universalização, no nivelamento das posturas do homem contemporâneo.
Tal se confirma também em Circuito Fechado 4, cujos elementos presentes procuram transcender a rotina para assinalar o que não foi feito ou não foi sentido; o que esteve mas não foi captado no âmago. O texto se inicia com dois verbos bastante expressivos: ter e haver. A posse (o ter) segrega as verdades existenciais e vira compulsão. Por causa dela não se faz (o haver) o que se quer, mas o que é conveniente, de acordo com os objetivos materiais preconizados pelo trabalho e pelo dinheiro dele oriundo. Por causa do desejo de posse, cai-se na incompletude do ser, o que está evidenciado em figuras como: um envelope com fotos, não o álbum; um livro com a página marcada, sem a conclusão da leitura; a janela aberta, mas sem horizonte. Da fragmentação dos atos, o narrador passa ao trivial objeto ou à mais simples sensação de dor ou prazer, assinalando sempre a inutilidade deles, uma vez que passam. Há um lamento velado pelo que passou e não foi vivido completamente, pelo que está e não pode ser retido para experimentar (quando puder) a intensidade, pela indefinição do que virá, pela falta de perspectiva de mudança, a partir da vida que se leva. A certeza do adiamento de todas as coisas, inclusive das respostas às próprias indagações acerca do ser que é, aparecem em tom de doída constatação. E a concepção da própria vida como um rascunho apenas, sem tempo de ser passado a limpo, mostra a existência consumada na imperfeição e na incompletude, pois no automatismo diário não resta tempo para completar os vazios. Sobra a consciência de que o melhor deveria estar, como diz o famoso verso de Bandeira (1966: 107), no “que poderia ter sido e que não foi”, nem poderá mais ser. Observe-se como o final do conto sintetiza o homem contemporâneo: “Uma vida em rascunho, sem tempo de passar a limpo” (p. 66).
O Circuito Fechado 5 traz um balanço do que foi vivido: um amor fracassado, frustrações pelo que passou e resultou em vão. Não existem ações explicitadas, mas narra-se uma série de situações e pontos de vista que não se completaram, não aconteceram, que não foram. O tom pesaroso reflete o eterno inconcluso: não foi o belo, o bonito, porque virou rotina; os planos e os projetos não se concretizaram por falta de ousadia e loucura. É uma história de vontades contrariadas pela falta de lutas concretas, pelo medo de correr atrás dos sonhos. As expectativas sucumbiram aos enganos, e a busca sempre adiada, talvez de um amor, porque não se aprendeu a repartir. Resume-se numa vida que não foi tudo nem simplesmente nada, apenas foi, pelo caminho mais plano e sem brilho. E a apatia se transfigura em mornidão e náusea; isso é bíblico: quente ou frio, porque morno se vomita. A linguagem sintética, fragmentada em frases curtas, confere ao texto um ritmo entrecortado e rápido, como a refletir o fluxo do pensamento. A predominância do verbo ser no pretérito perfeito reitera a idéia de reflexão de um passado pautado na incompletude. Não se pode desmembrar fatos narrados, mas apenas elucubrações e análises oriundas da consciência, numa tomada psicológica da repercussão dos acontecimentos no ser que se reconhece lesado pela automação dos atos e pela interrupção contínua de tudo o que era importante, mas resultou imperfeito, alheio ao que era a vontade.
Assim, tem-se através dos contos de Circuito Fechado a perfeita visão do homem contemporâneo, sitiado pelas paisagens de concreto e pela rotina que o escraviza. A descaracterização dos elementos narrativos, bem como a fragmentação do discurso se coadunam para universalizar no caos da cidade o automatismo dos gestos, das vozes, da vida e leva-nos inevitavelmente à conclusão de que os seres se descobrem rascunhos apenas. Quando, no Circuito 5, o sujeito tenta passar a vida a limpo, através de um balanço, conclui a incompletude como pauta de sua vida, de forma irreversível: a luta diária, o medo da violência e tantos desconcertos.
De acordo com a caracterização de Antônio Candido, Ricardo Ramos nos apresenta a visão impura da cidade, que consiste exatamente em misturar “a mirada urbana atual com outras miradas possíveis” (Cândido, 1965: 240). Daí o tom saudosista de alguns enfoques no Circuito 4: uma janela sem horizonte / o engarrafamento do trânsito, dos dias, das pessoas / a cidade encantada, mas seca. Imagens possivelmente suportáveis se houvesse uma sombra rendilhada no chão, uma gaiola de passarinho, um papel de embrulho e cordão, como nos velhos tempos. Mas, em vez de janelas, praças e jardins, tem-se o relógio adiantado, uma tristeza, um espanto e o eterno adiamento, fazendo permanente o provisório.
O presente caótico em Ricardo Ramos é sempre a vontade de retorno ao passado, instigado pela memória que confronta a cidade grande, com seus artifícios e simulacros, com a cidade pequena, com sua natureza e suas verdades.
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