quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Recortes e colagens: Oswald e Ruffato

O homem contemporâneo vive dividido entre os benefícios do progresso que, se de um lado facilita a vida, de outro impõe um preço quase impagável, cujo ônus é debitado dia a dia na nossa conta. A tecnologia, cada vez mais avançada, com suas “promessas fáceis” enreda a civilização uma bola de neve que não pára de rolar. As oportunidades jamais serão as mesmas para todos, os benefícios jamais atingirão a grande massa de forma unívoca e o processo de exclusão vai se avultando, abrindo uma grande cratera entre o homem e o homem. A arte, claro, reflexo de sua época, tende a reproduzir essa pluralidade de posturas e sentimentos e legitima-a no ecletismo de formas, gêneros, conteúdos, enfim.

A literatura contemporânea, em consonância com seu tempo, abole as fronteiras entre os gêneros e instaura um discurso bem próximo da (ir)realidade que o ampara.

Leia-se Eles eram muito cavalos (2001), de Luiz Ruffato, e faça-se o registro. Claro que Ruffato não é o mentor desse estilo plurivalente. O seu estilo romance(?)-recorte-colagem de flashs, situações é o que Oswald de Andrade fez em seu experimental Serafim Ponte Grande (1933). Como registra a contra-capa da obra, nela, Oswald quer expulsar com seu riso escancarado e orgiástico as normas que sacralizam modelos artísticos ultrapassados e regem a mentalidade provinciana. É um livro libertário, que traz o diagrama de um Brasil de novo atual. Mesclando diário, poema, ensaio, testamento, diálogos teatrais, prosa e textos das mais variadas formas, seu romance-invenção desarticula completamente a forma do romance tradicional e monta um painel de irreverência que tem Serafim como único fio condutor. Haroldo de Campos, no ensaio Serafim: um grande não-livro, identifica sua estrutura com a vanguarda cubista: a colagem, a justaposição crítica de materiais diversos, o que em técnica cinematográfica parece equivaler de certo modo à montagem /.../ é um livro de resíduos de livros, de pedaços metonimicamente significantes que nele se engavetam e se imbricam.

Ruffato transpõe o discurso da sociedade moderna de Oswald para o da sociedade contemporânea e amplia o leque, adensando mais recortes e colagens: bilhete meteorológico, oração de santinho, salmo, biografia, numerologia, horóscopo, depoimento, notícia de jornal, bilhete, anúncios dos mais variados teores, recado, carta, simpatia, roteiro de teatro, diploma, cardápio, histórias, tudo harmonicamente colado, como a formar um mural de situações e nuances vistas e vividas. Diferente de Oswald, Ruffato não tem um personagem identificado como o protagonista de toda a fragmentária “viagem”. Seu personagem é o homem contemporâneo, massificado num cotidiano citadino idêntico em suas alegrias e dores.

A intermitente variedade de discursos, dessa forma, representa a variedade de tipos humanos sobrevivos na sociedade urbana: o trombadinha, o marginal, o taxista, a dona-de-casa, a garota de programa, o contínuo, o segurança do supermercado, o favelado, o pai apreensivo, a mãe preocupada, o filho desajustado, o amante, o desempregado, o político, o marginal convertido e o honesto corrompido, o torcedor, o gringo, o porteiro – todos têm vez e voz ao falarem de acontecimentos de suas vidas ou se transformarem em personagens de relatos.

É, como diz Fanny Agramovich, a montagem dum painel de personagens que vivem o caos da cidade grande. Os cortes constantes do discurso, a interrupção de uma história para dar lugar a outra e a rapidez com que os textos se sucedem, sem um fio seqüencial, revelam a simultaneidade dos acontecimentos no dia-a-dia: enquanto alguém é vitima de violência, alguém percorre anúncios de jornal, outro alguém, numa mesa de bar apresenta os amigos ou em sua casa reflete sobre sua condição, ou vive uma situação inusitada. É o individualismo e a massificação num diálogo sem fim.

A linguagem criativa, coloquial, às vezes agressiva, às vezes terna, tende a se coadunar com aa cenas a que dão vida. Conto? Crônica? Romance? Difícil responder. Mas que importância teria a resposta, se nem nós somos o que pensamos ser?


AGRAMOVICH, Fanny In: RUFFATO, Luiz. Eles eram muito cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001. (Orelha)
ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 6a. ed. São Paulo: Globo, 1997
CAMPOS, Haroldo de. Serafim: um grande não-livro. In: ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. 6a. ed. São Paulo: Globo, 1997
RUFFATO, Luiz. Eles eram muito cavalos. São Paulo: Boitempo, 2001

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