Além
de compositor e intérprete, Zeca Baleiro é também um cronista de percepção
aguda e verve bastante irônica. O Caderno LER de hoje traz uma análise do seu
livro Bala na Agulha – Reflexões de
Boteco, Pastéis de Memória e Outras
Frituras, publicado em 2010 e lançado em Fortaleza durante a última Bienal
do Livro.
Os talentos múltiplos
que, de vez em quando, aparecem na mídia compensam a avalanche de mediocridade
que ela tem vomitado. Quero me referir diretamente a Zeca Baleiro, cantor
e compositor reconhecido pelas letras de música bem elaboradas e criativas,
pela interpretação visceral e pelos projetos, como o Baile do Baleiro, de resgate
da música popular brasileira, nos Sesc-São Paulo, trazendo de volta ao público
figuras que estão no ostracismo, como: Odair José, Benito de Paula, Vanusa,
entre outras. Suas releituras sem preconceito das canções antes consideradas
bregas abrem nova discussão sobre o que realmente atesta o bom gosto.
Não bastasse todo esse movimento ascendente em torno da nossa música, não bastasse ter renovado o cenário musical tão baço, ele ainda se revela um pensador perspicaz e um escritor que merece reverência! Além de boas ideias e muita lucidez calcada num espírito irreverente, ele tem um discurso leve, mesmo para os assuntos mais densos, e demonstra intimidade com a língua portuguesa, pois escreve de acordo com o que preceitua a gramática padrão, no seu característico à-vontade. Só faz uma ressalva: a resistência voraz à reforma ortográfica. Logo nas primeiras páginas do seu primeiro livro, Bala na Agulha – Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras, há uma explicação do editor: a obra não obedece à reforma ortográfica de 2008, “pelo fato de o autor se recusar a escrever palavrões como autorretrato e assembleia”.
Não bastasse todo esse movimento ascendente em torno da nossa música, não bastasse ter renovado o cenário musical tão baço, ele ainda se revela um pensador perspicaz e um escritor que merece reverência! Além de boas ideias e muita lucidez calcada num espírito irreverente, ele tem um discurso leve, mesmo para os assuntos mais densos, e demonstra intimidade com a língua portuguesa, pois escreve de acordo com o que preceitua a gramática padrão, no seu característico à-vontade. Só faz uma ressalva: a resistência voraz à reforma ortográfica. Logo nas primeiras páginas do seu primeiro livro, Bala na Agulha – Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras, há uma explicação do editor: a obra não obedece à reforma ortográfica de 2008, “pelo fato de o autor se recusar a escrever palavrões como autorretrato e assembleia”.
O livro está
dividido em três partes: na primeira e mais longa, Bala na agulha, encontramos 42 crônicas que, na verdade, compunham as postagens do seu
blog desde 2005, com temas variados, ou seja, é uma compilação de artigos seus
anteriormente publicados na internet. São textos
escritos despretensiosamente em quarto de hotel, na calma da sua casa ou na
poltrona de um avião, revelando sua cosmovisão sobre comportamento, uso da língua
portuguesa, música, literatura, cinema, religião, gastronomia; sem eximir-se,
tantas vezes, de episódios marcantes da sua infância maranhense e das figuras
que a povoaram.
Na segunda, intitulada Bestiário Pós-moderno, estão vários
verbetes, definições irônicas de palavras, de acordo com seu olhar ácido e
voraz para a realidade. A terceira – Curtas,
grossas e algumas infames, estão provérbios, antivérbios, aforismo e
desaforismos, constitui, todo o montante,
uma compilação de pensamentos e
versos casuais – muitos escarnecedores mesmo, mas divertidos e bem humorados,
como é o caso de “Toddy amor que é bayer é bom” e “Na vida tudo se acumula /
nem por isso / o filho é da mula”.
Em
todos os textos, aparece o protagonismo de um cidadão inquieto com a vida e o
rumo que têm tomado os valores na sociedade contemporânea. Sensato, irônico,
brincalhão, por vezes ácido, jamais adocicado, o cantor-compositor-escritor dispara a baladeira na praga do
politicamente correto, critica “as novas e surpreendentes palavras que vêm
sendo incorporadas à nossa língua com a velocidade típica dos tempos digitais”!
(p.17) e neologismos insurgentes, como ‘faltante’ e ‘cadeirante’. Ele dispara: “Não
bastassem pragas como o gerundismo propagado por atendentes de telemarketing e apresentadores de TV
semianalfabetos – mania que não disfarça o nosso melancólico desejo de parecer
americanos -, agora vejo surgirem como gremlins
palavras tão estranhas quanto inadequadas, que as pessoas proferem com
descarada naturalidade” (p.17). E acrescenta: “A nova ordem semântica não poupa
crioulos, viados (com i mesmo!) e anões. Como se expressões cristalizadas no
repertório afetivo popular pudessem conter apenas discriminação e não tivessem
significados outros, caros à nossa cultura. E como se a discriminação pudesse
ser diluída e desfeita em expressões de mal disfarçada hipocrisia, como
afro-brasileiro ou afro-descendente, cidadão de orientação sexual especial e
sujeito dotado de nanismo” (p.19).
Nas reflexões que faz sobre o uso da
língua portuguesa, foge a uma postura purista e demonstra bom-senso em relação
aos equívocos, aos abusos neológicos desprovidos de sentido, à avalanche de
palavras-chave para traduzir a pós-modernidade. Na crônica “Os diferenciados”
(p.76), cita, entre outras variações linguísticas com que convive, o
internetês, o dialeto do ABC paulista e menciona o vocabulário artificial que
nos circunda: “Não consigo ver legitimidade em palavras como: presencial,
semi-presencial, fidelização, motivacional etc” (p. 77) “Não à toa, palavras
com recorte vitorioso estão na moda e infestam a fala dessa elite risível:
“superação”, “desafio”, “empreendedor”, “upgrade”, “especial”, “top”, “ouro”, “master”
e a maldita e onipresente “diferenciado”. O grande sonho de consumo dessa gente
parece mesmo ser diferenciada. O que eu não consigo entender, nem que eu viva
cem anos, (e aqui tenho que confessar,
acho que não suportaria tamanha longeva proeza), é: se todos se tornarem
diferenciados, não ficarão então todos iguais?” (p.79).
Ele critica a cruzada ‘atualista’ que se
faz hoje, a falta de culto ao passado e a exigência de que tudo seja up to date. Sim, Zeca é um saudosista.
Nenhuma lágrima, nenhum lamento pelo que passou, mas um olhar complacente para
o que foi bom e não deveria ter sido tirado de cena em função de um novo cada
vez mais efêmero.
O excesso de propagandas (até nas
privadas dos banheiros públicos), de assédio da mídia, de oferta ilimitada de
serviços, outdoors, panfletos, anúncios, reflete o mundo contemporâneo e sua
poluição sonora e visual. Na crônica “Somente o desnecessário” (p.53), ele
alfineta esse exagero no palavreado cada vez mais prenhe de insignificâncias e,
sobretudo, a sobrecarga de informações desnecessárias que pululam em todos os
discursos, desde o do garçom, ao oferecer uma iguaria, ao do comentarista de
futebol, bem como o culto desmedido ao consumo vendido por uma publicidade que
inventa necessidades que não existem: “Vivemos assim, atordoados por
necessidades desnecessárias, urgências desimportantes, pendências que se
revelam fantasiosas. Nem uma desarmada criança assiste a um desenho na TV sem
que seja bombardeada nos intervalos por mil e uma propagandas com ofertas de
brinquedos, algumas das quais engenhosas e desonestas. No mínimo uma covardia”
(p. 54 e 55).
O sociólogo Zygmund Bauman tem falado em
suas obras – sobretudo em Modernidade
Líquída – desses tempos em que nada mais é palpável, tudo escorre, passa
rápido. Além dessa fluidez, ele enfoca a
compulsão transformada em vício, a vida instantânea, o individualismo, entre
outras questões que colocam o cidadão contemporâneo diante de um mundo de
pessoas sem rosto. Imagino que as reflexões do Zeca Baleiro sejam as do cidadão
cansado de toda essa fluidez, mas também de um leitor antenado com os estudos
sobre o seu tempo.
Em “O buraco é mais embaixo” e “na
crônica “Somente o desnecessário” (p.53)”, ele reitera sua preocupação em viver
num mundo em que já não se tem identidade, onde estamos todos submetidos a
humilhações como ‘pesar comida’, ‘tirar roupa e sapatos nos aeroportos, ‘conversar
com gravação no telefone’, entrar em intermináveis filas de espera inclusive em
restaurantes. O pior: não há a quem reclamar, pois se entrou num consenso
involuntário de que ‘tudo é culpa do sistema’: “Na falta de resposta para tudo,
e também como evasiva para seus deslizes, o homem já recorreu a muitas coisas
invisíveis e impalpáveis: Deus, o destino, o acaso, Nossa Senhora, o carma, a
Providência Divina. Agora, para todos os seus pecados e crimes, inventou
espertamente este bendito sistema”. A imersão do homem nesse processo de
massificação propiciou a sua escravidão à parafernália digital como
computadores e celulares e ele nem mais se apercebe que se tornou escravo, virou
um item a mais nas grandes listas.
É lícita essa preocupação em viver num
mundo em que o Ter é mais importante que o Ser, em que se preza pelo Parecer e
vende-se até modelo de beleza. Ele critica essa ditadura da magreza e até
corrige Vinícius no seu verso antológico “beleza é fundamental” ao dizer
ironicamente que não basta a beleza, o importante é ter borogodó (p.99).
Outro tiro certeiro é nos programas
religiosos que parecem manipular as pessoas, instigando o ‘ter’ como essencial.
Critica a mercantilização da fé no discurso dos pastores centrados menos em
Deus e mais nos valores e nas conquistas materiais que a ‘religião e a fé’
podem propiciar. Depois de brincar com o controle remoto no sofá de sua casa e
parar estarrecido diante de um desses programas, comenta: “Pela grande angular
do Cristianismo, Deus (assim, maiúsculo) é um ilusionista, um ser com poderes
mágicos que fez seu filhos ressuscitar e subir aos céus como um Christopher Reeve
de capa vermelha e uniforme colante azul. É, meus caros, aos olhos dos
cristãos, Deus sempre foi um Spielberg, um George Lucas... E, como se não
bastasse, agora vêm esses pastores com ares de bastardos, com avidez de
vendedores de rodoviária transformar deus (assim, maiúsculo) em Og Mandino, em
Lair Ribeiro, num mago vulgar de auto-ajuda... Não, Deus não merecia destino
tão tacanho!” (p.48).
Dispara igualmente contra os textos de
autoajuda, que aparecem até na voz de um comandante de avião (do qual ele [Zeca]
é passageiro), bem como nas obras que, atualmente, lotam as prateleiras das
livrarias. Descreve jocosamente os seus passeios pelas livrarias de aeroportos
e conta ironicamente o seu primeiro encontro com o livro “Marley e eu” que, à
primeira vista, seduziu-lhe pela possibilidade de ser uma biografia de Bob
Marley. O equívoco motiva as suas considerações sobre esse tipo de literatura
que mais vende e o deterioramento da qualidade do que a maior parte do público
ler hoje: “O livro de auto-ajuda e seus similares atropelam a individualidade
dos cidadãos, nivelando todos – por baixo – em uma grande massa humana, de
comportamentos e atitudes padronizados, sem levar em conta a complexidade
própria da espécie: “Faça isso, faça aquilo”; “seja amável com o próximo” /.../
O que me inquieta é pensar como, através dos tempos, uma certa qualidade do
pensamento e da reflexão foi-se deteriorando, deteriorando, até chegar a
patamares inimagináveis de cretinice, de “baixeza” mental, inversamente
proporcional aos êxitos monstruosos das vendas desses pais livros e, pior, com
a adesão cada vez mais cega das pessoas” (p.57).
Na miscelânea de temas e assuntos, estão
episódios de sua infância em Arari, cidade dos seus pais no interior do
Maranhão, aonde viveu até os 7 anos, e histórias vividas em São Luís, com os
personagens ímpares que passaram pela sua vida. Há muito da memória do menino
que se encantava com os nomes próprios e guarda ainda o encanto deles; do
moleque que jogava bola na rua e lidava com os apelidos dos colegas de escola
(o primeiro foi Doutor Ratazana), do rapaz que tinha curiosidade pelos diversos
credos, conheceu terreiros de macumba e se encantou pelos ritos; do menino que
conviveu com carcamanos e seus costumes. Duas das crônicas mais interessantes
contam sobre os vizinhos negros que recorda ao sobrevoar Luanda e a preta
Magnólia: “era uma preta cinematográfica
de tão preta, forte e linda, com um sorriso angelical que sempre lhe escapava
do rosto grave” (p.84). A memória gustativa que traz de volta a figura da
cozinheira evoca até Proust, pela ‘saudade do tempo perdido’.
Zeca confessa a influência de suas
leituras, a boa formação que teve em casa, e o gosto pela poesia que veio muito
cedo. Aos 11 anos, copiava poemas de Mário Quintana num caderno e dizia que eram
dele para impressionar as meninas no colégio. Depois vieram as letras bem
elaboradas, mostrando seu conhecimento das potencialidades expressivas da
língua portuguesa e a carreira bem sucedida de cantor-compositor que faz, mesmo
nesses tempos digitais, apologia ao livro (p. 71) e diz que, se depender dele,
os livros-dvds estarão fadados ao fracasso.
São muitos os assuntos que constituem
leitmotiv de suas confabulações: a copa do mundo e a cabeçada de Zidane; os
mistérios dos bigodes; os bons humoristas, que ele chama ‘vampiros
brasileiros’, o barraqueiro de praia que divulga livros e peixes num só balaio;
a gastronomia maranhense e paulista, as biografias, gênero de que gosta mas
considera parcialmente ficcional, e até a capacidade de perdão que ele diz não
ter tão assim à flor da pele, embora tenha boas leituras da Bíblia.
A música é razão de muitos escritos. Ele
focaliza a eterna discussão poesia versus canção; confessa que dois ídolos já
fizeram seus olhos marejaram quando expectador anônimo na plateia - Dylan e
Waldick -, e que, no início da carreira, era comparado a Ednardo, Lobão e
Sérgio Sampaio, o que nunca o incomodou. Faz considerações sobre MPB e Rock, e
diz que “A MPB tem servido ultimamente para esconderijo e refúgio de novos
velhos, que vivem de reproduzir cânones caducos da bossa nova ou da canção de
protesto e posturas datadas” (p.107). Ele não tem preconceito com os gêneros
musicais, celebra a Seresta, a Bossa Nova, a Tropicália e, sobretudo, as canções
de rádio que fizeram a trilha sonora da sua infância e da sua adolescência. Faz
referência a movimentos musicais e a nomes que marcarem sua trajetória, como
Hervé, João do Vale e Odair José, que
lhe ensinou o real conceito de felicidade: “Felicidade não existe / o que existe
na vida são momentos felizes” (“A noite mais linda do mundo”).
Assim tão brevemente só se pode ter uma
ideia da diversidade de assuntos que inspiraram as confabulações do cidadão
Zeca Baleiro, mas se pode ter a certeza de que estamos diante de uma mente
criativa, inquieta e focada na sociedade em que vive. Mais que uma brincadeira
séria, mais que um exercício literário, o livro interessa para uma análise
sociológica do nosso tempo.
ALGUNS VERBETES
DO “Bestiário Pós-moderno”
BEST-SELLER – livro mal-escrito mas com
incríveis mensagens de entusiasmo. Seu título deve ter palavras-chave que
variam entre pipas, Cabul, enriquecem juntos e mentes. Vez ou outra pode ter a
palavra mago. Não falha.
CELEBRIDADES – animais da fauna
contemporânea bastante em voga, não são necessariamente dotados de talento ou
charme. Têm às vezes o corpo bem torneado, o que lhes confere uma certa
sobrevida em festas de debutantes do interior e comerciais de tv. Fazem cair
por terra a profecia pop de Andy Warhol, que arriscou dizer que no futuro todos terão quinze minutos de fama.
A deles chega a durar três semana.
DIETA – penitência no templo do consumo
FASHIN – métier em que todos são plenos
de atitude, porém desprovidos de opinião. São sempre muito bem informados sobre
as últimas tendências da moda, embora desconheçam as primeiras.
LÍDER – pessoa que tem a conta bancária
alta o suficiente para dar ordens sem ser questionada.
OTIMIZAÇÃO – Procedimento moderno que
significa “fazer parecer melhor algo por natureza ruim”.
TECNO -
barulho com status de música.
XENOFOBIA – nome sociológico para
“reserva de mercado”.
CURTAS, grossas e algumas infames
bossa nova:
um joão
para cem manés.
*****************
simone a jean-paul diria
a ignorância é mais vital
Que a sabedoria
******************
tevê
um
babaca na tela
mil
babacas
frente
a ela
******************
no
mundo
hoje
em dia
há
muito mais poetas
que
poesia
********************
só
há uma coisa
mais
odiável
que
uma pessoa cheia de dúvidas:
uma
pessoa
cheia
de certezas
PARA
SABER MAIS
BALEIRO, Zeca. Bala
na Agulha. São Paulo: Ponto de Bala editora, 2010.
BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janiro: Zhar, 2001.
BAUMAN, Zygmund. 44 cartas do mundo e líquido. Rio
de Janiro: Zhar, 2009.
DE MASI, Domênico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
HUXLEY, Aldous. Admirável
mundo novo. São Paulo: Globo, 2009.
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