quinta-feira, 11 de outubro de 2007

SEVILHA ANDANDO - A objetivação da mulher na lírica moderna?

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade.


INTRODUÇÃO

Pretendemos fazer uma análise do livro Sevilha andando de João Cabral de Melo Neto, partindo do princípio de que o título da obra apresenta uma metáfora “in absentia” (Dubois, 1974 p.158) cujo referente evocado é a mulher. Procuraremos, nos poemas que compõem o volume, dados que confirmem o termo ausente, aqui sugerido, a fim de comprovarmos se, através do nome da cidade - Sevilha - sobre o qual recai a nossa atenção imediata, o poeta celebra em versos a mulher idealizada.
Embora nas obras de João Cabral a forma predomine sobre o conteúdo, fazendo aflorar uma poesia iminentemente cerebral, podemos sentir em Sevilha andando a inserção de uma sensualidade sutil já ensaiada nas entrelinhas de Uma faca só lâmina - livro que, tendo como indicação o subtítulo "Serventia das idéias fixas", transparece uma obsessão - obsessão essa que, segundo Marly de Oliveira (1994 p.19) "é sobretudo uma ausência, que deve ser preenchida e, muito provavelmente, de natureza amorosa".
Como nos diz Hugo Friedrich (1991 p.211) a respeito da lírica moderna, "Quem é capaz de ouvir, percebe nesta lírica um amor duro, que quer permanecer intacto", um amor que está longe de talhar os versos lacrimosos do Romantismo, mas que pode estar embutido nas sugestividades ambíguas através da arte e do efeito da técnica; e o que não falta napoética de Cabral é a linguagem enxuta proveniente da experiência exaustiva com o manejo das palavras.
Considerando o exposto e, ainda, a alusão feita também por Marly de Oliveira (1994 p.19) acerca da obra em análise como "poemas para a figura feminina objetivada", empreendemos o desafio de buscar resposta para a hipótese que formulamos no título deste trabalho.

1. A METÁFORA DO TÍTULO

Como afirma Aristóteles (apud Harries, 1992 p.78), “a metáfora consiste em dar à coisa um nome que pertence a outra coisa”. Implica, conseqüentemente, uma nomeação falha, que conduz um movimento de interpretação só concluído quando o termo metafórico é substituído por uma forma mais clara para o entendimento.
A lírica moderna, por sua vez, preza a criação de obras que desencoragem a interpretação. Archibald Macleish (apud Harries, 1992 pp.80-1) diz que o poema “não deveria significar, mas ser” - pensamento com o qual comunga Valèry (idem p.81) na sua busca pelo estado puramente ideal do poema. É, porém, inegável que o poema aponta para além de si mesmo; ele nunca será suficientemente puro, “suas palavras sempre trarão traços de música sensual da natureza que o poeta não consegue silenciar ao ansiar por uma eternidade fugidia” (Harries, 1992 p.86). E, como nos diz Kant (apud Harries, 1992 p.81) na Crítica do Juízo, toda obra de arte acaba comportando um sentido; para se tornar pura, ela teria que se negar enquanto obra de arte. A verdade é que se podem perceber significações várias, latentes em símbolos e figuras de linguagem, como se o valor do poema estivesse no apuro exigido do leitor na leitura subjacente.
De acordo com Karsten Harries (1992 p.87), a metáfora implica ausência, pois ela, que é mais do que a abreviação de uma linguagem direta, acena para aquilo que transcende a linguagem. Com base nesta concepção e concordando com a existência da referencialidade na obra de arte, sugerimos que o título da obra - Sevilha andando - encerra uma metáfora, cujo grau de apresentação é “in absentia”. Há um termo ausente, um referente que é evocado. Feita a leitura dos poemas que compõem o volume, observamos que o título sintetiza a obra e que o que há de essencial é a objetivação da mulher através da cidade Sevilha, que foi eleita pelo poeta como ideal.
Façamos a seguinte formulação: Sevilha, uma mulher andando; Sevilha é mulher como a mulher é Sevilha. Percebemos uma metáfora significativa por decorrer de uma espécie de proximidade semântica obtida entre termos, apesar do distanciamento literal. Segundo Paul Ricoeur, (1992 p.:148), “a similaridade não é nada mais do que essa aproximação que revela um parentesco entre idéias heterogêneas”. No domínio das conotações, mulher e cidade passam a ter uma estreita relação (como veremos mais adiante, no tópico em que abordaremos as simbologias), havendo, de certo modo, uma interseção sêmica entre o grau zero e o termo figurado. No sintagma Sevilha andando temos uma comparação implícita - comparando e comparado terminam por confrontarem-se, dividindo semas interativos.

2. A ALUSÃO A MULHER NA ALUSÃO À CIDADE

Sevilha andando traz-nos 31 poemas. Ora percebemos neles uma homenagem à cidade espanhola, numa apologia que denota um forte sentimento de identificação do poeta; ora concebemos essa identificação como pretexto para, através da cidade, colocar em versos a presença da mulher que, como Sevilha, é digna do seu canto de amor. Cidade e mulher contraem uma aliança com as palavras, de modo a driblarem o discernimento do leitor.
Alguns títulos de poemas sugerem uma antropomorfização ao conferirem à cidade atributos e capacidades não condizentes com a sua condição material e inanimada (“Viver Sevilha”, “Cidade de nervos”, “Sevilha em casa”, “Sevilha andando”, “Sevilha ao telefone”, “Mulher cidade”, “Sevilha viva”). Após a leitura superficial, descobrimos não apenas os atributos da cidade, mas que ela vai se fazendo mulher e adquirindo vida num ser objetivado. Funciona, pois, como um referencial para concretizar um intuito: a construção de poemas para a figura feminina que faz jus às qualidades fascinantes de Sevilha. E nesse jogo mulher-cidade e cidade-mulher o poeta, sem lançar mão de uma linguagem ornamentada, mostra que a lírica tecnicista pode sutilmente ultrapassar a impessoalidade. Senão vejamos em que consiste o segredo de Sevilha:

De Joaquim Romero Murube
ouvi certa vez: "De Sevilha
ninguém jamais disse tudo.
Mas espero dizê-lo um dia."

Morreste sem haver podido
a prosa daquele projeto ;
Sevilha é um estado de ser,
menos que a prosa pede o verso.

Caro amigo Joaquim Romero,
nem andaluz eu sou, sequer,
mas digo: O tudo de Sevilha
está no andar de sua mulher.

E às vezes, raro, trai Sevilha:
pude encontra-lo muito longe,
no andar de uma não sevilhana,
o tudo que buscas. Ainda? Onde?
(O segredo de Sevilha p.637-8)

O fascínio que a cidade exerce está no “andar da mulher”, no modo particular como ela se movimenta, na dinamicidade do corpo ritmado, no manejo especial que encanta e seduz. O jeito tão peculiar da sevilhana andar, no entanto, é redimensionado numa forma de ser, que, ao ser atingida por uma não nativa, torna-a igualmente encantadora. Aí, a não sevilhana passa a ser não apenas sevilhana, mas a própria Sevilha, concentrando, assim, todas as qualidades inerentes à cidade.

Assim, não há nenhum sentido
em usar o "como" contigo:
és sevilhana, não és "como a",
és Sevilha, não só sua sombra.
(É de mais, o símile p.634-5)

A comparação da mulher com a cidade parece não satisfazer o poeta. Ele as considera tão similares que uma é a outra, não apenas reprodução ou reflexo.
E Sevilha - substantivo concreto - pode converter-se facilmente em Sevilha – adjetivo - caracterizador para enfatizar a cidade como atmosfera agradável, como a maneira de ser da mulher completa, capaz de atender às expectativas do homem que a vivencia.

Só com andar pode trazer
a atmosfera Sevilha, cítrea
o formigueiro em festa
que faz o vivo de Sevilha.

Ela caminha qualquer onde
como se andasse por Sevilha.
Andaria até mesmo o inferno
em mulher da Panadería.

Uma mulher que sabe ser
mulher e centro do ao redor,
capaz de na Calle Regina
ou até num claustro ser o sol.

Uma mulher que sabe ser-se
e ser Sevilha, ser sol, desafia
o ao redor, e faz do ao redor
astros de sua astronomia.
(Sevilha andando (I) p.639)

A mulher é viva como Sevilha, emana sensações picantes como a atmosfera cítrea da cidade, densa e múltipla como um formigueiro, capaz de ser o centro de tudo, com o poder de dominar e ser o sol até onde o sol é mais impossível.
A relação a dois tem como alicerce a mesma atmosfera Sevilha:

Carregamos Sevilha, os dois,
quem foi e quem lá nunca foi.
................................................
que onde quer que estejamos sozinhos .
nos traz Sevilha, seu dentro íntimo,

de uma casa que vai comigo.
e que invoco quando e preciso.

Então, muda todo o ambiente,
ei-nos em Sevilha, de repente,
.
em nosso a dois e até ouço fora
sua formigagem rumorosa.
(Sevilha de bolso p.641-2)

Sevilha é um ideal de relação. A partir dela, os sentimentos vão sendo delineados e, se correspondida a expectativa da mulher também ideal, Sevilha se interpõe como parâmetro do envolvimento total. Notemos, outra vez, a presença do denso e do múltiplo conotado pela alusão à “formigagem”, o relacionamento que adquire consistência através do constante rumor das vidas entrelaçadas, da convivência possível, porque reciprocamente benéfica.
Voltando à descoberta do segredo de Sevilha, o poeta subentende nas paredes da cidade, o corpo da mulher

Qual o segredo de Sevilha?
Saber existir nos extremos
como levando dentro a brasa
que se reacende a qualquer tempo.

Tem a tessitura da carne
na matéria de suas paredes,
boa ao corpo que a acaricia:
que é feminina sua epiderme.

Note-se a sugestão do toque dos corpos, da carícia na epiderme feminina, do amor carnal realizado (ou na iminência de). A alusão indireta à mulher está na alusão direta à cidade que a metaforiza. Sevilha é a mulher que traz dentro de si a brasa da atração constante, de modo que a sua matéria tem a tessitura da carne, aprazível às carícias, ao fogo da conjunção dos corpos.
Admitindo que a cidade, matéria rígida, não pode, como tal, reacender a brasa, lhe confere um novo atributo: o nervo

Mas o esqueleto não pode,
ele que é rígido e de gesso,
reacender a brasa que tem dentro:
Sevilha e mais que tudo, nervo.
(Cidade de nervos p.638)

Como se sabe, o nervo é um atributo dos seres vivos e animados; no que concerne à Anatomia, é o responsável pela transmissão das sensações, por via de estímulos. Assim, o poema parece trazer a mulher disfarçada em cidade, não numa cidade qualquer, mas naquela eleita como ideal.
Sevilha se transporta, transfigurada na intimidade do lar que a acolhe:

Tenho Sevilha em minha casa.
Não sou eu que está chez Sevilha.
É Sevilha em mim, minha sala.
Sevilha e tudo o que ela afia.
(Sevilha em casa p.638)

A sensação de ter alcançado o ideal se configura na posse de Sevilha, que agora esta ao alcance da mão. Sevilha-mulher penetra todo o homem numa invasão plena, condutora do fascínio peculiar à cidade.
E, tão íntima, Sevilha se faz carne (mulher) e se deixa habitar (possuir)

Tenho Sevilha em minha cama,
eis que Sevilha se faz carne,
eis-me habitando Sevilha
como é impossível de habitar-se.
(Lições de Sevilha p.644)

O homem possui a mulher concretamente e mostra que a Sevilha-cidade é habitada de uma maneira diferente. Na posse, mulher e cidade se destinguem. O desejo de intensidade do amor partilhado se sobrepõe ao questionamento sobre o tempo da duração

Se viver-te será curto,
como pequena e Sevilha,
que viver-te seja intenso
carregado qual nova pilha
(Mulher da Panadería p.642)


Observe-se a semelhança de sentido destes versos com os de Vinícius de Morais no "Soneto de fidelidade": Que não seja imortal, posto que é chama/mas que seja infinito enquanto dure, vazados numa linguagem seca, menos dada ao tom romântico.
E a mulher se faz bússola, iluminando e direcionando o aprendizado do amor que faz a vida renascer, reacendendo o homem

Acordar e voltar a ser,
re-acender num escuro cúbico;
e os primeiros passos que dou
em meu re-ser são inseguros.

Re-ser em tal escuridão
é como navegar sem bússola. .
Eu a tenho, alí, a meu lado,
num sol negro de massa escura:

que é a de tua cabeleira,
farol às avessas, sem luz,
e que me orienta a consciência
como a luz cigana que reluz.
(Sol negro p.642)

Encontrar o amor é sair da escuridão. Os inseguros primeiros passos do “voltar a ser” denotam o caminho do aprendizado dos sentimentos adormecidos que renascem; o poeta acorda para reencontrá-los no “sol negro” que metaforiza a mulher morena, tão encantadora e única como Sevilha. A cabeleira negra é sempre referida e reluz como um “farol às avessas”, como se o amor fosse uma luz perceptível apenas para quem o experimenta e dimensiona a sua existência no outro ser que, igual a uma bússola, mostra a direção exata da vida.
A idéia de renascimento vem também impressa nestes versos de “Viver Sevilha” (p.636)
Só em Sevilha o corpo está
com todos os sentidos em riste
sentidos que nem se sabia,
antes de andá-la que existissem;
sentidos que fundam num só:
viver num só o que nos vive, .
que nos da a mulher de Sevilha
e a cidade ou concha em que vive.

Sevilha não apenas desperta os sentidos, os mantém em riste - expressão bastante sugestiva no âmbito da sexualidade. O homem atenta para as sensações corpóreas e experimenta estímulos inusitados. O corpo desperto vivencia o amor carnal e descobre na mulher a fonte de um prazer completo, desconhecido até então. O amor funde os dois seres envolvidos, unificando-os. Essa relação é somente possibilitada pela "mulher de Sevilha" e pela "cidade ou concha em que vive" - a mulher sensual, sedutora que, através do seu corpo, dá ao parceiro o acolhimento da concha e o faz, metaforicamente, passear por ele como pela cidade identicamente aconchegante. E, no último poema do livro, o poeta canta a cidade espanhola como a dizê-la que a distância física em que se encontra dela é reduzida pelo fato de ter ao seu lado a presença da mulher que, como fêmea, recria a sua sedução citadina.

Cantei mal teu ser e teu canto
e enquanto te estive, dez anos;
cantaste em mim e ainda tanto,
cantas em mim teus dois mil anos.

Cantas em mim agora quando
ausente, de vez, de teus quantos,
tenho comigo um ser e estando
que é toda Sevilha caminhando.
(Presença de Sevilha p.651)

O encanto desmesurado de Sevilha presentifica-se constantemente na vida do poeta através da mulher tão completa como mulher, como completa é a cidade em sua ótica. A afeição pela cidade espanhola e por todas as qualidades nela encontradas foram transpostas para a figura feminina que correspondeu às suas idealizações, enlevando-o numa relação plena enquanto homem - como o enlevava Sevilha-cidade numa relação aprazível enquanto habitante.


3. A IDENTIDADE DA MULHER COM A CIDADE ESPANHOLA

Ser sevilhana, como nos mostra Sevilha andando, é ser idêntica à Sevilha, não é ser necessariamente nascida lá. Numa primeira hipótese, a "sevilhana de fora" seria aquela que não nasceu em Sevilha, mas que por conhecê-la e amá-la, adotou a cidade como sua e a ela se sente ligada por laços afetivos. Numa segunda hipótese, pode-se considerar a expressão "sevilhana de fora" como representativa de uma transferência de qualidades: o que a cidade possui de marcante, conseqüentemente arraigado aos seus nativos, se configura em uma pessoa que possui todos os traços correspondentes mesmo sem ter ligação com o lugar.
A primeira hipótese é negada, senão vejamos:

Pois não quis viver em Sevilha .
que e de onde ela nao se sabia,

descrente da antropologia
que lhe nega a genealogia:

mas sevilhana nela toda,
como se naufragada forma

viesse a encalhar por engano
nas praias do Espirito Santo.
.
Donde o pé atrás contra Sevilha?
Crê que é só bulha, bulerías?
(A sevilhana que não se sabia p.630)


A mulher celebrada desconhece qualquer parentesco com a cidade, embora o poeta imagine que a sua origem genealógica (Espírito Santo) decorra de um engano do destino. Não é explicitada a adoração dela pela cidade, pelo contrário, ela parece se posicionar contra a possibilidade de viver lá. Além, disso, ela sequer a visitou:

Uma mulher sei, que não é
De Sevilha nem lá tem raízes,
que sequer visitou Sevilha
e que talvez nunca a visite,

mas que e dentro e fora Sevilha
toda a mulher que ela é, já disse,
Sevilha de existência fêmea,
a que o mundo Se sevilhize.
(Viver Sevilha p.636-7)

Para que Sevilha se configure como parâmetro para a identificação, o poeta a concebe como fêmea. A mulher, no entanto, não mantém nenhuma relação afetiva com ela, mesmo a tendo em si como uma marca pessoal. O poeta é que avulta a sua demasiada afeição pela cidade no desejo de sevilhizar o mundo, ou seja, de torná-lo igualmente aprazível, positivo, envolvente.
A segunda hipótese é, pois, mais pertinente. Verifiquemos como os pontos de identidade entre a mulher e a cidade vão sendo versificados:

Passa que a mulher é andaluza:
embora nascida noutras ruas,

de outras raças, de outro país,
só Andaluzia, de matiz;

tem da andaluza a intensidade
de sendo pequena, expressar-se

no calor que às vezes acende .
e acende o que lhe está rente.
(Retrato p.645)

A "sevilhana de fora" e a andaluza têm em comum a intensidade de expressar a brasa que trazem dentro de si, ou seja, a capacidade de comunicar a própria sensualidade.
E não há como falar da mulher sem falar de Sevilha:

Quando queria dá-la a ver
ou queria dá-la a se ver,

ei-lo então incapaz de todo:
nada sabe dizer de novo.

Só reencontra as coisas ditas
e que ainda diz de Sevilha.
(A sevilhana que não se sabia p. 629)

Observe-se a sugestão de uma impressão visual na imagem da cidade como espelho e na mulher como reflexo fiel. O homem (aqui desvencilhado do poeta pela ausência do eu poético) só se revela capaz de falar dela através das coisas ditas de Sevilha, como se ambas (mulher e cidade) fossem indissociáveis na descrição, por serem totalmente semelhantes. Assim, elas vão tendo as características idênticas expostas:

Por ela anda a sevilhana
como andaria qualquer chama,

a chama que reencontro negra .
e elétrica, da cabeleira,
........................................
ambas em espiga a cabeça,
num desafio a quem que seja,

e pisando esbeltas no chão,
ambas, num andar de afirmação.
(Idem p.630)

Outra vez temos a evidência da mulher como chama remetendo-nos à cidade sensual. Igualmente à Sevilha ela é uma chama morena e petulante.

vi passar, entre as que passavam,
uma mulher de andar sevilha:
o esbelto pisar decidido
que carrega a cabeça erguida,

cabeça que é, soberana,
de quando a espiga mais se espiga,
que carrega como uma chama
negra, e apesar disso acendida
(Na cidade do Porto p. 639-40)

O jeito de andar da mulher sevilhana é superior e inconfundível; a decisão que emana ao tecer os seus passos, ressalta a cabeça erguida, comparada a uma chama que, mesmo negra (escura), mantém-se clara (acesa). A idéia do fogo, impressa na alusão à chama se estende à pimenta e conota o "sex apple" da mulher.

É que a pimenta do sal
só vem dessa claridade
das salinas que suam
pela baia de Cadiz?

O poeta elabora a resposta com outra interrogação que ressumbra ambigüidade:

Não viria ela também
de certo fundo, de um núcleo
que no fundo finge a luz
e traz no dia o escuro?
(Sal interior p. 649-50)

A “pimenta do sal” não vem apenas da claridade, ou seja, não se requisita apenas na superfície aparente. A luz é fingida; o sal vem de dentro, do interior, vem da profundidade do ser e se torna perceptível no corpo que a materializa. Não é à toa que o livro é rico em imagens oximorescas: a luz no escuro, a chama negra acesa, farol sem luz que reluz etc.
E a mulher é identificada com a cidade, porque a cidade é feminina, não somente na essência, mas também na forma:

Quem fez Sevilha a fez para o homem,
sem estentóricas paisagens.
Para que o homem nela habitasse,
não os turistas de passagem.

E claro, se a fez para o homem,
fê-la cidade feminina,
com dimensões acolhimentos,
que se espera de coxas íntimas.
(As plazoletas p. 641)

O homem habita a cidade numa íntima relação de convivência, que não dá espaço para uma simples aventura. Ela foi feita para ser assumida inteiramente e, não despretenciosamente, foi feita feminina. A imagem construída na expressão “dimensões acolhedoras como coxas íntimas” revela o âmago da identidade mulher-cidade, que se plasma na plenitude da satisfação (também sexual). O poeta potencializa a sua sensualidade e encontra na cidade o que espera encontrar na mulher idealizada.
O poema “Cidade viva” (p.647) confirma cabalmente que a expressão “Sevilhana de fora” é um ponto de identificação mulher-cidade e a metáfora constitutiva do título da obra:

Ora, vi que Sevilha andava
ou fazia andar quem a andasse.

Quem me mostrou foi a mulher
Que sem a conhecer sequer

é em tudo tão sevilhana
no ser e no modo com que anda,

que leva consigo Sevilha
e a traz no ambiente que habita.

A Sevilha que anda e faz andar é revelada através da mulher que, sem conhecer a cidade espanhola, carrega-a “no ser e no modo com que anda”, levando-a continuamente consigo e trazendo-a ao ambiente em que vive. Sevilha é ela própria, ser de carne, ossos e nervos: mulher completa, sensual, envolvente; tão ideal, enquanto mulher, como ideal é Sevilha, enquanto cidade.


4. NA TRILHA DOS SIMBOLOS - As recorrências

É comum na poesia de João Cabral de Melo Neto a presença de termos já anteriormente utilizados. A insistência, no entanto, em um campo semântico determinado, permanentemente recorrente, demonstra uma opção não despretenciosa. Duas de suas obras, por exemplo, trazem no título a palavra “faca”: Uma faca só lâmina (1955) - léxico do campo semântico: bala, chumbo, gume, faca, lâmina, aço, ferro, brasa, agulha, azia, chispado, vinagre, corte etc. - e A escola das facas (1980) - léxico do campo semântico: foice, gumes, canhões, ferro, flecha, lâmina, facas, bombas, punhal, ponta, peixeira, ácido, agudo, cortada, afiado, folhas laminadas etc. O primeiro, metaforiza uma obsessão. O segundo, resgata a sua terra, as suas raízes: o Pernambuco dos engenhos e dos canaviais. Embora se fizesse importante a análise também dessas obras, em função do que acabamos de expor, detenhamo-nos no Sevilha andando, livro que, apesar de não trazer no título nenhuma referência aos dois recentemente citados, traz um léxico correspondente: lâmina, peixeira, punhal, ácido, chispa, arde, chama, aceso, afia, incêndio, brasa, sol, cítrea. Consideremos, pois, o campo semântico das palavras que denotam a ação de cortar e, por extensão, as que imprimem sensações de ardor e de acidez. E, por oportuno, confiramos o verbete que nos mostra um dos sentidos da palavra “sevilhana”:
Sevilhana. (Fem. substantivado do adjetivo sevilhano). S.f. 1. Grande navalha de lâmina estreita e curva. (Holanda, 1986 p.1580)
De acordo com o Dicionário de símbolos (Chevalier, 1991 p.414), os instrumentos cortantes simbolizam o princípio ativo, modificando a matéria passiva. Por analogia, o ativo (homem) e o passivo (mulher) interagindo.
A sevilhana (mulher de Sevilha) traduz o fascínio da cidade e serve de referente para as qualidades da mulher idealizada. No sentido do verbete, essa mulher seria um ser não passivo, que exala vida por todos os poros, qual a cidade espanhola - e, por contrariar a passividade inerente, mais sedutora se torna essa mulher. A lâmina curva do verbete remete-nos ao simbolismo da lua - astro que simboliza a dependência feminina, por ser privado de luz própria e iluminar através do reflexo do sol - astro masculino, símbolo da vida. A relação homem/mulher se configura em símbolos.
A idéia patente dos elementos cortantes como instrumentos de sacrifício e corte literal se afasta, por exemplo, do poema “Sevilhana pintada em Brasília” (p. 648),em que o poeta repreende o pintor que não soube retratar com fidelidade precisa a mulher sevilhana.

De certo, o pintor de Brasília
nada sabia de Sevilha,

muito menos que toda a graça
esta num só traço que a traça.

Sentiu o intenso do modelo
mas como não soube contê-lo

tentou pintá-lo em explosão
no sujo e amorfo de um vulcão.

Dar a ver a graça andaluza,
que, sem parecer, é profunda

é mister a linha escorreita,
limpa, cicatriz de peixeira,

lacônica como a do punhal .
do Pajeú, fundo e mortal,

que vai ao mais fundo, à raiz
sem derrame e sem cicatriz.

Embora feita por uma peixeira, a cicatriz é limpa, sem defeitos, breve e precisa como a feita pelo punhal. Mesmo tendo sido profundo o corte, capaz de ir à raiz, não houve derramamento de sangue, nem cicatriz aparente. Vê-se que a alusão à cicatriz imperceptível funciona como reforço para enfatizar a graça da mulher andaluza. Essa mulher é idealizada como perfeita: é limpa cicatriz de peixeira, é precisa cicatriz de punhal. O rio Pajeú em sua profundidade e extensão, metaforizado no punhal, vai ao encontro da profundidade da sedução dessa mulher que penetra fundo os sentimentos do homem, sem deixar marcas de dor ou vestígios quaisquer.
É oportuno ressaltar que, na África, instrumentos cortantes como faca, peixeira e punhal têm um simbolismo fálico - simbolismo, aliás, que teve o amplo respaldo de Freud (apud Chevalier, 1991:414).
Seguindo a trilha dos símbolos, leiamos, agora, o poema “Retrato” (p.645)


Passa que a mulher e andaluza:
embora nascida noutras ruas,

de outras raças, de outro país
Só Andaluzia, de matiz;

tem da andaluza a intensidade
de sendo pequena, expressar-se

no calor que às vezes acende
e acende o que lhe esta rente.

..............................................
a boa expressão de sua chama
é o nu vivo e extremo da lâmina

o extremo de ser que cultiva,
cujo expressar-se e em carne viva.

Como vimos no tópico “A identidade da mulher com a cidade espanhola”, a mulher celebrada não é efetivamente nativa de Sevilha; tem dela, os encantos sedutores. Insistimos: a cidade é um referencial para a atribuição de qualidades. A relação cidade/ser humano é, inclusive, trazida pela Bíblia. Tanto no Antigo como no Novo Testamento o livro Apocalipse descreve as cidades como pessoas. A psicanálise já tece essa relação através do simbolismo da mãe com o duplo aspecto de proteção e limite: a cidade guarda os seus habitantes, a mulher encerra no seu corpo o poder da procriação. Em geral, há todo um relacionamento com o princípio feminino. Reiterando esta idéia, o patriarca Zen Huei-Neng (apud Chevalier, 1991 p.239) diz que "a cidade é o corpo, cujos sentidos são as portas".
Sevilha andando celebra a cidade para celebrar a mulher: elas são semelhantes na intensidade de expressar-se “no calor que às vezes acende e acende o que lhe está rente”. O substantivo calor e o verbo acender pertencem ao campo semântico de fogo - símbolo da paixão, de entusiasmo, da excitação - o que nos conduz ao rito da atração carnal exercida.

Observemos, ainda, que a intensidade sevilhana está na “expressão de cidade plana, sem montanha nos ardores, sem arranha-céus... cidade toda em cantochão, limpa e varrida...”. A cidade, assim descrita, tem como símbolo a estabilidade resguardada em um ideal de mulher igualmente estável, comungando com o parceiro uma convivência pacífica, sem atropelos.
Retomando o campo semântico explorado através das palavras calor e acender, temos confirmada a nossa afirmação nos versos: “a boa expressão de sua chama é o nu vivo da lâmina, o extremo de ser que cultiva, cujo expressar-se é em carne viva”. A lâmina nua e extrema é a lâmina pura, desprovida de qualquer outro elemento que não lâmina - tão cortante quanto queimante é a chama; lâmina e chama tem o mesmo poder corrosivo, por analogia, da paixão, da união de corpos ávidos e sedentos, sensíveis como em carne viva.
O verão sevilhano tem o fogo solar atenuado pelos toldos que arrefecem as praças. A sombra, deles proveniente, suaviza a fadiga do calor. O poeta utiliza esse traço comum à cidade - os toldos - para metaforizar a extasia aconchegante do leito, quando ao lado da mulher amada.

Verão, o centro de Sevilha
se cobre de toldos de lona,
para que a aguda luz Sevilha
seja mais amável nas pontas,

............................................
e encontra a atmosfera de pátio,
o fresco interior de concha,
todo o aconchego e acolhimento
das praças fêmeas e recônditas.

Comigo tenho agora o abrigo,
a sombra fresca dessas lonas:
eu os reencontrei, esses toldos,
nos lençóis que hoje nos enfronham.
(Verão de Sevilha p.637)

Os toldos das praças de Sevilha são reencontrados no aconchego dos lençóis. O verão metafórico está na virilidade do homem excitado e no abrigo das “praças fêmeas e recônditas”, onde, sob os lençóis, a mulher amada com o seu “fresco interior de concha”, através do sexo, dá ao parceiro a mesma sensação de sombra, depois do desgaste de um sol causticante.
O poeta, quando quer dar a ver a mulher que objetiva “só reencontra as coisas ditas e que ainda disse de Sevilha” dar a ver “em assonantes o que ambas têm de semelhante” “E isso, só com a convivência da mulher, com a nua presença de muIher, que como Sevilha é interna-externa, é noite dia, não tem medida no tempo nem no espaço”. (“A sevilhana que não se sabia” (p.629-32) e “Meu álcool” (p.632-34) )


CONCLUSÃO


Ao intitular este trabalho, lançamos uma interrogação: Sevilha andando, uma obra nos moldes da lírica moderna, traz a objetivação da mulher? Acreditamos que o exposto credencia-nos uma resposta afirmativa. Sem em nenhum momento ceder a um tom exatamente romântico nem utilizar de uma linguagem rebuscada, o poeta demonstra sentimentos e, mais que isso, revela-se sensual.
A metáfora do título traz a ausência do termo comparado; a leitura da obra em sua totalidade dá, sem muito embaraço, a sugestão de que é a mulher o referente evocado. A sutileza da inserção da sensualidade é digna de um verdadeiro "engenheiro" das palavras. Assessorado de uma linguagem enxuta, o poeta não divaga em torno dos sentimentos, sugere-os. E fala do ser humano falando de coisas; e de coisas para tocar na sensibilidade humana, como se o espírito e a matéria ocupassem o mesmo plano existencial. A identificação com Sevilha converte-se metaforicamente na atração pela mulher que, ao assemelhar-se às qualidades da cidade espanhola, torna-se ideal.
Os versos vão, pouco a pouco, deixando claro que Sevilha é uma forma de ser; que o seu segredo está no fato de ela saber existir nos extremos e, sobretudo, no andar da mulher. Essa forma de ser é encontrada na figura feminina que, apesar de não ter nascido lá, tem incorporados no seu ser todos os atrativos da cidade e de suas nativas: a postura esbelta e altiva, a temperatura do corpo (que combina com o clima ensolarado da cidade) emanadora de um calor fogoso bem sugestivo para o rito da atração carnal - idéia reiterada na insistência no "andar da mulher" que, como se sabe, exerce no sexo masculino uma sedução desmedida. Além disso, "a boa expressão de sua chama é o nu vivo e extremo da lâmina" - ela, metaforizada em "instrumento cortante", contraria o princípio da mulher como ser passivo; torna-se capaz de interagir com o homem, de igual para igual, como ser ativo - característica que a torna especial, sedutora, superior, indo ao encontro das expectativas do homem que a objetiva.
Sevilha, cidade feminina, é, pois, o referencial da idealização da mulher perfeita dentro dos moldes da identificação e dos desejos do poeta como homem.


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