sábado, 23 de março de 2013

Bala na Agulha, de Zeca Baleiro





Além de compositor e intérprete, Zeca Baleiro é também um cronista de percepção aguda e verve bastante irônica. O Caderno LER de hoje traz uma análise do seu livro Bala na Agulha – Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras, publicado em 2010 e lançado em Fortaleza durante a última Bienal do Livro.

Os talentos múltiplos que, de vez em quando, aparecem na mídia compensam a avalanche de mediocridade que ela tem vomitado.  Quero me referir diretamente a Zeca Baleiro, cantor e compositor reconhecido pelas letras de música bem elaboradas e criativas, pela interpretação visceral e pelos projetos, como o Baile do Baleiro, de resgate da música popular brasileira, nos Sesc-São Paulo, trazendo de volta ao público figuras que estão no ostracismo, como: Odair José, Benito de Paula, Vanusa, entre outras. Suas releituras sem preconceito das canções antes consideradas bregas abrem nova discussão sobre o que realmente atesta o bom gosto.

Não bastasse todo esse movimento ascendente em torno da nossa música, não bastasse ter renovado o cenário musical tão baço, ele ainda se revela um pensador perspicaz e um escritor que merece reverência! Além de boas ideias e muita lucidez calcada num espírito irreverente, ele tem um discurso leve, mesmo para os assuntos mais densos, e demonstra intimidade com a língua portuguesa, pois escreve de acordo com o que preceitua a gramática padrão,  no seu  característico à-vontade. Só faz uma ressalva: a resistência voraz à reforma ortográfica. Logo nas primeiras páginas do seu primeiro livro, Bala na Agulha – Reflexões de Boteco, Pastéis de Memória e Outras Frituras, há uma explicação do editor: a obra não obedece à reforma ortográfica de 2008, “pelo fato de o autor se recusar a escrever palavrões como autorretrato e assembleia”.

O livro está dividido em três partes: na primeira e mais longa, Bala na agulha, encontramos 42 crônicas que, na verdade, compunham as postagens do seu blog desde 2005, com temas variados, ou seja, é uma compilação de artigos seus anteriormente publicados na internet. São textos escritos despretensiosamente em quarto de hotel, na calma da sua casa ou na poltrona de um avião, revelando sua cosmovisão sobre  comportamento, uso da língua portuguesa, música, literatura, cinema, religião, gastronomia; sem eximir-se, tantas vezes, de episódios marcantes da sua infância maranhense e das figuras que a povoaram.

  Na segunda, intitulada Bestiário Pós-moderno, estão vários verbetes, definições irônicas de palavras, de acordo com seu olhar ácido e voraz para a realidade. A terceira – Curtas, grossas e algumas infames, estão provérbios, antivérbios, aforismo e desaforismos,  constitui, todo o montante, uma compilação de pensamentos e versos casuais – muitos escarnecedores mesmo, mas divertidos e bem humorados, como é o caso de “Toddy amor que é bayer é bom” e “Na vida tudo se acumula / nem por isso / o filho é da mula”.
 Em todos os textos, aparece o protagonismo de um cidadão inquieto com a vida e o rumo que têm tomado os valores na sociedade contemporânea. Sensato, irônico, brincalhão, por vezes ácido, jamais adocicado, o cantor-compositor-escritor  dispara a baladeira na praga do politicamente correto, critica “as novas e surpreendentes palavras que vêm sendo incorporadas à nossa língua com a velocidade típica dos tempos digitais”! (p.17) e neologismos insurgentes, como ‘faltante’ e ‘cadeirante’. Ele dispara: “Não bastassem pragas como o gerundismo propagado por atendentes de telemarketing e apresentadores de TV semianalfabetos – mania que não disfarça o nosso melancólico desejo de parecer americanos -, agora vejo surgirem como gremlins palavras tão estranhas quanto inadequadas, que as pessoas proferem com descarada naturalidade” (p.17). E acrescenta: “A nova ordem semântica não poupa crioulos, viados (com i mesmo!) e anões. Como se expressões cristalizadas no repertório afetivo popular pudessem conter apenas discriminação e não tivessem significados outros, caros à nossa cultura. E como se a discriminação pudesse ser diluída e desfeita em expressões de mal disfarçada hipocrisia, como afro-brasileiro ou afro-descendente, cidadão de orientação sexual especial e sujeito dotado de nanismo” (p.19).

Nas reflexões que faz sobre o uso da língua portuguesa, foge a uma postura purista e demonstra bom-senso em relação aos equívocos, aos abusos neológicos desprovidos de sentido, à avalanche de palavras-chave para traduzir a pós-modernidade. Na crônica “Os diferenciados” (p.76), cita, entre outras variações linguísticas com que convive, o internetês, o dialeto do ABC paulista e menciona o vocabulário artificial que nos circunda: “Não consigo ver legitimidade em palavras como: presencial, semi-presencial, fidelização, motivacional etc” (p. 77) “Não à toa, palavras com recorte vitorioso estão na moda e infestam a fala dessa elite risível: “superação”, “desafio”, “empreendedor”, “upgrade”, “especial”, “top”, “ouro”, “master” e a maldita e onipresente “diferenciado”. O grande sonho de consumo dessa gente parece mesmo ser diferenciada. O que eu não consigo entender, nem que eu viva cem anos,  (e aqui tenho que confessar, acho que não suportaria tamanha longeva proeza), é: se todos se tornarem diferenciados, não ficarão então todos iguais?” (p.79).

Ele critica a cruzada ‘atualista’ que se faz hoje, a falta de culto ao passado e a exigência de que tudo seja up to date. Sim, Zeca é um saudosista. Nenhuma lágrima, nenhum lamento pelo que passou, mas um olhar complacente para o que foi bom e não deveria ter sido tirado de cena em função de um novo cada vez mais efêmero.

O excesso de propagandas (até nas privadas dos banheiros públicos), de assédio da mídia, de oferta ilimitada de serviços, outdoors, panfletos, anúncios, reflete o mundo contemporâneo e sua poluição sonora e visual. Na crônica “Somente o desnecessário” (p.53), ele alfineta esse exagero no palavreado cada vez mais prenhe de insignificâncias e, sobretudo, a sobrecarga de informações desnecessárias que pululam em todos os discursos, desde o do garçom, ao oferecer uma iguaria, ao do comentarista de futebol, bem como o culto desmedido ao consumo vendido por uma publicidade que inventa necessidades que não existem: “Vivemos assim, atordoados por necessidades desnecessárias, urgências desimportantes, pendências que se revelam fantasiosas. Nem uma desarmada criança assiste a um desenho na TV sem que seja bombardeada nos intervalos por mil e uma propagandas com ofertas de brinquedos, algumas das quais engenhosas e desonestas. No mínimo uma covardia” (p. 54 e 55).

O sociólogo Zygmund Bauman tem falado em suas obras – sobretudo em Modernidade Líquída  desses tempos em que nada mais é palpável, tudo escorre, passa rápido.  Além dessa fluidez, ele enfoca a compulsão transformada em vício, a vida instantânea, o individualismo, entre outras questões que colocam o cidadão contemporâneo diante de um mundo de pessoas sem rosto. Imagino que as reflexões do Zeca Baleiro sejam as do cidadão cansado de toda essa fluidez, mas também de um leitor antenado com os estudos sobre o seu tempo.

Em “O buraco é mais embaixo” e “na crônica “Somente o desnecessário” (p.53)”, ele reitera sua preocupação em viver num mundo em que já não se tem identidade, onde estamos todos submetidos a humilhações como ‘pesar comida’, ‘tirar roupa e sapatos nos aeroportos, ‘conversar com gravação no telefone’, entrar em intermináveis filas de espera inclusive em restaurantes. O pior: não há a quem reclamar, pois se entrou num consenso involuntário de que ‘tudo é culpa do sistema’: “Na falta de resposta para tudo, e também como evasiva para seus deslizes, o homem já recorreu a muitas coisas invisíveis e impalpáveis: Deus, o destino, o acaso, Nossa Senhora, o carma, a Providência Divina. Agora, para todos os seus pecados e crimes, inventou espertamente este bendito sistema”. A imersão do homem nesse processo de massificação propiciou a sua escravidão à parafernália digital como computadores e celulares e ele nem mais se apercebe que se tornou escravo, virou um item a mais nas grandes listas.

É lícita essa preocupação em viver num mundo em que o Ter é mais importante que o Ser, em que se preza pelo Parecer e vende-se até modelo de beleza. Ele critica essa ditadura da magreza e até corrige Vinícius no seu verso antológico “beleza é fundamental” ao dizer ironicamente que não basta a beleza, o importante é ter borogodó (p.99).

Outro tiro certeiro é nos programas religiosos que parecem manipular as pessoas, instigando o ‘ter’ como essencial. Critica a mercantilização da fé no discurso dos pastores centrados menos em Deus e mais nos valores e nas conquistas materiais que a ‘religião e a fé’ podem propiciar. Depois de brincar com o controle remoto no sofá de sua casa e parar estarrecido diante de um desses programas, comenta: “Pela grande angular do Cristianismo, Deus (assim, maiúsculo) é um ilusionista, um ser com poderes mágicos que fez seu filhos ressuscitar e subir aos céus como um Christopher Reeve de capa vermelha e uniforme colante azul. É, meus caros, aos olhos dos cristãos, Deus sempre foi um Spielberg, um George Lucas... E, como se não bastasse, agora vêm esses pastores com ares de bastardos, com avidez de vendedores de rodoviária transformar deus (assim, maiúsculo) em Og Mandino, em Lair Ribeiro, num mago vulgar de auto-ajuda... Não, Deus não merecia destino tão tacanho!” (p.48).

Dispara igualmente contra os textos de autoajuda, que aparecem até na voz de um comandante de avião (do qual ele [Zeca] é passageiro), bem como nas obras que, atualmente, lotam as prateleiras das livrarias. Descreve jocosamente os seus passeios pelas livrarias de aeroportos e conta ironicamente o seu primeiro encontro com o livro “Marley e eu” que, à primeira vista, seduziu-lhe pela possibilidade de ser uma biografia de Bob Marley. O equívoco motiva as suas considerações sobre esse tipo de literatura que mais vende e o deterioramento da qualidade do que a maior parte do público ler hoje: “O livro de auto-ajuda e seus similares atropelam a individualidade dos cidadãos, nivelando todos – por baixo – em uma grande massa humana, de comportamentos e atitudes padronizados, sem levar em conta a complexidade própria da espécie: “Faça isso, faça aquilo”; “seja amável com o próximo” /.../ O que me inquieta é pensar como, através dos tempos, uma certa qualidade do pensamento e da reflexão foi-se deteriorando, deteriorando, até chegar a patamares inimagináveis de cretinice, de “baixeza” mental, inversamente proporcional aos êxitos monstruosos das vendas desses pais livros e, pior, com a adesão cada vez mais cega das pessoas” (p.57).

Na miscelânea de temas e assuntos, estão episódios de sua infância em Arari, cidade dos seus pais no interior do Maranhão, aonde viveu até os 7 anos, e histórias vividas em São Luís, com os personagens ímpares que passaram pela sua vida. Há muito da memória do menino que se encantava com os nomes próprios e guarda ainda o encanto deles; do moleque que jogava bola na rua e lidava com os apelidos dos colegas de escola (o primeiro foi Doutor Ratazana), do rapaz que tinha curiosidade pelos diversos credos, conheceu terreiros de macumba e se encantou pelos ritos; do menino que conviveu com carcamanos e seus costumes. Duas das crônicas mais interessantes contam sobre os vizinhos negros que recorda ao sobrevoar Luanda e a preta Magnólia:  “era uma preta cinematográfica de tão preta, forte e linda, com um sorriso angelical que sempre lhe escapava do rosto grave” (p.84). A memória gustativa que traz de volta a figura da cozinheira evoca até Proust, pela ‘saudade do tempo perdido’.

Zeca confessa a influência de suas leituras, a boa formação que teve em casa, e o gosto pela poesia que veio muito cedo. Aos 11 anos, copiava poemas de Mário Quintana num caderno e dizia que eram dele para impressionar as meninas no colégio. Depois vieram as letras bem elaboradas, mostrando seu conhecimento das potencialidades expressivas da língua portuguesa e a carreira bem sucedida de cantor-compositor que faz, mesmo nesses tempos digitais, apologia ao livro (p. 71) e diz que, se depender dele, os livros-dvds estarão fadados ao fracasso.

São muitos os assuntos que constituem leitmotiv de suas confabulações: a copa do mundo e a cabeçada de Zidane; os mistérios dos bigodes; os bons humoristas, que ele chama ‘vampiros brasileiros’, o barraqueiro de praia que divulga livros e peixes num só balaio; a gastronomia maranhense e paulista, as biografias, gênero de que gosta mas considera parcialmente ficcional, e até a capacidade de perdão que ele diz não ter tão assim à flor da pele, embora tenha boas leituras da Bíblia.

A música é razão de muitos escritos. Ele focaliza a eterna discussão poesia versus canção; confessa que dois ídolos já fizeram seus olhos marejaram quando expectador anônimo na plateia - Dylan e Waldick -, e que, no início da carreira, era comparado a Ednardo, Lobão e Sérgio Sampaio, o que nunca o incomodou. Faz considerações sobre MPB e Rock, e diz que “A MPB tem servido ultimamente para esconderijo e refúgio de novos velhos, que vivem de reproduzir cânones caducos da bossa nova ou da canção de protesto e posturas datadas” (p.107). Ele não tem preconceito com os gêneros musicais, celebra a Seresta, a Bossa Nova, a Tropicália e, sobretudo, as canções de rádio que fizeram a trilha sonora da sua infância e da sua adolescência. Faz referência a movimentos musicais e a nomes que marcarem sua trajetória, como Hervé, João do Vale e  Odair José, que lhe ensinou o real conceito de felicidade: “Felicidade não existe / o que existe na vida são momentos felizes” (“A noite mais linda do mundo”).

Assim tão brevemente só se pode ter uma ideia da diversidade de assuntos que inspiraram as confabulações do cidadão Zeca Baleiro, mas se pode ter a certeza de que estamos diante de uma mente criativa, inquieta e focada na sociedade em que vive. Mais que uma brincadeira séria, mais que um exercício literário, o livro interessa para uma análise sociológica do nosso tempo.

ALGUNS VERBETES DO “Bestiário Pós-moderno”

BEST-SELLER – livro mal-escrito mas com incríveis mensagens de entusiasmo. Seu título deve ter palavras-chave que variam entre pipas, Cabul, enriquecem juntos e mentes. Vez ou outra pode ter a palavra mago. Não falha.

CELEBRIDADES – animais da fauna contemporânea bastante em voga, não são necessariamente dotados de talento ou charme. Têm às vezes o corpo bem torneado, o que lhes confere uma certa sobrevida em festas de debutantes do interior e comerciais de tv. Fazem cair por terra a profecia pop de Andy Warhol, que arriscou dizer que  no futuro todos terão quinze minutos de fama. A deles chega a durar três semana.

DIETA – penitência no templo do consumo

FASHIN – métier em que todos são plenos de atitude, porém desprovidos de opinião. São sempre muito bem informados sobre as últimas tendências da moda, embora desconheçam as primeiras.

LÍDER – pessoa que tem a conta bancária alta o suficiente para dar ordens sem ser questionada.

OTIMIZAÇÃO – Procedimento moderno que significa “fazer parecer melhor algo por natureza ruim”.

TECNO -  barulho com status de música.

XENOFOBIA – nome sociológico para “reserva de mercado”.

CURTAS, grossas e algumas infames

bossa nova:
um joão
para cem manés.

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simone a jean-paul diria
a ignorância é mais vital
Que a sabedoria

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tevê
um babaca na tela
mil babacas
frente a ela
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no mundo
hoje em dia
há muito mais poetas
que poesia
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só há uma coisa
mais odiável
que uma pessoa cheia de dúvidas:
uma pessoa
cheia de certezas


PARA SABER MAIS

BALEIRO, Zeca. Bala na Agulha. São Paulo: Ponto de Bala editora, 2010.
BAUMAN, Zygmund. Modernidade líquida. Rio de Janiro: Zhar, 2001.
BAUMAN, Zygmund. 44 cartas do mundo e líquido. Rio de Janiro: Zhar, 2009.
DE MASI, Domênico. O ócio criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.
HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. São Paulo: Globo, 2009.

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